Fique forte na matemática: leia romances, biografias


Um juiz do século 17, Pierre de Fermat, se divertia nas horas vagas com problemas matemáticos do livro Aritmética, de Diofanto de Alexandria. Na margem de uma das páginas, Fermat escreveu algo do tipo “não existe solução no conjunto dos inteiros positivos para xn + yn = zn, onde n ≥ 3”, afirmação que ficou conhecida como o último teorema de Fermat. Andrew Wiles viu a equação pela primeira vez em 1963, quando tinha 10 anos. Ele procurava por problemas nos livros de uma biblioteca quando encontrou um livro de Eric Temple Bell, O Último Problema, com a história da hipótese de Fermat. Ficou encantado com um problema cuja equação é tão fácil de entender; 30 anos depois, deixou a comunidade científica espantada quando apresentou uma prova do teorema.

Simon Singh, físico e escritor de divulgação científica, contou a história de Andrew Wiles no livro O Último Teorema de Fermat. Escreveu tantos detalhes quanto possível para fazer o leitor sentir o gosto de perseguir a prova de um teorema por décadas. Várias pessoas que conhecem a história e o livro se inspiram, à sua maneira, com a perseverança de Andrew. Depois desse livro, Rodrigo Medeiros, um professor de matemática em Sousa, na Paraíba, mudou seu jeito de ensinar. Buscou uma prova com sólidos geométricos para o teorema de Pitágoras (isto é, a equação de Fermat com n = 2, que tem infinitas soluções), e passou a usá-la nas aulas como ponte entre a geometria plana e a espacial.

Fermat, Andrew, e Rodrigo já gostavam de matemática, mas de alguma forma mudaram o jeito de viver em razão de livros de divulgação. É possível imaginar: outros jovens, tendo acesso a livros assim (e não apenas a livros didáticos), acabariam por se aventurar na matemática. Suponha que exista um Andrew brasileiro de 10 anos de idade. É pouco provável que sua escola tenha uma biblioteca, pois, segundo a revista Educação nº 203, apenas 35% das escolas de ensino fundamental, tanto públicas quanto particulares, têm biblioteca. Se o Andrew brasileiro mantiver o interesse pela matemática até os 15 anos, suas chances melhoram — das escolas de ensino médio, 72% têm biblioteca. Mas será que há nelas livros como O Último Teorema de Fermat? Ou será que na seção de matemática, se houver uma, o Andrew brasileiro encontrará apenas livros didáticos?

Antonio Carlos Brolezzi, professor no Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo, dá aulas de história da matemática e há tempos percebeu o poder de um bom livro de divulgação. No início do curso, ele mostra aos alunos uma lista de títulos, que inclui O Último Teorema de Fermat e O Andar do Bêbado; cada um dos alunos deve ler um deles, ou mais de um, para depois se juntar em grupo e organizar um seminário sobre o livro. Certa vez uma turma examinava os livros da lista e alguém mencionou em voz alta um dos títulos. Uma aluna se pronunciou:

“Esse eu tenho!”

Alguém mencionou outro título, e de novo a aluna disse:

“Esse eu também tenho!”

Por fim, ela tinha cinco livros da lista. Quando estava no ensino médio, um professor os recomendou e ela devorou cada um deles, e por causa deles entrou na licenciatura.

Livros milagrosos. Poucas pessoas escrevem livros de divulgação matemática, mas não tão poucas quanto uma pessoa comum imaginaria. Em português, há livros para meses de leitura; em inglês, para anos. Fora do Brasil, físicos como Simon Singh e Leonard Mlodinow ou matemáticos como Alex Bellos e Ian Stewart já publicaram vários livros ótimos para instigar a curiosidade dos mais jovens.

No Brasil, Júlio César de Melo e Sousa (1895-1974) escreveu o famoso O Homem que Calculava, mas sob o pseudônimo de Malba Tahan. No livro, ele conta a história de um sábio viajante árabe, que encontra e resolve probleminhas de matemática por onde passa. Leitores sem prática com matemática talvez achem os problemas difíceis, mas podem ser resolvidos com boa interpretação de texto e aritmética escolar. Muitas pessoas que leram O Homem que Calculava quandoeram criança se recordam do livro com prazer, ainda que continuem a pensar: “Não tenho cabeça para a matemática.”

