Quando a intuição nos trai, quando a matemática nos salva


Matemáticos especializados em axiomática estão sempre criando sistemas axiomáticos que sirvam para demonstrar até mesmo afirmações das quais ninguém duvida. O matemático britânico Bertrand Russell, por exemplo, partindo de um conjunto de axiomas muito simples, deu-se ao trabalho de escrever centenas de páginas de lógica formal até que estivesse em condições de provar que 1 + 1 = 2. (E teve o senso de humor de notar: “A proposição acima é ocasionalmente útil.”) Os matemáticos estão tão imersos nessa cultura da demonstração que, quando um deles demonstra alguma afirmação que o leigo julga óbvia, e o leigo diante dele acha graça e ri, o matemático se surpreende.

“Uai, não entendi. Está rindo de quê?”

Porém, quem deixa o raciocínio lógico de lado e se deixa levar só pela intuição não ri por último nem ri melhor. Quer ver? Tente resolver o problema abaixo usando tão somente a intuição.

1. Suponha que possa circundar a Terra, na linha do equador, com uma corda — uma corta bem esticada, repousada sobre o chão. Suponha ainda, para simplificar, que a Terra é uma esfera perfeitamente lisa.

2. Em seguida, dê 1 metro de folga nessa corda em volta da Terra, para afrouxá-la um pouco. Com isso, formou dois círculos cujo centro é o mesmo — um deles é a linha do equador da Terra e o outro, um metro mais comprido, é a corda. Em linguagem mais matemática, você formou dois círculos concêntricos; a circunferência da corda é 1 metro maior que a circunferência da Terra na linha do equador. (Circunferência: número real que denota a medida do comprimento do círculo, que, por sua vez, é o conjunto de pontos equidistantes de um ponto central.)

3. Terá assim um vão entre a Terra e a corda, ou melhor, uma diferença x entre o raio dos dois círculos. Então, use a sua intuição para responder: qual é o valor aproximado de x?

Muito leitor (ou leitora) dirá: “Ora, o valor de x deve ser desprezível. A Terra é tão grande. Um metro de comprimento a mais na corda deve dar uma folga de milímetros. Não haverá espaço nem para enfiar a lâmina de uma faca nessa folga!”

Agora use ferramentas matemáticas para dizer: qual é o valor exato de x?

Dica. Você não vai precisar da circunferência da Terra no equador, nem do raio. Só vai precisar de uma fórmula simples, usada para calcular a circunferência C de um círculo de raio r, qual seja, C = 2πr. Arredonde π para 3,1416.


 

 

 

 

 

 

Resolução. Para calcular a circunferência da Terra (e a circunferência da corda bem apertada sobre a Terra):

C = 2πr

Pense em C e r medidos em metros. Para calcular a circunferência da corda com 1 metro adicional de comprimento:

C + 1 = 2π(r + x)

Multiplique 2π por r e por x, usando a propriedade distributiva da multiplicação:

C + 1 = 2πr + 2πx

Já sabe que 2πr é igual a C. Faça a substituição:

C + 1 = C + 2πx

Subtraia C dos dois lados da equação, o que não altera seu valor de verdade em nada:

1 = 2πx

Divida os dois lados por 2π e rearranje:

x = 1/(2π) ≅ 0,16

Visto que está medindo x em metros:

x ≅ 16 centímetros

16 centímetros de folga! Quem diria que só um metro daria tanta diferença? Note que, no fim das contas, x não depende da circunferência C, e então não depende do raio r, mas depende exclusivamente do valor que adiciona à circunferência. Ou seja, essa mesma conta daria 0,16 unidade para qualquer circunferência à qual adicionasse 1 unidade — inclusive a circunferência de uma praça, a circunferência do Sol, a circunferência do círculo que engloba a Via Láctea!

Veja bem: não é o caso de pichar a intuição. Ela é um poderoso artifício do corpo humano, e muitos cientistas fizeram descobertas importantes graças à intuição. Alguns matemáticos, guiados por sua intuição, bancaram afirmações que só foram adequadamente provadas 300 anos depois. Dito isso, a melhor receita é: sempre que possível, passe a limpo a intuição com a matemática. Melhor dizendo: sempre que possível, passe a limpo a intuição com métodos formais de apoio ao pensamento sistemático. {FIM}


Observações:

1. Publiquei esse problema pela primeira vez na revista Cálculo: Matemática para Todos, edição 1, novembro de 2010, pág. 56. A versão que acabou de ler foi revista e ligeiramente reescrita.

