‘O algoritmo da divisão’ — um nome infeliz


Qual resultado você obtém ao dividir 7 por 3? Pode responder à pergunta de duas maneiras, uma certa, e uma menos certa — talvez, até, menos do que menos certa.

Resposta certa. “Ao dividir 7 por 3, obtenho como resultado sete terços, isto é, 7/3, visto que 7 = (7/3) × 3.”

Resposta menos certa. “Ao dividir 7 por 3, obtenho como resultado quociente igual a 2 e resto igual a 1, visto que 7 = 2 · 3 + 1.”

A primeira resposta, a certa, está de acordo com a definição de divisão de um número real por outro: Se x e y são dois números reais, com y > 0, daí a divisão de x por y, que pode denotar com x/y, é o número real q tal que x = qy. Em outras palavras, a divisão de um número real x por um número real y > 0 produz um e só um número real q como resultado. No contexto de números reais, essa definição é a mais abrangente possível.

A segunda resposta é menos certa porque a divisão de um inteiro x por um inteiro y > 0 produz dois outros inteiros, o quociente q e o resto r. Eis a definição de divisão com resto mais usada no ensino fundamental (pelo professor): Dados dois números inteiros a e d, com d > 0, existem dois e somente dois outros inteiros q e r tais que a = qd + r e 0 ≤ r < d. Nomes: a é o dividendo, d é o divisor, q é o quociente, e r é o resto.

Na verdade, essa definição ensinada no ensino fundamental é um teorema. Segundo Hung-Hsi Wu, um especialista americano em didática da matemática, a escola deve fazer todo esforço possível para que as crianças compreendam por que o teorema é verdadeiro. (Resumindo: fazer com que r seja menor que d, mas maior ou igual a zero, provoca, como consequência, o fato de que o par de inteiros q e r seja único. Se você retirar essa restrição, daí há infinitos pares de inteiros q, r tais que a = qd + r ; no caso da divisão com resto de 7 por 3, por exemplo, 7 = (–5) · 3 + 22.) “Com o teorema da divisão com resto”, escreveu Wu num de seus livros, “o estudante obtém dois números, o quociente e o resto. Logo, a divisão com resto é intrinsecamente diferente da divisão.” Mais adiante, Wu redigiu uma queixa. “Na matemática universitária, o teorema da divisão com resto é lamentavelmente chamado de teorema da divisão. Isso é um abuso de linguagem, que só é desculpável quando o estudante sabe precisamente a diferença entre divisão e divisão com resto.”

Não quero com este texto pichar o conceito de divisão com resto; pois, sem ele, não há aritmética módulo m, congruências lineares, anéis quocientes — sem ele, todo o prédio da teoria dos números desaba. Wu reconhece isso; como gesto de boa vontade, sugere um problema que, segundo diz, até professores de matemática acham bonito e sutil.

Problema. Use o algoritmo da divisão com resto. Seja r o resto de a quando você divide a por d, sendo a e d inteiros, com d > 0. Suponha que a = mA e d = mB para inteiros m, A, e B. Seja R o resto de A quando você divide A por B com o algoritmo da divisão com resto. Qual é a relação entre R e r? Escreva uma explicação detalhada.

Tente resolver o problema por si mesmo, e escreva sobre ele tão completamente quanto puder, antes de ver a resolução que proponho mais abaixo e uma discussão um pouco mais consequente sobre o abuso de linguagem.

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Resolução. Se a, d são inteiros, com d > 0, daí por definição a divisão com resto de a por d é a seguinte:

(I) a = qd + r , com 0 ≤ r < d

Mas a = mA e d = mB. Isso significa que a e d têm um fator comum igual a m. Faça a substituição.

(II) mA = qmB + r , com 0 ≤ r < mB

Visto que d > 0, m ≠ 0. Divida a linha (II) inteira por m.

(III) A = qB + r/m , com 0 ≤ r/m < B

A linha (III) satisfaz as condições do teorema da divisão com resto, pois r/m é um inteiro (se A e qB são inteiros, então r/m é um inteiro) e, além disso, r/m é maior ou igual a zero e menor que o divisor B.

Com tudo isso, já pode concluir o que gostaria de saber: r/m = R, ou, o que é equivalente, r = mR. Assim, se você pode dividir tanto o dividendo a quanto o divisor d pelo fator comum m, então pode igualmente dividir o resto r por m. Dizendo isso de outra forma, a relação de r com R é a seguinte:

Relação de r com R. Se vai calcular a divisão com resto do dividendo inteiro a pelo divisor inteiro d > 0, para obter o quociente q e o resto r, com 0 ≤ r < d; e se percebe que o inteiro m é fator tanto a quanto de d; então pode imediatamente concluir que m também é fator do resto r. Em mais palavras: r é um múltiplo de R, e R é fator de r. De forma análoga, se vai calcular a divisão com resto do inteiro A pelo inteiro B > 0, para obter o quociente q e o resto R, com 0 ≤ R < B; se entende que A e B são primos entre si; e se além disso gostaria de multiplicar tanto A quanto B pelo inteiro m > 0; daí basta multiplicar o resto R por m para obter a divisão com resto do inteiro mA pelo inteiro mB. Portanto, o quarteto ordenado de números inteiros (A, B, q, R), no qual A, B são primos entre si, B > 0, e A = qB + R, com 0 ≤ R < B, é um quarteto de números que representa a divisão de A por B segundo o algoritmo da divisão com resto; e com ele você pode gerar infinitos outros quartetos ordenados (mA, mB, q, mR), um para cada valor inteiro de m > 0, que representam, cada um deles, a divisão do inteiro mA pelo inteiro mB conforme o algoritmo da divisão com resto.

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Na postagem Estudantes Empacados no Tempo, o matemático britânico Keith Devlin afirma, “Dizer que a multiplicação é adição repetida é pura e simplesmente errado. Aliás, a potenciação não é uma multiplicação repetida (e se fosse, seria então uma adição repetida, repetida); uma função não é uma máquina que pega um número na entrada, faz algo sobre ele e produz um número na saída; a integração não é uma antidiferenciação.” Ele poderia ter afirmado também, se conhecesse a objeção de Hung-Hsi Wu, “A divisão de inteiros não é uma mera aplicação do algoritmo da divisão com resto.”

É claro que o algoritmo da divisão com resto é útil em situações teóricas ou práticas nas quais você não pode subdividir a unidade, isto é, só pode trabalhar com inteiros. É o caso da aritmética módulo m (situação teórica) ou da divisão de 7 bolinhas de gude entre três crianças (duas bolinhas para cada uma delas, e sobra uma bolinha). Mas isso não autoriza a escola a passar a ideia de que “divisão” é o mesmo que “divisão de inteiros com resto”, pois essa ideia está errada. “Minha insistência em conceitos e definições muito claros tem uma explicação”, escreveu Wu. “Na matemática, é fundamental a ideia de que o que você vê é exatamente o que você tem. Se uma pressuposição não é clara nem explícita, não deve ser usada por ninguém — nem por professores, nem por estudantes.” Uma pessoa que parte da pressuposição de que “divisão” pode ser traduzido como “divisão de inteiros com resto” está trabalhando com “ideias mutiladas e confusas”, para usar a linguagem de Spinoza. A escola deve fazer o possível para evitar isso, pois há muito em jogo: para Spinoza, só com ideias claras e distintas o ser humano pode se tornar efetivamente potente e ter a chance de uma vida feliz. {FIM}


Observações:

1. Tirei as declarações de Wu do livro Understanding Numbers in Elementary School Mathematics, capítulo 7, “The Long Division Algorithm”. Esse livro é excelente. Há uma tradução dele para o português de Portugal.

2. Veja também a postagem Luiz Márcio Imenes se Contrapõe a Keith Devlin.

3. Alguns autores, em vez de escrever “algoritmo da divisão com resto”, escrevem “algoritmo euclidiano da divisão”. É melhor do que nada, pois o termo “euclidiano” avisa o leitor de que não se trata da divisão usual de um número real por outro. Mas prefiro “algoritmo da divisão com resto”, que é mais explícito. Na matemática, explicitude é virtude.

