‘O algoritmo da divisão’ — um nome infeliz


Qual resultado você obtém ao dividir 7 por 3? Pode responder à pergunta de duas maneiras, uma certa, e uma menos certa — talvez, até, menos do que menos certa.

Resposta certa. “Ao dividir 7 por 3, obtenho como resultado sete terços, isto é, 7/3, visto que 7 = (7/3) × 3.”

Resposta menos certa. “Ao dividir 7 por 3, obtenho como resultado quociente igual a 2 e resto igual a 1, visto que 7 = 2 · 3 + 1.”

A primeira resposta, a certa, está de acordo com a definição de divisão de um número real por outro: Se x e y são dois números reais, com y > 0, daí a divisão de x por y, que pode denotar com x/y, é o número real q tal que x = qy. Em outras palavras, a divisão de um número real x por um número real y > 0 produz um e só um número real q como resultado. No contexto de números reais, essa definição é a mais abrangente possível.

A segunda resposta é menos certa porque a divisão de um inteiro x por um inteiro y > 0 produz dois outros inteiros, o quociente q e o resto r. Eis a definição de divisão com resto mais usada no ensino fundamental (pelo professor): Dados dois números inteiros a e d, com d > 0, existem dois e somente dois outros inteiros q e r tais que a = qd + r e 0 ≤ r < d. Nomes: a é o dividendo, d é o divisor, q é o quociente, e r é o resto.

Na verdade, essa definição ensinada no ensino fundamental é um teorema. Segundo Hung-Hsi Wu, um especialista americano em didática da matemática, a escola deve fazer todo esforço possível para que as crianças compreendam por que o teorema é verdadeiro. (Resumindo: fazer com que r seja menor que d, mas maior ou igual a zero, provoca, como consequência, o fato de que o par de inteiros q e r seja único. Se você retirar essa restrição, daí há infinitos pares de inteiros q, r tais que a = qd + r ; no caso da divisão com resto de 7 por 3, por exemplo, 7 = (–5) · 3 + 22.) “Com o teorema da divisão com resto”, escreveu Wu num de seus livros, “o estudante obtém dois números, o quociente e o resto. Logo, a divisão com resto é intrinsecamente diferente da divisão.” Mais adiante, Wu redigiu uma queixa. “Na matemática universitária, o teorema da divisão com resto é lamentavelmente chamado de teorema da divisão. Isso é um abuso de linguagem, que só é desculpável quando o estudante sabe precisamente a diferença entre divisão e divisão com resto.”

Não quero com este texto pichar o conceito de divisão com resto; pois, sem ele, não há aritmética módulo m, congruências lineares, anéis quocientes — sem ele, todo o prédio da teoria dos números desaba. Wu reconhece isso; como gesto de boa vontade, sugere um problema que, segundo diz, até professores de matemática acham bonito e sutil.

Problema. Use o algoritmo da divisão com resto. Seja r o resto de a quando você divide a por d, sendo a e d inteiros, com d > 0. Suponha que a = mA e d = mB para inteiros m, A, e B. Seja R o resto de A quando você divide A por B com o algoritmo da divisão com resto. Qual é a relação entre R e r? Escreva uma explicação detalhada.

Tente resolver o problema por si mesmo, e escreva sobre ele tão completamente quanto puder, antes de ver a resolução que proponho mais abaixo e uma discussão um pouco mais consequente sobre o abuso de linguagem.

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Resolução. Se a, d são inteiros, com d > 0, daí por definição a divisão com resto de a por d é a seguinte:

(I) a = qd + r , com 0 ≤ r < d

Mas a = mA e d = mB. Isso significa que a e d têm um fator comum igual a m. Faça a substituição.

(II) mA = qmB + r , com 0 ≤ r < mB

Visto que d > 0, m ≠ 0. Divida a linha (II) inteira por m.

(III) A = qB + r/m , com 0 ≤ r/m < B

A linha (III) satisfaz as condições do teorema da divisão com resto, pois r/m é um inteiro (se A e qB são inteiros, então r/m é um inteiro) e, além disso, r/m é maior ou igual a zero e menor que o divisor B.