2. A primeira versão deste problema foi baseada num artigo de Joel Faria de Abreu, publicado em Explorando o Ensino: Matemática, volume 1, pág. 122. Organizado por Ana Catarina P. Hellmeister, da Sociedade Brasileira de Matemática. Publicado pela Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação.

3. Cuidado com as unidades de medida. Se está medindo a circunferência em metros, e adiciona 1 metro, o resultado será 0,16 metro. Mas se está medindo a circunferência em quilômetros, ou em jardas, ou em centímetros, e adiciona 1 unidade, o resultado será 0,16 quilômetro, ou 0,16 jarda, ou 0,16 centímetro. Em outras palavras, as contas não funcionam quando mede a circunferência em quilômetros, porém adiciona um metro. Use sempre a mesma unidade de medida.

4. Se quiser saber mais sobre os termos “círculo” e “circunferência”, veja a postagem Quer arrumar encrenca? Escolha a palavra ‘círculo’.

5. Pesquisadores especializados em axiomática estudam as fundações da matemática: querem definir claramente o que são termos primitivos e como, a partir deles, podem escrever definições, axiomas, e regras de inferência; e depois disso como, a partir das definições e dos axiomas, podem usar as regras de inferência para provar teoremas. Um axioma, por sua vez, é uma afirmação que deve ser aceita como verdadeira, isto é, uma afirmação para a qual é desnecessário produzir prova. Professores do ensino básico às vezes dizem que, se uma afirmação pode ser deduzida a partir de outras afirmações, então não é um axioma, mas sim um teorema. Essa afirmação não é mais verdadeira há pelo menos 50 anos, por dois motivos. Primeiro: na axiomática moderna, toda afirmação verdadeira é um teorema, e visto que axiomas são por definição afirmações verdadeiras, também são teoremas. (Axiomas são teoremas na forma ⊢ p, isto é, são teoremas que se seguem de uma coleção vazia de afirmações declarativas.) Segundo: num sistema axiomático qualquer, se um axioma pode ser demonstrado a partir dos outros axiomas, mesmo assim o especialista tem o direito de declará-lo como sendo um axioma — por exemplo, para deixar as regras de inferência mais simples. Se quiser saber mais sobre tudo isso, veja o excelente livro Introduction to Logic and to the Methodology of Deductive Sciences, de Alfred Tarski, publicado pela primeira vez em 1941.

6. Este é o texto do aforismo 246 de Nietzsche em A Gaia Ciência:

Matemática. — Vamos introduzir o refinamento e o rigor da matemática em todas as ciências, até onde seja possível, não na crença de que por essa via conheceremos as coisas, mas para assim constatar nossa relação humana com as coisas. A matemática é apenas o meio para o conhecimento geral e derradeiro do homem.”

Há muito o que dizer sobre esse aforismo, mas, dizendo pouco: até onde consigo ver, Nietzsche encarava a matemática como sendo um jeito de dizer as coisas — um jeito refinado e rigoroso, certamente, mas um jeito que passa mais informação sobre o próprio homem do que sobre a Natureza. Assim, para usar o linguajar atual, parece que Nietzsche era ficcionalista com relação à matemática, isto é, para ele a matemática era uma espécie de ficção útil. Essa visão é razoável: Moby Dick também é ficção, e com frequência também é útil como analogia; por que a matemática não seria uma ficção universalmente mais útil que Moby Dick, se tem sido especialmente arquitetada para que seja universalmente útil?