4. O leitor Desconfiado pode propor a seguinte objeção: “Ora, só podemos construir os números reais quando temos números racionais; e só podemos construir os racionais quando temos frações. Isso significa que o algoritmo da divisão com resto tem precedência sobre a definição a mais abrangente possível de divisão, pois faz parte da ‘infraestrutura’ de construção dos reais. Digo isso porque o algoritmo da divisão com resto surge assim que surge a ideia de fração.” Entendo o que Desconfiado quer dizer, mas discordo. Na matemática, uma manobra muito comum e produtiva é esta: o matemático usa a ideia A para definir a B, a B para definir a C, e assim por diante, até que chega a uma ideia Z muito precisa e abstrata. Daí ele (ou ela) volta atrás e, usando a ideia Z como referência, reescreve todas as ideias anteriores, para que, desde o começo, sejam perfeitamente consistentes com Z. Parece que Hung-Hsi Wu e Keith Devlin estão a dizer o seguinte: ao longo do ensino básico, os professores de matemática devem se esforçar para que, quando o aluno finalmente estudar Z (talvez já na faculdade), não fique perplexo; ao contrário, sinta que Z é consequência natural de tudo o que viu na escola.

5. Para Spinoza, ninguém é potente a partir de ideias mutiladas e confusas, mesmo que fique riquíssimo, comande exércitos, e domine o mundo. Ideias claras e distintas são condição necessária para a potência humana.

Uma pergunta nociva, mas comum, sobre funções

O que verá nesta postagem:

Seção 1. Uma discussão sobre perguntas do tipo “qual é o domínio da função √x”, que não são boas perguntas.

Seção 2. Algumas definições técnicas sobre funções, além de umas poucas sutilezas.

Seção 3. Quase o mesmo conteúdo da seção 2, mas desta vez com ilustrações.


O gráfico de 1/x


{1}/ Uma pergunta ambígua

Professores de ensino médio, e mesmo professores de graduação, com frequência reclamam do estudantado, dizendo que tem dificuldade de entender a ideia de função. Na hora de ilustrar a dificuldade com um exemplo, afirmam: muito estudante não sabe o que fazer diante de perguntas como as duas a seguir.

P1) “Qual é o domínio da função √x?”

P2) “Qual é o domínio, o contradomínio, e a imagem da função 1/x?”

Com esta postagem, quero dizer que, se o professor ou o estudante está passando por esse tipo de dificuldade, existe a possibilidade de que a culpa seja do professor.

Caso o professor esteja ensinando o assunto corretamente, não faz sentido perguntar qual é o domínio ou o contradomínio de uma função, pois quem propõe uma função a outra pessoa tem a obrigação de escrever (ou dizer) claramente qual é o domínio e o contradomínio da função. O professor, para especificar a função f : AB, tem de especificar o conjunto A, o conjunto B, e a regra de correspondência f: uma regra qualquer tal que, para cada elemento a de A, sem exceção, o interlocutor possa calcular um único elemento b = f(a) de B. Nenhuma dessas informações pode ser misteriosa, ou, melhor dizendo, se alguma dessas informações for um mistério, então o professor falhou ao especificar a função f. Assim, se o professor fez seu trabalho, e especificou corretamente a função f : AB, qual é o domínio? É o conjunto A. E qual o contradomínio? É o conjunto B. Qual é a imagem? É um subconjunto de B, que pode (ou não pode) ser calculado por meio da regra de correspondência de f. Não há segredo — não pode haver segredo!

Assim, a pergunta “Qual é o domínio da função 1/x?” não é uma boa pergunta, pois 1/x é meramente uma expressão, e o matemático pode usá-la para especificar infinitas funções. Por exemplo:

(a) f : (0, 1) → ℝ, f(x) = 1/x. O domínio é o conjunto aberto (0, 1), o contradomínio é o conjunto ℝ dos números reais, a regra de correspondência da função f é f(x) = 1/x. f não é limitada nem é sobrejetora.

(b) g : (1, 2) → ℝ, g(x) = 1/x. O domínio é o conjunto aberto (1, 2), o contradomínio é o conjunto ℝ dos reais, a regra de correspondência de g é g(x) = 1/x. g é limitada, mas não é sobrejetora.

(c) h : (0, 1) → (1, ∞), h(x) = 1/x. O domínio é o conjunto aberto (0, 1), o contradomínio é o conjunto aberto (1, ∞), a regra de correspondência de h é h(x) = 1/x. h não é limitada, mas é sobrejetora.

Nesses três exemplos, o matemático usou a mesma expressão 1/x para definir as funções f, g, h; e não faz sentido perguntar qual é o domínio ou o contradomínio de f, g, h, pois deixou essa informação perfeitamente clara ao especificar cada função.

Assim, de modo geral, se o professor está perguntando coisas do tipo “Qual é o domínio de 1/x?” ou “Será que 1/x é sobrejetora?”, e se o estudantado não está entendendo a pergunta, algo transcorreu mal durante as aulas; pois 1/x não é uma função, mas sim uma expressão que o matemático pode usar para definir infinitas funções distintas, algumas sobrejetoras, outras não. Se o professor está definindo uma função f cuja regra de correspondência é f(x) = 1/x, ele tem a obrigação de informar à classe o domínio e o contradomínio.

Agora, existe uma situação na qual o professor pode perguntar à classe “Qual é o domínio de 1/x?”, e a classe tem a obrigação de saber a resposta. É quando, a certa altura do curso, o professor combina com a classe algo deste tipo:

“Caros: agora que já compreendemos bastante bem as ideias mais importantes sobre relações e funções, ambas definidas com subconjuntos dos reais, daqui por diante, quando eu perguntar ‘Qual é o domínio da função tal?’, na verdade quero dizer ‘Qual é o maior subconjunto possível dos reais tal que a expressão na regra de correspondência tenha um valor único?’. Assim, ‘Qual é o domínio da função tal?’ é significante, é aquilo que efetivamente digo; mas ‘Qual é o maior subconjunto possível dos reais tal que você possa calcular um valor único para a expressão na regra de correspondência?’ é significado, é aquilo que realmente quero dizer. Da mesma forma, quando eu perguntar ‘Qual é o contradomínio da função tal?’, na verdade quero que me digam qual é o conjunto mais apropriado do qual a imagem do domínio que acabaram de calcular é subconjunto próprio — e vocês vão ter de me explicar por que o contradomínio que escolheram é o mais apropriado. Por exemplo, se a imagem é o conjunto {1, 2, 3}, talvez vocês queiram me dizer que o contradomínio mais apropriado é o conjunto dos números naturais; em todo caso, estejam sempre preparados para justificar suas decisões.”

A matemática é uma espécie de jogo, e a verdade é que o professor e a classe só podem jogá-la adequadamente quando as regras estão perfeitamente claras para ambos. Mais uma vez, como é comum no relacionamento entre professor e alunos, o problema de “Qual é o domínio de 1/x?” é o problema de combinar com a classe significantes e significados.

Hung-Hsi Wu, matemático americano, autor do ótimo Understanding Numbers in Elementary School Mathematics, avisa na carta ao leitor: “Para aqueles que se julgam avessos à matemática, tenho uma mensagem especial. Sua aversão provavelmente surgiu porque, na escola, te pediam para fazer coisas sem que antes houvesse preparação e explicações adequadas e suficientes.” Quando Hung-Hsi conversa com professores de matemática, e quando observa suas práticas, com frequência topa com professores que, aparentemente, não acreditam na “primazia das definições precisas”. Ele escreve mais à frente: “Este livro coloca a definição dos conceitos no seu lugar apropriado na matemática: no centro do palco — nas fundações de todo raciocínio e de toda discussão.”

Esse é o problema com a pergunta “Qual é domínio de 1/x?”: na ausência de definições precisas, a pergunta não pode ser respondida; e na presença de definições precisas, ou a pergunta não deve ser feita dessa maneira ou, caso seja feita da maneira correta, a resposta é trivial. {❏}



{2}/ Apêndice: a definição de função e algumas sutilezas

Função. Uma função f de um conjunto X para um conjunto Y é uma relação na qual cada elemento de X, sem exceção, tem um e só um elemento correspondente em Y. Para grafar a função f de X em Y, você deve escrever f : XY. Se com a função f de X em Y você faz corresponder o elemento x em X ao elemento y em Y, pode dizer que f de x é y, e pode escrever isso assim: f(x) = y. Portanto, para qualquer x em X, o símbolo f(x) denota o único elemento correspondente de x em Y.