Tudo bem. Os autores de divulgação não têm a tarefa de ensinar os leitores a estudar e a se dar bem no vestibular, mas sim contar histórias nas quais a matemática é importante. O leitor tem a chance de vê-la como realmente é: o personagem principal é um ser humano, e ele faz parte de um enredo tortuoso com suspense, crise, às vezes até chororô. Ninguém estranha quando o professor de português sugere aos alunos: “Anotem aí: neste ano leremos O Gênio do Crime: Uma Aventura da Turma do Gordo; o autor é João Carlos Marinho.” Também não estranha quando, depois da leitura, alguns digam: “Que livro legal! Será que na biblioteca tem outros livros desse escritor?”

Ao mesmo tempo, o professor de português sabe a importância de ensinar a separação de sílabas, a conjugação de verbos, o uso de pronomes pessoais do caso oblíquo. Contudo, a velha recomendação persiste: para escrever bem, o aluno precisa ler bem, e ler muito. Seria esquisito um jovem dizer:

“Quero ser escritor, porque sempre gostei de separar sílabas e adorei todas as gramáticas normativas da língua portuguesa que já li!”

Por que o professor de matemática (e a escola, e os pais) não faz o mesmo? Por que todos esperam que a criança passe a vida resolvendo exercícios de fixação sobre equações polinomiais de segundo grau e, a partir apenas disso, sonhe com uma carreira na matemática?

Onde ler? Livros são caros até para gente rica, de modo que só existe um jeito de ter acesso a muitos livros: entrar pelas portas de uma biblioteca. Para quem gosta de ler, a biblioteca é um parque de diversões. E, para quem gosta de matemática, uma seção com livros didáticos e com livros de histórias, problemas, e desafios matemáticos é, muitas vezes, o único jeito de descobrir a verdade: matemática é superlegal e serve até de enredo para narrativas.

Mas será que os donos de escolas colocam livros de divulgação matemática na biblioteca? Será que o governo investe em livros desse tipo? Nas escolas particulares há mais bibliotecas, mas mesmo assim é relativamente fácil encontrar escolas particulares sem livros de divulgação matemática na biblioteca — em menos de uma semana, a reportagem da revista Cálculo encontrou cinco só na cidade de São Paulo. Nas escolas públicas, há menos de tudo, tanto bibliotecas quanto seções especializadas em matemática — a reportagem encontrou sete.

Em algumas dessas escolas, o estudante encontra a história em quadrinhos Logicomix: Uma Jornada Épica em Busca da Verdade, dos gregos Apostolos Doxiadis e Christos Papadimitriou. Eles contam a vida de Bertrand Russell e mencionam os problemas de lógica matemática que obcecaram os matemáticos nos primeiros anos do século 20. Antonio Carlos, do IME, gosta dessa HQ porque, além de explicar temas complicados como o teorema de Gödel e as investigações sobre os fundamentos da matemática, mostra um pouco da vida particular de Russell e dos matemáticos da época. “Isso tudo transformado em história em quadrinhos! As pessoas que gostam de HQ acham que foi muito bem-feita: os desenhos, o enredo com metalinguagem.”

Crianças pequenas que aprenderam a contar e a ler encontram em algumas das escolas livros como Sopa de Bruxa, no qual veem como fazer medições, ou Aprendiz de Mágico, sobre números ordinais. “Não tem idade para se apaixonar pela matemática”, diz Antonio. “O fundamental do episódio de Andrew Wiles foi ter contato com algo que uma criança de 10 anos podia entender. Esse é o desafio central da divulgação científica: fazer com que a pessoa sem conhecimento rigoroso entenda o que está acontecendo num universo fechado como o da matemática.”

Uma criança de 10 anos pode entender o último teorema de Fermat e uma criança de 6 consegue entender os números ordinais. “Mesmo num tema mais difícil, o estudante percebe o que está se passando e entende um pouco desse mundo obscuro”, diz Antonio. Ele diz que o legal, nesses livros, é que o autor se esforça para não “baratear as ideias”, isto é, o autor não divulga algo difícil como se fosse fácil.

