Três brincadeiras com a divisão por 9


Brincadeira #1. “Escolha um algarismo de 0 a 9”, diz o adulto à criança em idade escolar.

“Escolho o 6.”

O adulto pensa um pouco e anota na lousa: 68.

“Escola outro algarismo de 0 a 9.”

“Escolho o 5.”

O adulto pensa mais um tempo, como se estivesse resolvendo um problema difícil, e anota na lousa: 6851.

“Você escolheu dois algarismos, e eu escolhi outros dois, com base nos algarismos que você escolheu. Digo agora que, se você formar um outro número com os algarismos de 6851, e se tirar esse número de 6851, o resultado é divisível por 9.”

A criança pega 6851 e forma 1685, e usa a calculadora do celular para calcular 6.851 – 1.685 = 5.166, e então divide 5.166 por 9 para obter 574.

“É verdade!”, ela diz com assombro. “Como você fez isso?”

“Eu tenho meus truques.”

* * *

Pegue um inteiro não negativo x qualquer, grafado no sistema posicional decimal comum. Pegue qualquer inteiro y que possa montar com uma permutação dos algarismos de x. Considere o valor absoluto da diferença entre x e y, isto é, faça xy se x > y ou yx se y > x.

Problema 1. Veja se identifica algum padrão e formule uma hipótese a respeito dele.

* * *

Por exemplo, o inteiro 231.

231 – 231 = 0 ;

231 – 213 = 18 = 2 · 32 ;

231 – 123 = 108 = 22 · 33 ;

231 – 132 = 99 = 32 · 11 ;

321 – 231 = 90 = 2 · 32 · 5 ;

312 – 231 = 81 = 34

Se fizer isso com vários inteiros, cedo ou tarde vai chegar à seguinte hipótese: sempre é o caso de que 32 é fator de |xy|. Reescrevendo o exemplo de 231 à luz da hipótese:

231 – 231 = 0 · 32 ;

231 – 213 = 18 = 2 · 32 ;

231 – 123 = 108 = 22 · 32 · 3 ;

231 – 132 = 99 = 32 · 11 ;

321 – 231 = 90 = 2 · 32 · 5 ;

312 – 231 = 81 = 32 · 32

Ou então, melhor dizendo:

Hipótese H1. Considere o inteiro não negativo x, grafado no sistema posicional decimal hindu-arábico. Subtraia de x qualquer inteiro y que possa formar com uma permutação dos algarismos de x, e calcule o valor absoluto |xy| da diferença entre x e y. Daí 9 divide |xy|, isto é, 32 é um dos fatores de |xy|.

Professores experientes dizem que sempre há um aluno (ou aluna) que levanta essa hipótese, tanto no ensino fundamental quanto no médio.

Problema 2. Como pode provar a hipótese? (Dica: use a aritmética ao módulo 9.)

Problema 3. Como pode se preparar para ajudar o aluno, que não tem as mesmas ferramentas teóricas que você, a provar a hipótese com as ferramentas que ele tem?

* * *

Resolução do problema 2. Na postagem Álgebra Abstrata: Um Amor à Primeira Vista, você encontra os elementos teóricos para montar uma resolução como a que verá em seguida. Importante: note que, ao módulo 9, [10n] = [1], expressão na qual n é um inteiro não negativo. (Lembrete: nesta postagem, [x] denota o conjunto de inteiros congruentes a x (mod 9), isto é, [x] = {y : y ∈ ℤ ∧ yx (mod 9).)

Prova da hipótese H1. Faça x um inteiro não negativo qualquer. Faça drdr–1dr–2d1d0 a representação decimal de x. Por exemplo, se x é o inteiro 9.745, daí d3 = 9, d2 = 7, d1 = 4, e d0 = 5 e, além disso, x = 9 · 103 + 7 · 102 + 4 · 101 + 5 · 100.