Como ler f : A B. Algumas sugestões: (1) “A função f do conjunto A ao conjunto B.” (2) “A função f de A em B.” (3) “A função f manda elementos de A a elementos de B.” (4) “A função f manda A para B.” (5) “A função f tal que a cada elemento de A, sem exceção, corresponde um e só um elemento de B.” (6) “A função f mapeia A em B.” (7) “A transformação f mapeia A em B.” (8) “A aplicação f mapeia A em B.”

Relação. Uma relação de um conjunto S a um conjunto T é um subconjunto do produto cartesiano de S e T. Pode escrever isso em símbolos desta maneira: R é uma relação de S em T se e somente se R ⊆ (ST). Visto que ST é um conjunto de pares ordenados (s, t), com sS e tT, qualquer relação de S em T é um conjunto de pares ordenados. Sendo assim, se f é uma função de S em T, isto é, se f : ST, ao escrever f(s) = t, você na verdade quer denotar o par ordenado (s, t).

Produto cartesiano. Se S é um conjunto e se T é um conjunto, daí o produto cartesiano de S e T é o conjunto de todos os pares ordenados (s, t) tais que s é elemento de S e t é elemento de T. Para anotar o produto cartesiano de S e T, escreva S × T.

Relações vazias, funções vazias. Visto que uma relação R de S em T é um subconjunto de S × T, e visto que o conjunto vazio ∅ é subconjunto de S × T (pois ∅ é subconjunto de todo conjunto), disso se segue que ∅ é uma das relações possíveis em S × T; além disso, ∅ está de acordo com a definição de função: cada elemento de S (não há nenhum) tem um e só um elemento correspondente em T (não há nenhum).

Regra de correspondência. A regra de correspondência de uma função f de A em B não precisa ser uma expressão matemática: pode ser uma tabela, um desenho, um texto, uma pessoa (“pergunte ao Rogério”); pode ser muita coisa. De modo análogo, os elementos de A ou de B não precisam ser objetos abstratos da matemática.

Além disso, a regra de correspondência deve permitir que, em tese, seja possível calcular o elemento do contradomínio que corresponde a certo elemento do domínio. “Em tese” é a questão: há funções perfeitamente bem definidas nas quais, na prática, é impossível calcular todo elemento do contradomínio. Por exemplo: seja F o conjunto de todas as funções, e C a classe de todos os conjuntos; além disso, para qualquer função x, use d(x) para denotar o domínio de x. Essa função d está perfeitamente caracterizada com palavras da língua portuguesa, embora, no caso de certas funções x, seja impossível calcular todo elemento de d(x).

Por último: não há nenhuma distinção lógica entre “regra de correspondência” e “conjunto de pares ordenados”. Pares ordenados são a persona formal das regras de correspondência.

Domínio. Se R é uma relação de S em T, o domínio de R é S.

Contradomínio. Se R é uma relação de S em T, o contradomínio de R é T.

Imagem. Se R é uma relação de S em T, a imagem de R é o conjunto de todo y em T tal que existe algum (x, y) em R. Considere, por exemplo, a relação “x1 é o marido de x2”. É uma relação entre homens e mulheres. O domínio é o conjunto HC dos homens casados, isto é, x1HC. O contradomínio é o conjunto M das mulheres. A imagem MC é o conjunto das mulheres casadas, isto é, x2MC. (Note que MCM.) Caso chame a relação de C, pode indicar “x1 é o marido de x2” com x1Cx2 ou com C(x1, x2), entre outras opções. Levando em consideração o mundo real, C é de fato uma relação, mas não é uma função, pois alguns homens são casados com mais de uma mulher. Notação. Na função f : AB, denote a imagem de f com f(A), e note que, muitas vezes, f(A) ⊂ B, isto é, a imagem f(A) é subconjunto próprio do contradomínio B, isto é, f(A) ≠ B ou Bf(A) ≠ ∅.

Por que em geral o contradomínio é superconjunto próprio da imagem. Frequentemente, o matemático precisa aplicar duas funções em sequência, ou mais de duas. Suponha as funções f : AB e g : BC. Se quiser aplicar f primeiro, e g depois, isto é, se quiser aplicar a função gf : AC, talvez tenha problemas se a imagem de f não coincide com o domínio de g, isto é, se f(A) ≠ B. É para evitar esse tipo de problema que, em geral, o matemático prefere trabalhar com contradomínios ‘abrangentes’, como o conjunto ℝ dos números reais ou o ℂ dos complexos: assim não tem com que se preocupar com a concatenação de imagens e domínios de duas ou mais funções aplicadas em sequência.

Função limitada. Considere a função f : AB. Se o contradomínio B é um conjunto de números, você pode dizer que f tem um limite superior se existe um número x, não necessariamente elemento de B, tal que todo elemento de B é igual ou menor que x. De modo análogo, diga que f tem um limite inferior se existe um número y, não necessariamente elemento de B, tal que todo elemento de B é igual ou maior que y. Se f tem um limite inferior e, além disso, um limite superior, então f é uma função limitada. Se f não tem um limite inferior ou se não tem um limite superior, então f é uma função não limitada ou ilimitada. Com algum trabalho de abstração, é possível adaptar o conceito de função limitada para funções cujo contradomínio não é um conjunto de números.

Função sobrejetora. Se todo elemento do contradomínio, sem exceção, é o correspondente de algum elemento do domínio, então a função é sobrejetora. Mais formalmente: na função f : AB, f é sobrejetora se e somente se, para todo bB, existe um aA tal que f(a) = b. Em outras palavras, o contradomínio e a imagem de f são iguais, isto é, B = f(A).



{3}/ Apêndice 2: Funções por meio de tabelas e figuras

Fig. 1

Na figura 1, você vê dois conjuntos A = {a, b, c} e B = {1, 2, 3, 4}. O produto cartesiano AB é o produto a seguir.

1 2 3 4
a (a, 1) (a, 2) (a, 3) (a, 4)
b (b, 1) (b, 2) (b, 3) (b, 4)
c (c, 1) (c, 2) (c, 3) (c, 4)

Assim, o produto cartesiano AB é o conjunto AB = {(a, 1), (a, 2), (a, 3), (a, 4), (b, 1), (b, 2), (b, 3), (b, 4), (c, 1), (c, 2), (c, 3), (c, 4)}.

A figura 1 representa a relação R = {(a, 1), (a, 2), (b, 3), (c, 4)}. É uma relação, pois RAB; mas não é uma função, pois o elemento aB é o correspondente dos dois elementos 1, 2 do domínio B. Para que R fosse uma função, cada elemento a, b, c do domínio, sem exceção, deveria estar interligado, por meio da regra de correspondência R, a um e apenas um elemento do domínio B.

Fig. 2

Na figura 2, pode ver uma função que não é injetora (pois o elemento 3 ∈ B está interligado a dois elementos c, dA), nem sobrejetora (pois 5 ∈ B não está interligado a nenhum elemento de A), nem bijetora (pois não é injetora e sobrejetora).

Fig. 3

Na figura 3, pode ver uma função injetora, pois a cada elemento yB que faz parte da função, corresponde um e só um elemento xA. Mais formalmente, numa função f injetora, f(x) = f(y) implica x = y. Note que, numa função f injetora, talvez seja o caso de que Bf(A), isto é, de que o contradomínio B seja diferente da imagem de f.

Fig. 4

Na figura 4, pode ver uma função sobrejetora, pois a cada elemento yB, sem exceção, corresponde um elemento xA.

Fig. 5

Na figura 5, pode ver uma função bijetora, isto é, uma função que é ao mesmo tempo injetora e sobrejetora. Nesse tipo de função, para cada yB, sem exceção, existe um e só um xA tal que f(x) = y.

Resumo. Considere dois conjuntos A, B, não necessariamente diferentes. (1) Numa relação entre A e B, talvez um elemento de A esteja ligado a mais de um elemento de B; talvez um elemento de B esteja ligado a mais de um elemento de A; talvez nenhum elemento de A esteja ligado a nenhum elemento de B. Há muita liberdade em relações. (2) Numa função de A em B, todo elemento de A, sem exceção, está ligado a um e apenas um elemento de B; mas pode ser que dois elementos de A estejam ligados ao mesmo elemento de B; e pode ser que algum elemento de B não esteja ligado a nenhum elemento de A. (3) Numa função injetora de A em B, se um elemento de B está ligado a algum elemento de A, então está ligado a um e apenas um elemento de A; contudo, talvez algum elemento de B não esteja ligado a nenhum elemento de A. (4) Numa função sobrejetora de A em B, cada elemento de B, sem exceção, está ligado a algum elemento de A; porém, talvez um elemento de B esteja ligado a mais de um elemento de A. (5) Numa função bijetora de A em B, cada elemento de A, sem exceção, está ligado a um e só um elemento de B; e cada elemento de B, sem exceção, está ligado a um e só um elemento de A. Uma função bijetora é, ao mesmo tempo, injetora e sobrejetora. {FIM}



Observações:

1. Se gostaria de saber mais sobre conjuntos, relações, e funções, veja a postagem Conjuntos: Os Alicerces da Matemática.