Com tudo isso, já pode concluir o que gostaria de saber: r/m = R, ou, o que é equivalente, r = mR. Assim, se você pode dividir tanto o dividendo a quanto o divisor d pelo fator comum m, então pode igualmente dividir o resto r por m. Dizendo isso de outra forma, a relação de r com R é a seguinte:

Relação de r com R. Se vai calcular a divisão com resto do dividendo inteiro a pelo divisor inteiro d > 0, para obter o quociente q e o resto r, com 0 ≤ r < d; e se percebe que o inteiro m é fator tanto a quanto de d; então pode imediatamente concluir que m também é fator do resto r. Em mais palavras: r é um múltiplo de R, e R é fator de r. De forma análoga, se vai calcular a divisão com resto do inteiro A pelo inteiro B > 0, para obter o quociente q e o resto R, com 0 ≤ R < B; se entende que A e B são primos entre si; e se além disso gostaria de multiplicar tanto A quanto B pelo inteiro m > 0; daí basta multiplicar o resto R por m para obter a divisão com resto do inteiro mA pelo inteiro mB. Portanto, o quarteto ordenado de números inteiros (A, B, q, R), no qual A, B são primos entre si, B > 0, e A = qB + R, com 0 ≤ R < B, é um quarteto de números que representa a divisão de A por B segundo o algoritmo da divisão com resto; e com ele você pode gerar infinitos outros quartetos ordenados (mA, mB, q, mR), um para cada valor inteiro de m > 0, que representam, cada um deles, a divisão do inteiro mA pelo inteiro mB conforme o algoritmo da divisão com resto.

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Na postagem Estudantes Empacados no Tempo, o matemático britânico Keith Devlin afirma, “Dizer que a multiplicação é adição repetida é pura e simplesmente errado. Aliás, a potenciação não é uma multiplicação repetida (e se fosse, seria então uma adição repetida, repetida); uma função não é uma máquina que pega um número na entrada, faz algo sobre ele e produz um número na saída; a integração não é uma antidiferenciação.” Ele poderia ter afirmado também, se conhecesse a objeção de Hung-Hsi Wu, “A divisão de inteiros não é uma mera aplicação do algoritmo da divisão com resto.”

É claro que o algoritmo da divisão com resto é útil em situações teóricas ou práticas nas quais você não pode subdividir a unidade, isto é, só pode trabalhar com inteiros. É o caso da aritmética módulo m (situação teórica) ou da divisão de 7 bolinhas de gude entre três crianças (duas bolinhas para cada uma delas, e sobra uma bolinha). Mas isso não autoriza a escola a passar a ideia de que “divisão” é o mesmo que “divisão de inteiros com resto”, pois essa ideia está errada. “Minha insistência em conceitos e definições muito claros tem uma explicação”, escreveu Wu. “Na matemática, é fundamental a ideia de que o que você vê é exatamente o que você tem. Se uma pressuposição não é clara nem explícita, não deve ser usada por ninguém — nem por professores, nem por estudantes.” Uma pessoa que parte da pressuposição de que “divisão” pode ser traduzido como “divisão de inteiros com resto” está trabalhando com “ideias mutiladas e confusas”, para usar a linguagem de Spinoza. A escola deve fazer o possível para evitar isso, pois há muito em jogo: para Spinoza, só com ideias claras e distintas o ser humano pode se tornar efetivamente potente e ter a chance de uma vida feliz. {FIM}


Observações:

1. Tirei as declarações de Wu do livro Understanding Numbers in Elementary School Mathematics, capítulo 7, “The Long Division Algorithm”. Esse livro é excelente. Há uma tradução dele para o português de Portugal.

2. Veja também a postagem Luiz Márcio Imenes se Contrapõe a Keith Devlin.

3. Alguns autores, em vez de escrever “algoritmo da divisão com resto”, escrevem “algoritmo euclidiano da divisão”. É melhor do que nada, pois o termo “euclidiano” avisa o leitor de que não se trata da divisão usual de um número real por outro. Mas prefiro “algoritmo da divisão com resto”, que é mais explícito. Na matemática, explicitude é virtude.

4. O leitor Desconfiado pode propor a seguinte objeção: “Ora, só podemos construir os números reais quando temos números racionais; e só podemos construir os racionais quando temos frações. Isso significa que o algoritmo da divisão com resto tem precedência sobre a definição a mais abrangente possível de divisão, pois faz parte da ‘infraestrutura’ de construção dos reais. Digo isso porque o algoritmo da divisão com resto surge assim que surge a ideia de fração.” Entendo o que Desconfiado quer dizer, mas discordo. Na matemática, uma manobra muito comum e produtiva é esta: o matemático usa a ideia A para definir a B, a B para definir a C, e assim por diante, até que chega a uma ideia Z muito precisa e abstrata. Daí ele (ou ela) volta atrás e, usando a ideia Z como referência, reescreve todas as ideias anteriores, para que, desde o começo, sejam perfeitamente consistentes com Z. Parece que Hung-Hsi Wu e Keith Devlin estão a dizer o seguinte: ao longo do ensino básico, os professores de matemática devem se esforçar para que, quando o aluno finalmente estudar Z (talvez já na faculdade), não fique perplexo; ao contrário, sinta que Z é consequência natural de tudo o que viu na escola.

5. Para Spinoza, ninguém é potente a partir de ideias mutiladas e confusas, mesmo que fique riquíssimo, comande exércitos, e domine o mundo. Ideias claras e distintas são condição necessária para a potência humana.

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