Pensando sempre assim, a linha a seguir é verdadeira.

x = dr · 10r + dr–1 · 10r–1 + dr–2 · 10r–2 + ··· + d1 · 10 + d0

Mas daí, sempre ao módulo 9:

[x] = [dr · 10r + dr–1 · 10r–1 + dr–2 · 10r–2 + ··· + d1 · 10 + d0]

= [dr · 10r] + [dr–1 · 10r–1] + [dr–2 · 10r–2] + ··· + [d1 · 10] + [d0]

= [[dr] · [10r]] + [[dr–1] · [10r–1]] + [[dr–2] · [10r–2]] + ··· + [[d1] · [10]] + [d0]

= [[dr] · [1]] + [[dr–1] · [1]] + [[dr–2] · [1]] + ··· + [[d1] · [1]] + [d0]

= [dr] + [dr–1] + [dr–2] + ··· + [d1] + [d0]

= [dr + dr–1 + dr–2 + ··· + d1 + d0]

xdr + dr–1 + dr–2 + ··· + d1 + d0 (mod 9)

Essa última linha diz que todo inteiro, grafado na notação posicional decimal, é congruente (mod 9) com a soma de seus algarismos.

Faça agora y um algarismo que vai montar com uma permutação dos algarismos de x. Daí dirdir–1dir–2di1di0 é a representação decimal de y, na qual dir, dir–1, dir–2, …, di1, di0 é uma das permutações dos algarismos de x. Usando o mesmo argumento logo acima, mutatis mutandis:

ydir + dir–1 + dir–2 + ··· + di1 + di0 (mod 9)

Em palavras, y é congruente com a soma da permutação dos dígitos de x. Contudo, vale lembrar que a adição é comutativa (a ordem das parcelas não altera a soma), e portanto, ao módulo 9:

[x] = [y] ;

[xy] = [dr  + dr–1 + dr–2 + ··· + d1 + d0] – [dir + dir–1 + dir–2 + ··· + di1 + di0] ;

[xy] = [0] ;

xy ≡ 0 (mod 9)

E essa última linha prova a hipótese H1: 9 divide |xy|, isto é, 32 é um dos fatores de |xy|.

* * *

Resolução do problema 3. O problema 3 é mais difícil que o 2. Provar a hipótese H1 sem as ferramentas da aritmética ao módulo m requer do estudante uma boa dose de astúcia.

Um jeito de começar é pedir para o estudante provar o seguinte: Um inteiro não negativo é divisível por 9 se-se a soma de seus algarismos é divisível por 9.

O primeiro passo é notar que, quando o estudante divide uma potência de 10 por 9, o resto é sempre igual a 1. Por exemplo, 100.000 = (11.111 · 9) + 1. Isso porque 100.000 – 1 = 99.999 = 11.111 · 9. Em geral:

10n = (111···1 · 9) + 1

Expressão na qual 111···1 tem n algarismos iguais a 1. Veja como usar esse fato na prova de que 243 é divisível por 9:

243 = 2 · 100 + 4 · 10 + 3

Substitua as potências de 10.

243 = 2 · (11 · 9 + 1) + 4 · (1 · 9 + 1) + 3

Use a propriedade distributiva da multiplicação sobre a adição.

243 = (2 · 11 · 9 + 2) + (4 · 9 + 4) + 3

Use as propriedades comutativa e associativa da adição para reorganizar os termos à direita da igualdade, com os termos claramente divisíveis por 9 reunidos numa parcela, e os outros termos reunidos em outra.

243 = (2 · 11 · 9 + 4 · 9) + (2 + 4 + 3)

Visto que 9 divide a primeira parcela (2 · 11 · 9 + 4 · 9), daí, se 9 também divide 243, então obrigatoriamente 9 divide a parcela (2 + 4 + 3), isto é, 9 tem de dividir a soma dos algarismos de 243. Da mesma forma, visto que 9 divide a primeira parcela (2 · 11 · 9 + 4 · 9) e também divide a parcela (2 + 4 + 3), então obrigatoriamente 9 divide o número 243.

Depois de repetir essa prova para alguns inteiros divisíveis por 9 (ou não), o estudante pode generalizá-la para um inteiro x com 4 algarismos, por exemplo o inteiro d3d2d1d0, em que d3, d2, d1, d0 são algarismos ou dígitos de 0 a 9.

x = d3 · 103 + d2 · 102 + d1 · 10 + d0

Substitua as potências de 10.

x = d3 · (111 · 9 + 1) + d2 · (11 · 9 + 1) + d1 · (1 · 9 + 1) + d0

Use a propriedade distributiva da multiplicação sobre a adição.