2. Há dois momentos importantes na vida do matemático: o de inventar e o de descobrir.

Às vezes, o matemático começa com noções comuns, mal formuladas, e vai fazendo descobertas sobre tais noções; mais tarde, inventa uma estrutura matemática para deixar tais noções muito bem formalizadas. Em casos assim, houve primeiro as descobertas, e depois a invenção; e desse modo as “definições precisas” de Hung-Hsi surgem tarde no processo de investigação. Às vezes, contudo, o matemático começa com estruturas matemáticas muito bem formalizadas, sobre as quais mais tarde faz descobertas. Em casos assim, houve primeiro a invenção, e depois as descobertas; e portanto as definições precisas surgem logo no início do processo de investigação. Dizer isso significa dizer que o matemático profissional nem sempre pode dar “primazia às definições precisas”.

Apesar dessa objeção, na escola básica, e também na faculdade, não há desculpa para trabalhar com noções comuns em detrimento de definições precisas, pois toda a matemática da escola básica e da graduação está bem formalizada há bastante tempo.

Se um professor conhece as reclamações de Paul Lockhart em O Lamento de um Matemático, como pode conciliá-las com a objeção de Hung-Hsi? Ora, deve seguir o conselho de Lockhart e dar suas aulas em torno de problemas (problemas do ponto de vista do aluno), para que a classe tenha a oportunidade de conhecer o prazer da matemática; mas deve pensar na objeção de Hung-Hsi e, de modo inteligente, e muito hábil, fazer a classe ver que estruturas matemáticas bem formalizadas, escritas com definições precisas, são o objetivo último de toda investigação matemática. Como os historiadores da matemática já cansaram de nos mostrar, às vezes a resolução de um problema consiste em atinar com definições precisas: a definição é a resolução.

Acredito que objetos abstratos são procedimentos com alto grau de exatidão, isto é, procedimentos com baixo grau de vagueza e baixo grau de ambiguidade. (Para saber mais sobre isso, clique aqui.) Se for assim, a matemática é a arte de escrever sobre procedimentos com alto grau de exatidão, e o matemático só consegue exercer sua arte quando desenvolve uma linguagem com alto grau de exatidão; esse tipo de linguagem só pode existir com definições precisas.

3. Significante é o que uma pessoa diz ou escreve. “Você tem um lápis?” Significado é o que ela gostaria que seu interlocutor entendesse. “Se você tem um lápis, pode me emprestá-lo por um momento?”

4. Quando você quer achar o maior subconjunto possível dos reais para o qual uma expressão como 1/x ou √x serviria como regra de correspondência para uma função, pode usar a expressão “domínio natural”. Assim, quando um professor pergunta “Qual é o domínio de 1/x?”, na verdade quer perguntar “Qual é o domínio natural de 1/x?” Contudo, o conselho desta postagem continua valendo: o professor só pode usar o termo “domínio natural” (ou então “domínio” como significante e “domínio natural” como significado) depois que a classe souber exatamente o que esse termo significa, isto é, depois que souber exatamente quais procedimentos deve realizar para atinar com uma boa resposta.

5. Neste blogue, eu às vezes uso expressões do tipo “o domínio da função x2” ou a versão mais curta ainda, “o domínio de x2”, quando acho que o contexto me desculpa; pois tais expressões são muito sucintas — e isso explica por que tanta gente as usa tão frequentemente.

6. Existe outro jeito de caracterizar a função f : AB, com y = f(x), que é: f : xy = f(x), com xA e yB. (Leia: “A função f tal que, a cada elemento x, corresponde um elemento y que é igual a f de x.”) Da primeira maneira, a ênfase recai sobre os conjuntos A e B, isto é, recai sobre domínio e contradomínio; da segunda maneira, a ênfase recai sobre a regra de correspondência. Note a diferença nas setas: a seta → é para usar com conjuntos; a seta ↦ é para usar com elementos de conjuntos.

7. Muitos matemáticos dizem que a ideia de função é a mais importante da matemática — mas ela é mal ensinada em muitos países, inclusive naqueles em que o ensino de matemática é bom. No Reino Unido, por exemplo, 43% dos estudantes no primeiro ano de faculdade tentam calcular f(x + a) adicionando a ao valor de f(x), em vez de substituir x por x + a em todo lugar no qual x aparece. Em outras palavras, eles inadvertidamente acham que f(x + a) = f(x) + a; contudo, no sistema dos números reais, essa equação só é verdadeira quando f(x) = x + c, com c uma constante qualquer.

Nenhuma criança começa do zero


Desde os anos 1970 Terezinha Nunes, pesquisadora na Universidade de Oxford, no Reino Unido, busca respostas à pergunta: Como as crianças aprendem matemática? Ela diz que, muitas vezes, as próprias crianças podem respondê-la, pois entram numa escola pela primeira vez já capazes de resolver certos problemas. O professor pode usar essas intuições básicas como matéria-prima, mas nem sempre faz isso.

Lembrete. Nos anos 1980, Terezinha escreveu com dois colegas um livro que ficou famoso entre professores de matemática: Na Vida Dez, na Escola Zero. Ela conheceu alguns dos exemplos que menciona nesta entrevista durante a fase de pesquisa para o livro.


Foto do arquivo pessoal


{1}/ Introdução à entrevista: empréstimos e pagamentos

Quando Terezinha estudou subtração pela primeira vez, aprendeu o algoritmo direitinho. Tinha sete anos e estava na segunda série, o atual terceiro ano do fundamental 1. A professora ensinou o “método do empresta”: a criança escreve um número (o minuendo) em cima do outro (o subtraendo) e, quando um dígito do subtraendo é menor que o dígito acima dele, tem de “pegar emprestado” do número de cima e “pagar” para o número de baixo. Por exemplo, na operação 190 – 39, a pessoa toma 1 do nove no 190 e o empresta ao zero, depois paga o 1 de volta para o 3 no 39.

Ficou incomodada com o que aprendeu, então chegou em casa e disse: “Olha, pai, a professora ensinou uma coisa que sei fazer, mas não sei por que dá certo.” Mostrou a conta e continuou: “Se você pega emprestado de alguém, não pode devolver para outra pessoa!” Então, seu pai decidiu explicar a subtração de outro jeito. Disse que, em vez de pedir emprestado em cima e pagar embaixo, podia decompor os números. Primeiro disse que o zero no 190 não significa propriamente zero unidades, porque no número há na verdade 190 unidades que podem ser arranjadas de várias formas. Assim, podia reescrever o número como 18 dezenas e 10 unidades, e o 39 como 3 dezenas e 9 unidades, como na tabela abaixo:

Centena

Dezena

Unidade

O que acontece:

C

D

U

1

9

0

Tira uma dezena, isto é, 10 unidades do 9 e põe na casa das unidades.

1

8

10

3

9

O subtraendo continua igual.

3

9

Resultado

1

5

1

Ao fazer isso, o subtraendo continua igual, mas reorganizado para facilitar a conta. Após ouvir a explicação, Terezinha perguntou por que a professora ensinou daquele jeito que ela não entendia. “Ele disse que tinha vários jeitos de explicar. Isso é algo que nunca esqueci: há várias maneiras de ensinar, e em algumas delas a criança aprende, entende, vê sentido. Noutras ela repete o professor igual a um papagaio: mandou fazer assim, eu faço.”

Até hoje Terezinha traz à tona essa lembrança quando investiga como a criança aprende matemática. Para ela, a professora (no feminino, pois a maioria dos professores no ensino fundamental é mulher) faz bem se ouve as crianças, pois sempre têm alguma visão que ela pode aproveitar no ensino. A própria Terezinha, por exemplo, nunca contou à professora que não via sentido no método do empresta. “De jeito nenhum! [risos] Quando uma criança de sete anos vai dizer uma coisa dessas para a professora? Isso ficou entre mim e meu pai.” Sorte é que essa experiência não diminuiu o gosto que já tinha pela matemática.