Apostolos Doxiadis também escreveu Tio Petros e a Conjectura de Goldbach, no qual conta a história de um homem obcecado por um problema em aberto desde 1742. “Esse livro mostra o que é uma demonstração, uma das tarefas mais difíceis do matemático”, diz Antonio. “Ele chama atenção para o fato de que apenas demonstrar um teorema já é um grande feito.” Os estudantes não costumam perceber a importância de demonstrar afirmações, pois, no ambiente escolar, só têm contato com afirmações verdadeiras há muitos séculos; além disso, sabem que o professor de matemática não ensina nada errado. “Essa cultura passa uma ideia muito pobre da natureza da matemática.”

Giuseppe Nobilioni, coordenador de matemática do Objetivo, também gosta d’O Último Teorema de Fermat e d’O Homem que Calculava, mas acha difícil fazer com que os alunos leiam um livro, pois eles preferem a internet. “No máximo, a gente os convence a ler literatura, porque precisam dela para passar no vestibular. Fora isso, é difícil.”

(Giuseppe toma o cuidado de não pichar a internet, onde há muita coisa interessante. Mas o aluno não consegue entender direito o que acha na internet se não vive continuamente o ciclo narrativa, conceitos, exercícios, problemas e, de novo, narrativa, etc. Esse ciclo deixa o aluno mais animado.)

Já é velha essa história de contar histórias sobre a vida de matemáticos, físicos, astrônomos… Poucos sabem que Arquimedes calculou o valor aproximado de π no século 3 antes de Cristo, ou o feito de que mais se orgulhava: a relação entre o volume da esfera e o volume do cilindro. Mas com certeza muita gente conhece a lenda de como saiu correndo pelado pelas ruas de Siracusa depois de resolver o problema da coroa de Hierão. Vitrúvio, um arquiteto romano, foi quem colocou a história do rei Hierão no papel: o rei deu a um ourives ouro para a construção da coroa, mas, quando ela ficou pronta, o rei ficou desconfiado. Será que o ourives havia misturado prata ao ouro? Por isso, consultou Arquimedes.

Durante um banho, Arquimedes notou que, conforme entrava na banheira, fazia o nível da água subir; teve imediatamente a ideia de como usar a água deslocada para levantar informações sobre o peso e a densidade de um objeto qualquer. Ficou tão feliz que saiu correndo pelado pelas ruas, gritando Eureca! “Provavelmente, essa história é fictícia”, diz Antonio. “Vitrúvio dizia que Arquimedes descobriu muitas coisas por acaso, como no episódio da banheira.” Mas esse escritor viveu 200 anos depois de Arquimedes; como ele sabia que Arquimedes descobria as coisas por acaso? A história tem sido um sucesso, mas hoje escritores de divulgação científica preferem mostrar um matemático mais próximo da realidade, um sujeito comum que faz suas descobertas depois de bastante esforço e trabalho. Para Antonio, o interessante mesmo é que até hoje a história da banheira representa bem como a resolução de problemas traz uma certa euforia. “Isso é algo que, às vezes, a escola esconde, mas que os livros de divulgação podem mostrar.” {FIM}


Observações:

1. Publiquei essa matéria pela primeira vez na revista Cálculo: Matemática para Todos, edição 40, maio de 2014, pág. 54. A versão que acabou de ler foi revista e ligeiramente reescrita, mas as informações factuais são as que valiam na ocasião.

2. As entrevistas foram feitas pelo jornalista André Eler.

3. “O último teorema de Fermat” deveria se chamar “a última conjectura de Fermat”, já que, nos tempos de Fermat, a conjectura era apenas uma conjectura — não havia sido provada. O nome pegou porque Fermat escreveu numa das margens de sua cópia de Diofanto: “Descobri uma demonstração maravilhosa desta proposição. Contudo, ela não cabe nas margens deste livro.” Sendo Fermat quem era, muita gente achou que ele realmente tinha uma demonstração da conjectura, que, no entanto, se perdeu — e daí o nome, “O último teorema de Fermat”. Provavelmente, contudo, Fermat se enganou: achou que tinha uma demonstração, depois viu que não tinha, mas se esqueceu de riscar o comentário.

4. Há dois romances bem escritos nos quais a matemática é importante, um mais antigo e sóbrio, o outro mais recente e divertido: O Jogo das Contas de Vidro, de Hermann Hesse, é o mais antigo e sóbrio. É inadequado para crianças, mas adequado para jovens adultos. E Devoradores de Estrelas, de Andy Weir, é o mais recente e divertido — além de adequado para qualquer um que já seja um bom leitor.