x = 111 · 9 · d3 + d3 + 11 · 9 · d2 + d2 + 1 · 9 · d1 + d1 + d0

Use as propriedades comutativa e associativa da adição para reorganizar os termos à direita da igualdade, com os termos claramente divisíveis por 9 reunidos numa parcela, e os outros termos reunidos em outra.

x = (111 · 9 · d3 + 11 · 9 · d2 + 1 · 9 · d1) + (d3 + d2 + d1 + d0)

Visto que 9 divide a primeira parcela (111 · 9 · d3 + 11 · 9 · d2 + 1 · 9 · d1), daí, se 9 também divide x, então obrigatoriamente 9 divide a segunda parcela (d3 + d2 + d1 + d0), isto é, 9 divide a soma dos algarismos de x — e vice-versa, mutatis mutandis.

A partir desse ponto, o estudante está pronto para generalizar essa prova para um inteiro não negativo com número não especificado de algarismos. Por último, usando a propriedade comutativa da adição, ele tem condições de provar a hipótese H1.

* * *

Brincadeira #2. “Escolha num número de 0 a 100”, diz o adulto à criança em idade escolar.

“Escolhi!”

“Me diga qual é.”

“Escolhi o 77.”

O adulto fica pensando um tempão, fazendo o maior teatro, como se fosse o gênio dos gênios.

“Coloque três zeros antes de 77.”

“Entendi: 00077.”

“Sim. Agora, embaralhe os algarismos de 00077 para formar um novo número.”

“Pode ser 70007?”

“Pode. Tire o número que você pensou primeiro, o 77, de 70007, que o resultado da subtração é divisível por 9.”

“Como você sabe?”

“Eu tenho meus truques.”

A criança pega o celular, ativa a calculadora, calcula 70.007 – 77 = 69.930, e depois divide 69.930 por 9, o que dá 7.770.

“É verdade!”

Brincadeira #3. “Pense num número, mas não me diga qual é.” O adulto fica olhando o rosto da criança com tremenda intensidade.

“Pronto!” A criança pensou em 6.906.

“Quantos algarismos tem o seu número?”

“Tem quatro.”

O adulto pensa um tempão, fazendo o maior teatro, examinando de vez em quando o rosto da criança.

“Então coloque o algarismo 1 entre o primeiro e o segundo algarismo, coloque os algarismos 22 entre o segundo e o terceiro, e coloque os algarismos 333 entre o terceiro e o quarto. Pode anotar num papel, se quiser, mas não mostre para mim.”

A criança anota 6192203336.

“Agora forme um número com uma permutação dos algarismos do número que você anotou no papel.”

A criança forma, por exemplo, 1263239063.

“Agora tire um número do outro. Pode tirar o menor do maior. Digo que o resultado é divisível por 9.”

A criança usa o celular para calcular 6.192.203.336 – 1.263.239.063 = 4.928.964.273, e depois divide 4.928.964.273 por 9 para obter 547.662.697.

“É verdade! Como você fez isso?”

“Eu tenho meus truques. O segredo é saber quais algarismos adicionar entre os algarismos do número que você pensou, conforme o número de algarismos do número que você pensou, e conforme também o movimento dos seus olhos.”

Essa última frase é falsa, mas um truque de mágica é, como o nome diz, pura traquinagem. {FIM}



Observações:

1. Esta é a última postagem deste ano. Desejo a todos a capacidade de tomar decisões sábias em 2022, por meio das quais o Brasil se transforme num país mais civilizado e justo.

2. Visto que, ao módulo 3, [10n] = [1], com n inteiro não negativo, você pode facilmente adaptar o conteúdo desta postagem para a divisão por 3. Mais especificamente, e sempre pensando em inteiros não negativos grafados com o sistema posicional decimal: (a) Um número é divisível por 3 se-se a soma de seus algarismos é divisível por 3; (b) Forme um número y a partir da permutação dos algarismos de um certo número x, e daí |xy| é divisível por 3.

3. Há uma postagem mais completa sobre esse assunto, a divisão por 9, e sobre esse mesmo assunto generalizado para outras bases além da base 10: Uma Beleza: Quando 9 Divide um Inteiro.