{2}/ A entrevista pingue-pongue

Como se interessou por educação matemática?

Quando trabalhava na Universidade Federal de Minas Gerais, recebia crianças diagnosticadas com dificuldade de aprendizagem, mas, ao avaliá-las, não encontrava nada. Comecei a pensar na diferença entre o que a criança sabe e pensa e o que a escola avalia. Depois fui trabalhar na Universidade Federal de Pernambuco, em Recife, e notei que nas feiras e na praia os vendedores faziam contas de cabeça rapidamente, muito mais depressa que eu. Então me perguntei: qual a diferença entre o que essas pessoas sabem e o que eu sei?

Um exemplo que me impressionou muito foi numa conversa com um pescador. Perguntei o preço do quilo do peixe e ele respondeu: 950 (na época a moeda era outra). Pesou o peixe, disse que tinha um quilo e 350 gramas e logo depois me disse o preço total. Nessa hora, me dei conta de que não sabia como fazer aquela conta de cabeça e nem como ele a tinha feito, daí ele me explicou. Depois dessa conversa, eu e meus colegas (a Analucia Schliemann e o David Carraher) começamos a fazer uma pesquisa mais sistemática: íamos à feira entrevistar crianças na atividade que faziam; depois a visitávamos e fazíamos tipo uma prova de matemática escolar: com continhas e problemas orais. Quando estavam na feira, elas responderam corretamente 98% dos problemas. Mas quando resolviam um problema com os métodos da escola, se saíam muito mal. O mais interessante é que, apesar disso, elas se saíam melhor em resolver problemas que em fazer continhas.

Bom, qual é a filosofia da escola? Primeiro a gente ensina a fazer continhas, depois ensina a usá-las para resolver problemas. Mas se as crianças têm mais facilidade em resolver problemas que em fazer continhas, por que a escola toma esse caminho? Investiguei isso por muitos anos e continuo investigando. A primeira coisa que descobri no Brasil foi a diferença entre a aritmética oral e a escrita. Na feira, as crianças faziam a conta de cabeça e falavam durante o raciocínio. Por exemplo, perguntei a um menino quanto era o coco:

“Trinta e cinco.”

“Vou querer dez. Quanto é?”

“Bom, três cocos dá cento e cinco, com mais três, dá duzentos e dez, com mais três…”

Ele pensou mais um pouquinho e disse:

“Trezentos e quinze. Dez cocos são trezentos e cinquenta.”

Olha que interessante: de um lado ele falava o número de cocos e do outro dizia o preço, e à medida que acrescentava cocos, aumentava o preço na mesma proporção. Ou seja, ele criou um modelo mental da situação para explorar a relação entre o número de cocos e o preço até chegar à resposta. Mas e se, em vez de deixá-lo pensar, alguém lhe dissesse qual conta fazer? [Por exemplo, acrescentar um zero no preço unitário.] Isso inibiria seu raciocínio, que não era o de se perguntar qual conta fazer, mas sim como aquelas quantidades se relacionam.

Então a escola ensina pelo caminho inverso?

Digamos que, muitas vezes, o ensino começa um passo à frente e não onde a criança está. Por exemplo, a criança estuda os números naturais, cuja lógica é baseada na adição, a cada unidade você soma 1: então se tem 4, soma 1 e vira 5, daí soma mais 1 e vira 6, etc. Depois ela começa a estudar frações, cuja lógica é a da divisão. Não podemos apenas ensinar como representar a fração e depois esperar que a criança entenda a lógica sozinha. Ela entende o que é dividir, então devemos começar por aí.

Como a professora pode ajudar a criança?

A formação do professor no Brasil e na Inglaterra é bem diferente, mas a situação do professor frente ao ensino da matemática para crianças é semelhante. A matemática é uma ciência antiga, com uma tradição riquíssima, e é complicado escolher quais aspectos dela incluir no currículo primário. O que eu na realidade estudo é a criança: como ela aprende matemática. Não é a mesma coisa que estudar a matemática. A impressão de que quanto mais matemática a professora souber, melhor ela é, não tem o menor fundamento nas pesquisas que fazemos na Inglaterra. Elas têm sim de ter certo conhecimento, mas a quantidade e o nível de formação em matemática não prevê o sucesso. O que prevê, na verdade, é o número de cursos que ela faz para entender como as crianças aprendem.

A professora deve ouvir a criança para saber qual o próximo passo. Felizmente, as professoras não precisam reinventar esse caminho, porque há muitas pesquisas sobre quais perguntas fazer para entender o raciocínio das crianças. A formação da professora primária exige demais (e não tem como ser diferente): ela tem de saber um pouco de matemática e muito sobre criança, e ainda precisa saber como essas duas coisas combinam.

Acho que as professoras têm a oportunidade de aprender isso, mas muitas sofrem a pressão da escola para cumprir o currículo. Às vezes ela tem três dias para ensinar a subtração com reserva, então não pode optar por um método mais trabalhoso. Não sei como é agora, mas há um tempo a professora tinha entre cinco e dez aulas para ensinar o conceito de frações — um conceito complicadíssimo! Muito mais complicado que o de número natural, o qual ela ensina durante um ano inteiro. Por isso, a escola deve escolher melhor o que entra ou não no currículo, e direcionar melhor o tempo investido em cada tópico. Acho que até hoje ensinam no Brasil os algarismos romanos; qual é a utilidade disso na vida? Ler relógio da estação de trem? Então muda o relógio! Esse é um exemplo bem banal, mas qual a importância disso para os conceitos que a criança precisa formar na escola primária? É interessante, mas não contribui para o que ela precisa dominar e ainda por cima cai na prova! [risos]

Atualmente, os especialistas na Inglaterra e em outros países, como a Hungria (que se sai muito bem nas avaliações internacionais), discutem se precisamos mesmo ficar ensinando a fazer contas. É um legado do passado, pois hoje todo mundo usa calculadora. Não estou dizendo: vamos parar de ensinar continhas. Estou questionando: quanto tempo investimos em ensinar continhas e quanto tempo investimos no raciocínio matemático? A gente tem de pesar essas coisas e ver o que contribui melhor para desenvolver as habilidades da criança.

O que descobriu recentemente?

Estou estudando a resolução de problemas um pouco mais avançados, que no Brasil chamamos de pré-álgebra. O que define a dificuldade de um problema está muito relacionado ao que os números representam: uma quantidade ou uma relação entre quantidades. Quando digo:

“Maria tem cinco bolinhas e ganhou mais três. Com quantas bolinhas ficou?”

Estou falando de duas quantidades: quantas tinha e quantas ganhou. Esse problema é facílimo e uma criança de cinco anos resolve. Mas quando digo:

“Maria tem cinco bolinhas e João tem três a mais que Maria. Quantas bolinhas João tem?”

Muitas crianças de 7 ou 8 anos não resolvem. A conta é a mesma: 5 + 3. Mas a maneira de interpretar as informações é diferente. “Maria tem cinco bolinhas” representa uma quantidade e “João tem três a mais que Maria” representa uma relação entre o número de bolinhas de cada um deles. Agora, quando a criança vê este problema:

“João é dois centímetros mais alto que Pedro e Pedro é três centímetros mais alto que Paulo. Qual a diferença entre João e Paulo?”

Elas dizem: “Professora, não posso resolver isso, porque não sei a altura deles.” Estão acostumadas a pensar apenas com quantidades concretas. Atualmente, investigo como a criança aprende a lidar com essas relações, o que é um grande passo no raciocínio. A matemática é uma disciplina que envolve quantidades, mas, além de tudo e sobretudo, envolve relações. São elas que nos permitem chegar a deduções: se A é igual a B e B é igual a C, as relações entre A e B e entre B e C nos permitem concluir que A é igual a C. Entender relações é crucial para compreender a matemática e muitas vezes a professora não tem consciência se um problema é sobre quantidades ou sobre relações. Sem entender a dificuldade da criança fica difícil ensinar alguma coisa.

Como faz para divulgar essas ideias?

Há muitas boas ideias que deviam fazer parte da formação do professor, mas não fazem; muitas vezes só corremos atrás da formação malfeita. Os futuros professores devem ter acesso às novas pesquisas para se atualizar o tempo todo. Na Universidade de Oxford, não temos um curso para formar professores do primário, mas em outra universidade, a Oxford Brookes, tem. Os professores que dão aulas lá sempre vêm às palestras que dou. Temos uma comunicação fácil e contínua entre o pesquisador e o formador de professores, o que é importantíssimo.