5. Se o professor de matemática fizer uma boa parceria com o de inglês, daí poderá propor à classe uma grande quantidade de livros infantis nos quais ideias matemáticas são importantes e aparecem da maneira correta: por exemplo, The Dot and the Line, de Norton Juster, que é uma história de amor entre um ponto e uma linha.

6. Tio Petros e a Conjectura de Goldbach. Em 1742, os matemáticos Christian Goldbach e Leonard Euler trocavam cartas sobre uma afirmação que acreditavam ser verdadeira, mas não sabiam como provar: “Todo número par maior que 2 é a soma de dois números primos.” Um estudante no ensino fundamental sabe o que é um número par e o que é um número primo, portanto pode testar a conjectura com alguns exemplos:

4 = 2 + 2

8 = 3 + 5

64 = 3 + 61

150 = 11 + 139

Contudo, nenhum matemático capaz de entender os conceitos mais avançados da área conseguiu demonstrar a conjectura, ainda que pareça tão simples. No livro de Apostolos Doxiadis, o estudante conhece a história de Tio Petros, um matemático obcecado pela demonstração.

7. O Homem que Calculava. Júlio César de Melo e Sousa (1895-1974) escreveu vários livros de divulgação matemática sob o pseudônimo de Malba Tahan, e o mais famoso deles conta a história de um viajante árabe, Beremiz, que resolve problemas matemáticos pelos lugares por onde passa. Numa das histórias, Beremiz e o narrador da história ajudam um rico mercador de Bagdá, que está caído na estrada quase a morrer de fome. O narrador tem três pães e Beremiz tem cinco pães, que devem durar até a próxima cidade. O mercador então propõe que juntem os pães e os dividam entre os três a cada refeição. E promete que, quando chegarem a Bagdá, pagará oito moedas de ouro aos dois.

Quando chegam ao destino, o mercador dá a Beremiz cinco moedas e ao narrador, três moedas. Beremiz então interfere, dizendo que seria matematicamente correto receber sete moedas e o narrador, uma moeda. Ele começa a justificar sua posição mais ou menos assim:

“Eu tinha cinco pães e meu companheiro tinha três pães. Durante a viagem, eu pegava um pão, dividia em três e dava um pedaço para cada um do trio; então, ao final da viagem, oito pães renderam 24 pedaços, dos quais cada um de nós comeu oito pedaços.”

O leitor pode equacionar essa história com frações, representando cada pão com uma linha que vai de 0 a 1 e dividindo cada linha em três partes, isto é, em pedaços de 1/3 de unidade. Então, nota que Beremiz tinha cinco pães, que divididos em partes de 1/3 equivalem a quinze pedaços. (Pois 5 = (1/3) · 15.)

Depois faz o mesmo com os pães do narrador: 3 = (1/3) · 9. Se a contribuição de Beremiz foi de 15 pedaços de pão, a contribuição do narrador foi de 9 pedaços.

Então, o leitor nota que, como Beremiz comeu oito pedaços, deu ao mercador, efetivamente, sete pedaços. Já o narrador também comeu oito pedaços, e portanto deu ao mercador apenas um pedaço. Assim conclui que o protesto de Beremiz faz sentido: ele deveria receber sete moedas, e o narrador, uma moeda.

(Se eu fosse o mercador, ficaria irritado com a mesquinharia de Beremiz.)

Malba Tahan usa o livro para contar várias histórias como essa, que contêm problemas passíveis de resolução com a aritmética escolar e muita atenção. Um leitor jovem faz bem se tenta explicar por si mesmo a matemática de cada história. Muito estudante sente dificuldade com provas e vestibulares, ou porque não consegue transformar narrativas em expressões matemáticas ou porque olha para uma expressão e não consegue ver nela uma narrativa.

8. Lembrete: quando Arquimedes saiu correndo pelado pelas ruas de Siracusa (segundo a lenda), não fez nada de muito excêntrico. Os antigos gregos davam pouca importância à nudez masculina. Nos ginásios, por exemplo, os homens se exercitavam nus. Foi depois do cristianismo, com suas regras comportamentais mais pudicas, que a distração de Arquimedes ganhou o rótulo de “esquisitice”.