4. Com um ábaco aberto, é fácil mostrar que 10n = 999···9 + 1, expressão na qual 999···9 tem n algarismos iguais a 9. Começando com o ábaco vazio, ponha, por exemplo, uma argola no pino M dos milhares. Isso representa o número 1.000. Você tem três pinos vazios à direita do pino M, que são os pinos C, D, U das centenas, dezenas, e unidades. Troque uma argola no pino M por dez argolas no pino C. Troque uma argola no pino C por dez argolas no pino D. Troque uma argola no pino D por dez argolas no pino U. Por fim, subtraia uma argola no pino U. Vai ficar com nove argolas no pino C, nove argolas no pino D, e nove argolas no pino U; ou, dizendo de outro modo, esse procedimento mostra claramente que 103 = 999 + 1.

Filosofia da mente: o mapa e o território


Quem gosta de caminhar, acampar, e escalar montanhas cedo ou tarde tem de aprender a ler um mapa topográfico (também chamado de mapa de linhas de contorno e de mapa de linhas de nível). Ele dá resposta a duas perguntas importantes: [1] A que altura cada pedaço do solo está? [2] Como achar os aclives e declives mais suaves?

Se o matemático (vamos chamá-lo de Clennieldo) tem de escolher um lugar onde armar a barraca, é melhor procurar um ponto mais alto: em caso de chuva, a água escorre para longe da barraca. Para chegar a um ponto mais alto, Clennieldo deve evitar as rotas com aclive íngreme demais: é chato escalaminhar com mochila nas costas. Num mapa topográfico, todos os pontos ao longo de uma das linhas contínuas estão à mesma altura em relação ao nível do mar: e isso é o bastante para evitar aqueles aclives capazes de transformar um ser humano num ser ofegante.

Para entender como funciona um mapa topográfico, Clennieldo o comparou à equação de uma superfície. Imaginou um espaço tridimensional e um sistema de coordenadas ortogonais Oxyz, no qual cada ponto do espaço pode ser localizado com três números. A origem O, por exemplo, fica no ponto (0, 0, 0); mas há também o ponto (5, –1, –2), no qual x = 5, y = –1 e z = –2; e há também o ponto genérico de coordenadas genéricas: (x, y, z).

Clennieldo imaginou o plano Oxy como que deitado sobre o chão, ao nível do mar. Com esse plano, ele tem como saber se os pontos estão mais ao norte ou mais ao sul, mais a leste ou mais a oeste. (Num mapa topográfico, pode ver a longitude como x e a latitude como y.) Assim, todos os pontos que estão na altura do nível do mar estão nesse plano Oxy, no qual z = 0. É assim porque Clennieldo imaginou z como sendo a altura do ponto em relação ao nível do mar. Agora, como pode expressar z em função das outras duas coordenadas? Assim:

z = f(x, y)

Com essa linha, quis dizer: “Existe uma receita ou fórmula, chamada de f, tal que, se eu souber o valor de x e o de y, acho o valor de z.” Com isso em mente, desenhou a figura 1 para praticar. Ela mostra o ponto P, cujas coordenadas no solo são x = 2 e y = 3, e cuja altura em relação ao plano Oxy é z = 1. Portanto, as coordenadas de P são (2, 3, 1), mas o valor z = 1 é, de alguma forma, função de x = 2 e de y = 3. (Clennieldo, se quiser, até pode escrever (2, 3, f(2, 3)) em vez de (2, 3, 1).)

Fig. 1

Os matemáticos chamam todos os pontos tais que z = f(a, b) de “superfície”, especialmente quando f é uma função contínua, isto é, quando a superfície não contém buracos. (Contudo, quando f é descontínua, mesmo assim às vezes chamam z = f(a, b) de superfície.) Em geral, a frase completa é: “Seja N o lugar geométrico de todos os pontos tais que z = f(a, b); então N é uma superfície.” Clennieldo usou um computador para visualizar uma superfície famosa, que é z = f(x, y) = senx · cosy.

Nessa função, o valor de z varia entre –1 e 1, isto é, –1 ≤ z ≤ 1. Ao examinar a figura, Clennieldo se sentiu capaz de verificar o que é uma linha de contorno: é o conjunto de todos os pontos tais que z tem um valor fixo α qualquer. Com três linhas de comando (–0,6 = senx * cosy, 0,1 = senx * cosy, e 0,7 = senx * cosy), deu uma ordem ao computador: “Mostre todos os pontos tais que z = –0,6, tais que z = 0,1 e tais que z = 0,7.” Na ilustração logo abaixo, o computador mostrou na linha esverdeada os pontos cuja altura z é igual a –0,6; na linha alaranjada, aqueles cuja altura é z = 0,1; e na linha azulada, os pontos cuja altura é z = 0,7.