No Brasil, isso já melhorou muito em relação à época em que trabalhava aí; é uma impressão que tenho continuamente. Respeito muito as professoras primárias brasileiras, pois são bastante dedicadas. Quando dou palestras no Brasil, elas sempre estão dispostas a assistir, seja no sábado ou no domingo, e a pagar do próprio bolso. Contudo, elas precisam de apoio para se atualizar; conhecer as pesquisas é uma grande chave para a boa formação do professor.

Qual o pior erro na hora de ensinar matemática?

É convencer a criança de que a matemática não é uma questão de raciocínio, que é uma questão de memorizar e aplicar o que memorizou. É convencê-la a, ainda que implicitamente, deixar de raciocinar e “fazer como mandei”. Quando a criança confia no próprio raciocínio, mesmo quando erra, analisa como pensou e vê o que poderia ter feito diferente. Em 2011, passei quatro meses em São Paulo e vi coisas fantásticas nas escolas em que trabalhei. As crianças resolviam problemas que a professora não esperava, pois não tinha dado aulas sobre o assunto. Não é porque não tiveram aula que não sabem resolver. Elas sabem pensar e a professora pode explorar o raciocínio para chegar a conclusões muito interessantes.

Qual o objetivo de estudar matemática?

Galileu dizia que o grande livro do universo está aberto diante dos nossos olhos, mas só podemos entendê-lo se soubermos a linguagem em que foi escrito: a matemática. É uma imagem muito bonita e demonstra a real importância da matemática para os não matemáticos (que somos a maioria), isto é, usá-la para tentar entender e representar o mundo — assim como a língua natural, porém numa abordagem mais científica. Se a escola olhar a matemática com esse objetivo de entender o mundo, teremos uma visão diferente de como ensiná-la. {}



{3}/ Fração, divisão, e chocolates

Muitas professoras têm medo de ensinar frações para crianças pequenas, pois acham o assunto complexo demais. Estão certas; o assunto é complexo, mas a professora pode usar noções intuitivas para explicar o que são frações. Terezinha conta que ao perguntar:

“Qual fração é maior: um terço ou um quinto?”

A maioria das crianças responde um quinto, pois cinco é maior que três. A professora logo pensa: “Essa criança não sabe nada de frações.” Na verdade, a criança pensou com lógica, porém no contexto errado dos números que já conhece, os naturais. Terezinha reformula a pergunta assim:

“Imagine que você tem um chocolate para dividir por três pessoas e um chocolate igualzinho para dividir igualzinho por cinco pessoas. Em qual grupo cada pessoa vai ganhar mais chocolate?”

Toda criança por fim responde:

“Ah! Quando você divide um por cinco, cada um ganha um pedaço menor.”

Se a professora fala desde o início sobre fração no contexto de divisão, a criança adquire uma visão diferente: a de que a fração representa uma relação entre duas quantidades, uma que é a parte e a outra que é o todo. E é bom que a professora nunca se esqueça: as frações impróprias, apesar do nome, são objetos matemáticos perfeitamente aceitáveis. Logo, a parte talvez seja maior que o todo. {FIM}



Observações:

1. Publiquei essa matéria pela primeira vez na revista Cálculo: Matemática para Todos, edição 44, setembro de 2014, pág. 16. A versão que acabou de ler foi revista e ligeiramente reescrita.

2. A entrevista e o texto ficaram a cargo da jornalista Mariana Osone.

3. Virei fã do livro Understanding Numbers in Elementary School Mathematics, do matemático e educador americano Hung-Hsi Wu. (Já escrevi sobre ele neste blogue; veja aqui a lista de matérias nas quais Wu é mencionado.) Concordo com Wu: quem vai ensinar frações, em primeiro lugar, e números racionais, em segundo, deve desde o começo passar aos estudantes a mensagem essencial — qual seja, a de que uma fração ou um número racional é um número; nada mais, nada menos que um número. Uma fração é um ponto na reta dos números, e nesse sentido não há diferença entre o ponto que representa 7/5, por exemplo, e o ponto que representa 1 ou o ponto que representa –3/4. Se o professor segue os conselhos de Wu, e faz os alunos olhar a reta dos números desde as primeiras lições, cada um crescerá tendo bem clara a ideia de que as operações aritméticas que realizamos com inteiros positivos são exatamente as mesmas que realizamos com frações ou com racionais.

Não há vergonha em dizer: “Não sei.”


Eu digo as mesmas coisas tantas vezes que alguns conhecidos meus por fim acreditam em mim, deixam de pensar que seu cérebro tem algum tipo de defeito que os impede de aprender matemática, compram um livro didático e voltam a estudar para valer. Um deles se aproxima de mim com o livro aberto numa página que, para ele, foi escrita em grego, e me mostra uma fórmula:

“O que isso significa? Não consigo entender!”

Eu examino a fórmula por um tempo e, com frequência vergonhosa, sou obrigado a dizer:

“Não sei.”

O leigo tem essa prenoção de que, se alguém gosta de matemática (como eu), ou se é professor de matemática, então ela bate os olhos numa fórmula e a compreende de imediato. Não é verdade. O matemático inglês Timothy Gowers (medalha Fields de 1998) uma vez escreveu: “Hoje em dia, é comum um ótimo matemático se declarar incapaz de entender os artigos de colegas seus, mesmo que tais artigos sejam de áreas da matemática próximas de sua área de especialização.” O autor do artigo (assim como o autor do livro didático) conhece alguns detalhes técnicos bastante bem. Ao escrever, ele assume erroneamente que seu leitor também os conhece, e deixa de incluir no artigo passagens que ajudariam o leitor a acompanhar o argumento.

Com meu conhecido a meu lado, leio o texto mais de uma vez, reescrevo as fórmulas mais de uma vez, refaço as manipulações algébricas mais de uma vez, consulto dicionários de matemática mais de uma vez. Uma hora, de repente, é como se aquela página do livro se rendesse. Até certo ponto, estudar matemática é como examinar um mecanismo. O estudante gira as manivelas e aperta os botões enquanto observa quando o mecanismo apita, quando acende uma luz, quando abre uma válvula. Com o tempo, de tanto experimentar, o estudante por fim entende como o mecanismo funciona.

(Lembrete: na matemática, esse mecanismo é sempre imaginário; ele é pura abstração. A arte da matemática é a de criar relações abstratas entre objetos abstratos, e de investigar suas propriedades.)

Portanto, estudar matemática significa conviver com a angústia de se sentir ignorante. É algo que se aprende, e é bom aprendê-lo, pois uma página incompreensível à primeira vista é uma invariante na vida de qualquer matemático — profissional ou amador. Quem não está acostumado a viajar para o estrangeiro fica nervoso se, num restaurante, todos à sua volta falam, por exemplo, alemão. Mas o viajante experiente aprende a relaxar. Ele sabe que, no fim das contas, tudo dará certo, mesmo que peça macarrão à carbonara ao garçom, mas depois tenha de comer o que o garçom entendeu: galinha ensopada. {}


Observações:

1. Publiquei esta carta ao leitor pela primeira vez na revista Cálculo: Matemática para Todos, edição 16, maio de 2012, pág. 4. A versão que acabou de ler foi revista e reescrita.

2. Se o leitor gostaria de voltar a estudar matemática, posso recomendar os dois primeiros passos.

[a] Leia o livro Understanding Numbers in Elementary School Mathematics, de Hung-Hsi Wu. O autor escreve para professores de matemática no ensino fundamental 1, que, nos Estados Unidos como no Brasil, não é um especialista em matemática. Wu toma o cuidado de ir passo a passo, justificando completamente um passo antes de seguir adiante, e faz isso bem, pois é um matemático competente e tem prática com público leigo. Assim, Wu vai ajudá-lo a entender tudo aquilo que você deveria ter entendido no ensino fundamental: as operações aritméticas com números inteiros, as operações com números racionais, os primeiros passos na teoria dos números. Você se sentirá mais seguro de si.

[b] Depois do livro de Wu, leia Measurement, de Paul Lockhart. Lockhart escreve bem (veja o texto O Lamento de um Matemático, que se tornou um dos textos mais lidos deste blogue), e nesse livro tão agradável vai ajudá-lo a entender o que significa ser matemático.