“Um mapa topográfico é, portanto, um mapa de alturas, mas visto de cima”, escreveu Clennieldo no caderno. “É um mapa de alturas visto de um ângulo no qual é impossível distinguir uma altura da outra sem a ajuda das linhas de contorno, mas no qual as porções mais altas do terreno não escondem de vista as porções mais baixas.”

Há quem diga assim: “Nem sempre é possível representar uma superfície por meio de uma função.” Ao ouvir coisas como essa, Clennieldo precisa tomar cuidado: o que o interlocutor quis dizer? Pois, conforme o que quis dizer, talvez esteja certo, talvez não. Se quis dizer: “Nem toda superfície pode ser representada com z de um lado de uma igualdade, e com uma expressão algébrica feita de x e y do outro lado da igualdade”, disse bem. Há superfícies que, embora sejam contínuas, não podem ser perfeitamente representadas por meio de fórmulas matemáticas bem-comportadas. Mas, se o interlocutor confundiu “função” com “função expressa por meio de fórmulas matemáticas”, daí errou. Uma função pode ser expressa com palavras (“seja h a altura dos meninos com menos de 10 anos moradores do bairro tal”), com tabelas, com expressões algébricas — e com ilustrações e gráficos.

Clennieldo percebeu que o mapa topográfico entre seus dedos era, portanto, uma função, e que descrevia uma superfície. “Caso eu consiga apontar em que ponto do mapa estou”, escreveu Clennieldo, “daí consigo dizer a que altura estou em relação ao nível do mar.” Só então vem a tarefa de achar os aclives e declives mais suaves. “É fácil: ficam nos lugares em que as linhas de nível estão mais afastadas umas das outras, pois, nos lugares em que as linhas estão perto umas das outras, os aclives (ou declives) são mais íngremes.” {FIM}



Observações:

1. Publiquei essa matéria pela primeira vez na revista Cálculo: Matemática para Todos, edição 31, agosto de 2013, pág. 62. A versão que acabou de ler foi revista e ligeiramente reescrita.

2. Apêndice. Para usar a linguagem de Nílson José Machado, professor na Faculdade de Edução da USP, a ideia de mapa é uma ideia fundamental da geografia; mas, como toda ideia fundamental a uma disciplina, ela desempenha papel importante em outras disciplinas. Às vezes, em vez de mapa, ela é chamada de catálogo, esquema, gráfico, planta, maquete, modelo, arquétipo, norma, procedimento, imagem, diagrama, etc.

Na matemática, a ideia de mapa aparece com o nome técnico de isomorfismo. Vou definir isomorfismo com precisão, mencionar um exemplo, e depois explorar um dos usos da definição de isomorfismo na filosofia da mente.

Isomorfismo. Considere dois sistemas X e Y. O sistema X é o par ordenado (A, R), no qual A é um conjunto de elementos e R é uma relação em A. O sistema Y é o par ordenado (B, S), no qual B é um conjunto de elementos e S é uma relação em B. Você pode dizer que uma função f de A em B é um isomorfismo de X para Y se e somente se ela preserva a estrutura de relações. Mais precisamente: a função f é um isomorfismo se-se, para quaisquer x, y elementos de A, R(x, y) se-se S(f(x), f(y)).

Exemplo. O mapa e o território. Suponha que M é um mapa do Brasil. Ele contém bolinhas pretas para indicar onde estão as cidades, linhas vermelhas para indicar estradas e rodovias, manchas azuis para indicar rios e lagos, e manchas verdes para indicar vegetação nativa. As bolinhas, as linhas, e as manchas estão marcadas cada uma com um nome — um pequeno rótulo nas proximidades de cada uma. Esses nomes, é claro, correspondem ao nome da coisa no mundo real, no território. Se o mapa foi bem-feito, existe uma correspondência entre a distância entre pares de bolinhas pretas, medida em centímetros, e a distância entre as cidades equivalentes, medida em quilômetros, conforme determinada linha vermelha e conforme a correspondente estrada ou rodovia. Use d(“x”, “y”) para anotar a distância em centímetros entre duas bolinhas pretas cujos rótulos são “x” e “y”; por exemplo, use d(“São Paulo”, “Brasília”) para anotar a distância em centímetros entre as duas bolinhas pretas cujos rótulos dizem “São Paulo” e “Brasília”. Daí use D(São Paulo, Brasília) para anotar a distância em quilômetros entre as cidades de São Paulo e Brasília, que você pode obter com a escala do mapa. Assim, d(“São Paulo”, “Brasília”) leva naturalmente a D(São Paulo, Brasília), e vice-versa.

Reescrevendo a definição de isomorfismo para o caso do mapa M: O sistema X é o par ordenado (A, d), no qual A é um conjunto de bolinhas pretas nomeadas com rótulos, e d é a distância em centímetros entre quaisquer duas bolinhas pretas, distância equivalente ao comprimento da linha vermelha “L” que indica a estrada que une as duas bolinhas pretas. O sistema Y é o par ordenado (B, D), no qual B é o conjunto das cidades brasileiras e D é a distância em quilômetros entre quaisquer duas cidades, distância essa equivalente ao comprimento da estrada L que liga as duas cidades. A função f é a função que leva do rótulo associado a uma bolinha ao nome da cidade correspondente àquela bolinha; assim, f(“São Paulo”) = São Paulo, e f(“Brasília”) = Brasília. Daí f é um isomorfismo de X em Y porque d(“x”, “y”) se-se D(f(“x”), f(“y”)) = D(x, y). Por exemplo, d(“São Paulo”, “Brasília”) se-se D(f(“São Paulo”), f(“Brasília”)) = D(São Paulo, Brasília).

Há muitos outros isomorfismos entre o mapa e o território. A área de um lago no mapa, medida em centímetros quadrados, equivale à área do lago no território, medida em quilômetros quadrados. A posição relativa entre duas bolinhas no mapa, do tipo [“x” está ao norte de “y”], equivale à posição relativa das cidades no território, do tipo [a cidade x está ao norte da cidade y].

Mas é importante notar que nem tudo o que pode dizer sobre o mapa, pode também dizer sobre o território, e vice-versa. O mapa é feito de papel e tinta, mas o território é feito de muitas outras coisas — solo, rios, lagos, asfalto, concreto, florestas, cerrados, pântanos. O território às vezes fica molhado aqui e ali, porque choveu aqui e ali, mas o mapa não necessariamente fica molhado “aqui” e “ali”. O mapa às vezes se rasga. Não necessariamente um terremoto rasga o território nos mesmos lugares.

Assim, para resumir: muita coisa que você pode dizer sobre o mapa, pode dizer sobre o território, mutatis mutandis; muita coisa que pode dizer sobre o território, pode dizer sobre o mapa, mutatis mutandis; mas muita coisa que pode dizer sobre o mapa, não pode dizer de maneira nenhuma sobre o território; e muita coisa que pode dizer sobre o território, não pode dizer de maneira nenhuma sobre o mapa.

Filosofia da mente. Os olhos estão ligados ao cérebro por meio de nervos ópticos. O que os olhos mais os nervos mandam para o cérebro? Não pode ser imagens, pois não há um homúnculo dentro do cérebro para ver as imagens. Só pode ser variações eletroquímicas, pois o corpo humano é todo feito de variações eletroquímicas. O que o cérebro pode fazer com tais variações?

Até onde consigo imaginar, só pode fazer uma coisa: montar uma mapa do território. Quando você abre os olhos, e olha a sua volta, não está vendo a realidade-em-si (o território), mas sim uma simulação da realidade-em-si (o mapa). Há muitos isomorfismos entre o mapa e o território, e muita coisa que pode dizer sobre o mapa, pode igualmente dizer sobre o território. Mas nem tudo o que pode dizer sobre o mapa, pode dizer sobre o território.

A mesma ideia vale para os ouvidos, o nariz, a boca, a pele (especialmente a pele dos dedos das mãos): com as variações eletroquímicas enviadas pelos vários órgãos de sentido para o cérebro, o cérebro pode fazer uma coisa somente, que é montar um mapa do território. Obviamente, há isomorfismos entre o mapa e o território, ou entre a simulação da realidade-em-si e a própria realidade-em-si, pois, se não houvesse, ninguém sobreviveria no mundo por muito tempo.