Tendo lido esses dois livros, você estará pronto para livros mais difíceis — e, acho eu, você estará desejando livros mais difíceis. Vai acontecer com você o que aconteceu comigo em 2010: ganhei o passatempo mais absorvente e satisfatório de todos, isto é, ganhei a matemática.

Resolver um problema sempre é provar um teorema


{1}/ Para começar, um problema

Quando você faz uma viagem de carro, é claro que será obrigado a variar a velocidade conforme o tempo passa; num instante, pode ir a 50 quilômetros por hora, mas, um minuto depois, está a zero quilômetro por hora, pois teve de parar no semáforo. Mas se divide a distância total D que percorreu pelo tempo t que levou para percorrer tal distância, obtém a velocidade média Vm daquela viagem. Se tivesse viajado à velocidade constante Vm durante todo o tempo t, teria percorrido a distância D — essa é a informação que procura ao calcular a velocidade média.

Problema. Suponha que tenha planejado uma viagem da cidade C1 à cidade C2, e, pelo mesmo caminho, de volta da cidade C2 à cidade C1. Suponha ainda: gostaria que a velocidade média da viagem como um todo fosse de 60 quilômetros por hora. Depois de chegar à cidade C2, contudo, você fez as contas e descobriu que viajou a 30 quilômetros por hora em média.

Qual deve ser a velocidade média na viagem de volta, de C2 a C1, de modo que consiga elevar a velocidade média da viagem como um todo para 60 quilômetros por hora?

* * *

Tente resolver o problema agora antes de continuar a leitura. A resolução está na seção 2 logo abaixo.



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{2}/ A resolução do problema

Muita gente, antes de resolver o problema, passa um par de horas em estado de confusão. Se isso aconteceu com você, é normal, e verá nesta seção o porquê.

Com álgebra. Se a distância total da viagem é D, então a distância entre C1 e C2, pelo caminho que escolheu, é D/2. Chame de t1 o tempo que levou de C1 a C2, e faça t1 + t2 = t, em que t2 denota o tempo da viagem de volta (de C2 a C1 pelo mesmo caminho) e t denota o tempo total da viagem de ida e volta.

Bem, a velocidade média de C1 a C2 foi de 30 quilômetros por hora. Veja o que pode concluir disso:

f-001

Se deve obter velocidade média total de 60 quilômetros por hora, então D/t = 60, isto é:

f-002

Só que, como já descobriu, D = 60t1. Faça a troca:

f-003

Zero é o único número real tal que x + 0 = x para todo número real x, e por isso t2 = 0.

Mas você se pergunta: isso faz sentido? Sua intuição lhe diz que não, e você volta ao trabalho, desta vez com outra abordagem. Mas a outra abordagem também te diz que a viagem de volta tem de ser instantânea. Você não se conforma e usa números de verdade: estabelece certo números de quilômetros entre C1 e C2, faz as contas para ver o valor numérico do tempo t1 de modo que possa percorrer a distância entre C1 e C2 à velocidade constante de 30 quilômetros por hora, usa os números que obteve para calcular o tempo t2 da viagem de volta, mas de modo que a velocidade média seja 60 quilômetros por hora, e mais uma vez chega a t2 = 0.

Aí, a certa altura, você verifica as contas várias vezes e se rende: não há erro em lugar nenhum. A álgebra deve estar certa: para que a velocidade média da viagem de ida e volta seja de 60 quilômetros por hora, a viagem de volta deve ser instantânea, isto é, você deve desaparecer no local de destino em C2 e, no mesmo instante, aparecer no local de partida em C1.

No entanto, fica inquieto. Sabe que resolveu o problema. Se estivesse num vestibular, e uma das alternativas fosse (B) t2 = 0, marcaria a alternativa (B). Mas sabe também que, embora tenha achado a resposta certa, não entendeu o problema.

Com palavras. Você pega o caderno e começa a escrever. Passa um tempão nisso, até que produz uma explicação:

“Eu planejava ir da cidade C1 à cidade C2, e voltar pelo mesmo caminho da cidade C2 à cidade C1. Eu também queria que a velocidade média da viagem como um todo fosse de 60 quilômetros por hora. Mas, quando cheguei à cidade C1, vi que percorri certa distância em certo intervalo de tempo. Se desejo dobrar a velocidade média, tenho de dobrar a distância que percorri, mas manter inalterado o intervalo de tempo! Para que consiga fazer isso nas condições do problema, é óbvio que devo voltar da cidade C2 à C1 em zero intervalo de tempo! Visto que isso é impossível, não tenho como aumentar a velocidade da viagem de volta de modo que a velocidade média total seja 60 quilômetros por hora, isto é, visto que a velocidade média da viagem de ida foi de 30 quilômetros por hora, a velocidade média da viagem de ida e volta será necessariamente menor que 60 quilômetros por hora, e não importa o quão ferozmente eu acelere o carro.”

“É fácil entender tudo isso caso eu escolha bem os números. Suponha que a distância entre C1 e C2 seja de 30 quilômetros. Visto que a velocidade média da viagem de ida foi de 30 quilômetros por hora, precisei de uma hora para ir de C1 a C2. Se quero que a viagem de ida e volta tenha velocidade média de 60 quilômetros por hora, preciso percorrer os 60 quilômetros de C1 a C2 e de C2 a C1 em uma hora. Mas já gastei a minha hora só na viagem de ida. Não importa o quanto acelere meu carro na viagem de volta, a viagem de ida e volta levará mais de uma hora, de modo que a velocidade média ficará menor que 60 quilômetros por hora!”

E nesse ponto você se dá por satisfeito: não apenas obteve o resultado ao recorrer à álgebra, como entendeu por que o resultado é verdadeiro. Para dizer isso de um jeito mais técnico: você não apenas resolveu um problema — também provou um teorema.

Observação: Alguns matemáticos vão resolver o problema primeiro com palavras, daí vão ficar inseguros, e depois vão conferir a resolução com álgebra. A ordem não importa. Resolver um problema, isto é, provar um teorema, quase sempre exige as duas abordagens: algum tipo de raciocínio lógico-dedutivo + algum tipo de narrativa.


{3}/ Resolver problemas, provar teoremas

455438063Hung-Hsi Wu, matemático americano, professor emérito na Universidade da Califórnia em Berkeley, é quem diz no ótimo livro Understanding Numbers in Elementary School Mathematics:

“Neste livro, quero principalmente usar linguagem precisa e raciocínio preciso para fazer deduções lógicas e com elas resolver problemas. Ou, como os matemáticos preferem dizer, para com elas provar teoremas. Não existe absolutamente nenhuma distinção lógica entre resolver um problema e provar um teorema.”

Vale a pena explorar o parágrafo acima à exaustão, pois ele contém sementes de ideias importantes.

Entender é a questão. Muito professor não aceitaria de imediato a equiparação “resolver um exercício de livro didático” = “provar um teorema”. Conforme as circunstâncias, talvez tenha razão. Se o estudante usou álgebra para descobrir que t2 = 0, e marcou corretamente a alternativa (B), mas não entendeu por que t2 não pode ter outro valor a não ser zero, então o estudante achou a resposta certa, mas não fez matemática.

Fazer matemática é a arte não de achar a resposta certa, mas sim de explicar tim-tim por tim-tim por que a resposta certa é certa.

Sendo assim, se o estudante marcou a alternativa (B), e além disso consegue escrever um breve ensaio explicando a seu leitor por que não pode haver outra alternativa certa além de t2 = 0, então ele não apenas resolveu um problema que viu num livro (ou num blogue), mas verdadeiramente fez matemática, isto é, provou um teorema.

(Esse ensaio não precisa necessariamente ser escrito. O estudante pode gravá-lo em vídeo; ou pode simplesmente apresentá-lo, oralmente, a quem quiser ouvi-lo.)

Os muitos nomes de “teorema”. O significado mais recente da palavra “teorema”, que provavelmente é o significado que Wu tinha em mente ao escrever aquele parágrafo, é este:

Teorema. Um teorema é qualquer proposição matemática verdadeira, isto é, estabelecida como verdadeira por princípio ou provada verdadeira a partir de teoremas verdadeiros por princípio. Se uma proposição matemática não é verdadeira (= é falsa), não é um teorema.

(Sempre se pode complicar um pouco mais, e dizer que o teorema é qualquer proposição verdadeira em determinada estrutura algébrica, e que um teorema em determinada estrutura algébrica não necessariamente é um teorema em outra estrutura, etc. Mas, nesta matéria, não é o caso de entrar em mais detalhes.)