Porém, e isso é muito importante, nem tudo o que você pode dizer sobre o mapa (a mente) pode igualmente dizer sobre a realidade-em-si. Essa é uma característica intrínseca aos mapas: um mapa cujos isomorfismos compreendem o território completamente não seria um mapa, mas sim uma cópia tim-tim por tim-tim do território. Além disso, para um mesmo território (ou uma mesma realidade-em-si), você pode compor infinitos mapas — cada um deles dá destaque a um ou a outro conjunto de características do território.

Isso explica por que é tão difícil estudar metafísica ou filosofia da mente: temos acesso ao mapa (à simulação da realidade-em-si), que foi criado ao longo de milênios pelo processo de modificação das espécies por seleção natural; sabemos que há isomorfismos entre o mapa e a realidade-em-si; mas de modo nenhum temos acesso direto à realidade-em-si. Depois que a ideia de isomorfismo entre mapa e território está clara, e também está claro o modo como essa ideia sustenta a analogia entre a simulação cerebral da realidade-em-si e a própria realidade-em-si, uma implicação importante se torna evidente: nem tudo o que pode dizer sobre o que está apercebendo por meio dos sentidos tem real correspondência com a realidade-em-si. Esse fato é o que dá imensa importância aos métodos da ciência, que são, para resumir, métodos pelos quais você verifica até que ponto sua simulação da realidade-em-si te autoriza a dizer algo verdadeiro sobre a própria realidade-em-si.

3. Quando digo “temos acesso ao mapa”, quero dizer que há um homúnculo dentro do cérebro olhando para o mapa? É claro que não. Ao contrário, uma das grandes dificuldades na filosofia da mente é se livrar do homúnculo. O mapa, a simulação cerebral da realidade, inclui a nós mesmos — nosso corpo, nossas emoções são parte do mapa. Quem usa esse mapa? Seguindo uma sugestão de Nietzsche: os vários instintos, às vezes sozinhos, às vezes assistidos pela razão. Quando alguma coisa corre mal, quando uma decisão e um conjunto de ações não produzem os efeitos planejados, daí passa a funcionar um módulo do cérebro cuja função é criar cenários e avaliá-los: ele vai sistematicamente se perguntar, “Por que eu achei que os efeitos seriam tais e tais? O que deu errado? E se eu tivesse decidido assim? E se eu tivesse decidido assado?” Seu propósito é, digamos assim, mudar nossa própria programação, para que na próxima situação semelhante as decisões e ações produzam as consequências desejadas. Dito isso, sou obrigado a concordar com o Sócrates de A República: temos de tomar muito cuidado com as ficções com as quais nos ocupamos, pois elas alimentam o módulo criador de cenários. Temos de tomar cuidado com livros, filmes, documentários, ideologias, religiões: temos de expulsar os maus poetas, isto é, temos de ativamente dar o nosso assentimento às ficções que, no fim das contas, têm influência sobre nossa capacidade de avaliar ou de reavaliar cenários.

4. A ideia de isomorfismo é uma das mais importantes da matemática, mas talvez você não perceba bem sua importância ao pensar apenas nos isomorfismos entre o mapa e o território, porque são fáceis de entender. Eis aqui um isomorfismo difícil de entender, à primeira vista, pois beira o inacreditável:

(a) Considere o conjunto dos números racionais positivos, tais como 1/2, 5/4, 3, 7/8, etc., mais a operação de multiplicação.

(b) Considere as sequências infinitas de inteiros, nas quais todos os termos são iguais a zero, exceto talvez um número finito de termos diferentes de zero, mais a operação de adição de sequências termo a termo. Um exemplo de sequência: 0, 0, 0, 0, –1, 0, 5, 0, 0, 23, 0, 0, …, que é uma sequência na qual o termo 5, o termo 7, e o termo 10 são diferentes de zero, mas todos os outros termos são iguais a zero.

Problema: Mostre que tanto (a) quanto (b) são grupos, e que esses dois grupos são isomórficos.

Esse exemplo mostra, com clareza, que a simulação da realidade-em-si, elaborada pelo cérebro a partir das variações eletroquímicas fornecidas pelos órgãos de sentido, e a própria realidade-em-si talvez sejam imensamente diferentes uma da outra, apesar dos isomorfismos entre uma e outra. De vez em quando, gosto de pensar nisso por uns minutos, até ficar com a sensação estranha, mas agradável, de que o mundo à minha volta não é bem aquilo que estou vendo…