Assim, para escolher uns poucos exemplos da matemática escolar, x = x é um teorema para todo valor de x. A equação 8 = 5 + 3 é um teorema, mas 8 = 5 + k só é um teorema se k = 3. (Eis um esboço do argumento: Ao recorrer às leis usuais da álgebra, você pode pensar mais ou menos assim: “Se 8 = 5 + k é um teorema, então posso tirar 5 unidades dos dois lados da equação para obter uma equação que também é um teorema. Sendo assim, 8 = 5 + k implica 8 – 5 = 5 + k – 5. Ora 8 – 5 denota o número real 3, pois 5 + 3 = 8. Além disso, 5 + k – 5 = 5 – 5 + k = 0 + k = k. Posso concluir, portanto, o seguinte: se 8 = 5 + k é um teorema, então k = 3 também é um teorema.”) E quanto a x2 = x3? É um teorema se x = 0 ou se x = 1; contudo, se x ≠ 0 e se x ≠ 1, não é um teorema.

(A expressão x2 = x3 captura uma pergunta: Existe um número real tal que seu quadrado seja igual a seu cubo?)

O padrão é sempre mais ou menos esse. Um teorema ou é uma proposição que você declara como sendo verdadeira por princípio (ou por hipótese), ou é uma proposição que você, por meio de linguagem precisa e argumentação precisa, deduz logicamente de outros teoremas.

No dia a dia, contudo, os teoremas recebem uma enormidade de nomes distintos, conforme o contexto. Talvez chame de “axioma” ou de “postulado” aquele teorema que você desde o início declara como sendo verdadeiro por hipótese. Ou talvez o chame de “hipótese” mesmo. Quanto àquelas afirmações que você deduz das hipóteses, com “linguagem precisa e raciocínio preciso”, talvez as chame de “teoremas”, “lemas”, “corolários”, “conclusões”, “teses”.

Assim, na prática do matemático, “resolver um problema” é sempre “verificar, por meio de demonstração inequívoca, se determinada proposição é um teorema”. No sistema dos números reais, x2 + 1 = 0 não é um teorema de jeito nenhum, pois não existe número real cujo quadrado seja negativo. No sistema dos números complexos, x2 + 1 = 0 é um teorema caso x = i ou caso x = –i; nos demais casos, nem no sistema dos números complexos x2 + 1 = 0 é um teorema. (Por exemplo, se x = i√2, então x2 + 1 = 0 não é um teorema no sistema dos números complexos.) No problema da velocidade média, t2 ≠ 0 não é um teorema, mas t2 = 0 é.

Autoconfiança. Tais distinções são importantes, especialmente no ambiente escolar. Elas não são meras firulas filosóficas — pois o que está em jogo é o amor próprio, tanto do professor quanto do aluno.

Um aluno de licenciatura em matemática, antes de se formar, talvez resolva milhares de problemas — problemas que viu em livros, listas de exercícios, palestras, seminários; ou problemas que propôs a si mesmo, por mera curiosidade. Coisas do tipo: “Prove que, se a e b são dois números reais, com a < b; e se n ≥ 2 é um inteiro; então (a + b)/n fica necessariamente entre a e b.” Quando se forma e se transforma em professor de matemática na rede básica de ensino, porém, talvez se sinta um matemático menor, ou medíocre, pois nunca resolveu “um problema de verdade”, isto é, nunca resolveu um problema inédito, que estabelecesse um teorema “com seu nome”. Como diz Wu, não existe nenhuma diferença metodológica entre provar que a < (a + b)/n < b é um teorema e provar qualquer outro teorema, seja ou não seja inédito. Ora, se o professor entra em sala de aula se sentindo medíocre, e se além disso de alguma forma passa essa impressão a seus alunos… isso é tão triste que chega a ser engraçado.

Sim, engraçado. Pois, numa faculdade de matemática, o aluno pode se gabar de fazer tudo o que qualquer matemático do mundo faz, já que está constantemente resolvendo problemas = provando teoremas. O aluno de engenharia civil não pode se gabar disso, pois não está construindo pontes estaiadas e arranha-céus. O aluno de engenharia mecânica não pode se gabar disso, pois não está construindo carros de Fórmula 1. O aluno de física não pode se gabar disso, pois não está estudando as partículas da matéria com um acelerador de partículas com 27 quilômetros de circunferência. Mas o aluno de matemática pode se gabar disso: “Não existe nenhuma distinção lógica entre resolver um problema e provar um teorema”; da mesma forma, não existe nenhuma distinção lógica entre provar um teorema já provado antes e provar um teorema inédito, desde que o aluno componha a prova por si mesmo.

Na escola básica, se o aluno também soubesse disso (porque seu professor soube contar essa história), seria muito bom. Quando ele se interessasse por um problema, e o resolvesse, e redigisse uma boa explicação dizendo por quais motivos sua resolução está correta, saberia que agiu feito qualquer grande matemático, Ávila ou Gowers, Gauss ou Euler, vivo ou morto, e é bastante possível que tal consciência lhe desse prazer e elevasse seu espírito. {❏}



{4}/ Apêndice: Alunos distraídos com problemas

Suponha que a escola básica um dia consiga passar a mensagem: “Ser matemático é se interessar por problemas de natureza matemática, propostos por outros ou imaginados por você, é trabalhar tanto quanto possível na tentativa de resolvê-los, e, uma vez que tenha resolvido um problema (= provado um teorema), ser matemático é caprichar na explicação de por que a resolução de seu problema (= a prova de seu teorema) tem de estar correta. Por fim, uma vez resolvido um problema, ser matemático é ir alegremente atrás de outro problema, correlacionado com o primeiro — ou totalmente diferente!” Nesse caso, é bem possível que o aluno resolva o problema da velocidade média e se interesse por um problema correlacionado: Em que condições o problema da velocidade média teria solução?

Talvez ele escreva o novo problema assim:

“Suponha que tenha de percorrer de carro certa distância D. Depois de percorrer distância equivalente a D/n em certo tempo t1 (com n ≥ 2 inteiro positivo), você parou num posto de serviços para esticar as pernas e tomar um café. Sua velocidade média nesse primeiro trecho de viagem foi, portanto, v1 = (D/n)/t1. Você gostaria de concluir a viagem com velocidade média equivalente a v, mas nota que v1 < v. Despreze o tempo que passou no posto de serviços. Quais as condições nas quais tem, pelo menos em tese, a capacidade de elevar a velocidade média da segunda parte da viagem e obter velocidade média total equivalente a v?”

É um problema maravilhoso!

Caso chame o tempo da segunda parte da viagem de t2, deve chagar a:

f-004

O divisor nvv1 é sempre positivo; logo, para que t2 seja um número positivo, nv1v > 0 implica nv1 > v. (Isto é, nv1 > v é um teorema.) Note que, no problema original, nv1 > v transformou-se em 2·30 > 60, isto é, 60 > 60, que não é um teorema desse sistema específico, e por isso você não pôde achar solução para o problema original. (Aliás 60 > 60 não é um teorema no sistema dos números reais, e o redator não consegue pensar numa situação em que 60 > 60 seja um teorema.)

E daí talvez o aluno queira saber mais: “E se eu limitar a velocidade máxima do segundo trecho da viagem? Pois o carro tem limitações técnicas, e além disso o motorista deve respeitar as leis de trânsito.”

É outro problema maravilhoso!

Percebe agora a situação em que o professor se meteu? Se ele consegue a proeza de fazer a classe gostar de matemática (= gostar de produzir boas explicações de por que a resposta certa é certa), arruma um bando de jovens cada um gastando seu tempo para ir numa direção distinta dos outros. Como vai cumprir o cronograma? Como vai interrompê-los, para que voltem a estudar o que deve cair em testes padronizados ou em vestibulares? Professores com experiência em ensinar matemática por meio de problemas dizem que realmente as aulas ficam mais selvagens, e que fica mais difícil se ater ao currículo. Talvez seja por isso que tantos professores Brasil afora prefiram se desviar pouco do livro didático, e ainda por cima escolhem um livro didático daqueles bem tradicionais, do tipo “definição, teorema, prova do teorema, exemplos”. {FIM}


Lembrete: “Teorema” é uma palavra grega que, nos tempos de Euclides, significava “espetáculo”, “festa”, isto é, “algo que vale a pena apreciar”. Não é verdade que resolver um problema é mesmo uma festa?