Se quiser, você pode usar esse jeito ficcionalista de ver as coisas para estudar o problema desta postagem: ao brincar com os dois círculos concêntricos, um sendo a linha do equador, o outro sendo a corda com 1 metro extra, não aprende nada sobre o planeta Terra, mas aprende bastante sobre as consequências de pensar com o apoio de termos como “círculo”, “circunferência”, “adicionar”, “concêntrico”, etc. Só que descobrir as consequências de seus pensamentos é, até certo ponto, também descobrir os modos pelos quais a Natureza funciona. Até que ponto? Ora, todo ser humano é parte indissociável da Natureza: sem ela, ele não pode existir; sem ele, ela não pode existir. (É impossível fazer com que uma parte da Natureza simplesmente desapareça, como se nunca houvesse existido.) Sendo assim, de novo: até que ponto? Até o ponto em que há morfismos que levam do homem para a Natureza e da Natureza para o homem; até o ponto em que o homem serve de mapa para o resto da Natureza — e garantir a sensatez desse mapa é a missão do cientista. Reescrevendo o aforismo 246 à luz desta postagem:

Matemática. — Em todas as suas investigações, até onde seja possível, procure expressar seus pensamentos com o refinamento e o rigor da matemática; não na crença de que dessa maneira conhecerá as coisas, mas sim na crença de que, com matemática, deixa mais clara a relação que você mantém com as coisas. Nunca se esqueça: a linguagem (em geral) e a matemática (em particular) são apenas meios pelos quais você tem condições de conhecer melhor a si mesmo; e só assim pode vir a conhecer melhor um bocado do mundo do qual você é parte indissociável.

Monismo lógico e as possibilidades do real


Caso o leitor vasculhe a Enciclopédia de Filosofia de Stanford, verá que há dezenas de tipos distintos de lógica, reunidas em quatro grandes grupos: lógicas de proposições, lógicas de predicados, lógicas modais, e lógicas não clássicas. Há lógicas especiais para lidar com a justificação racional de crenças ou para lidar com obrigações e responsabilidades. Há até lógicas especiais para lidar com “colchas de retalhos lógicos”, isto é, para lidar com lógicas feitas com pedaços de várias lógicas distintas — são as lógicas de combinações. Apesar disso, vários especialistas acreditam que existe uma e apenas uma lógica — ainda não inventada, e portanto ainda não descoberta. Todos os tipos de lógica que o homem conhece hoje seriam, por assim dizer, casos especiais da única, verdadeira lógica. Quem pensa assim acredita em monismo lógico, e é um monista em relação à lógica.

Graham Priest é um exemplo. É um lógico londrino, um dos inventores da lógica dialeteica, que serve para lidar com afirmações que fazem referência a si mesmas e que, possivelmente por causa dessa autorreferência, podem ser verdadeiras e falsas ao mesmo tempo (isto é, nas mesmas situações). Um exemplo é a afirmação “Esta frase que você está lendo agora é falsa.” Se ela é verdadeira, então o que afirma é o caso, mas ela afirma que é falsa. Se ela é falsa, então o que afirma não é o caso; ela afirma que é falsa, mas, se esse não é o caso, então é verdadeira.

Nesta postagem, você vai conhecer o argumento de Priest em detalhes. Ele está no livro Doubt Truth to Be a Liar [Duvide da Verdade para Ser um Mentiroso], de 2006, mas não no formato explícito abaixo. (O formato abaixo foi adaptado de um artigo de Luis Estrada-González.) Depois do argumento, vai explorar uma consequência importante tanto para filósofos quanto para amantes de matemática: se o monismo lógico é verdadeiro, então sem dúvida o platonismo moderno pode ser maximamente inclusivo, isto é, tudo aquilo que já foi real (descritível com física, química, biologia, etc.); tudo aquilo que é real; e tudo aquilo que um dia será real tem uma contraparte abstrata que é elemento da classe de todas as estruturas abstratas. Assim, estudar matemática é também estudar tudo aquilo que pode ter sido, tudo aquilo que é, e tudo aquilo que um dia pode vir a ser.

O argumento de Priest. (Baseado na versão de Estrada-Gonzáles.) Uma inferência talvez funcione em certa situação, ou talvez não funcione. Por exemplo, talvez funcione no estudo de átomos e moléculas, mas não funcione no estudo de instituições financeiras; talvez funcione no estudo do habitat de camundongos, mas não funcione no estudo de sistemas estelares. Se em certa situação você pode usar as regras de inferência de uma lógica para inferir q a partir de p, isto é, se em certa situação você pode usar as regras de uma lógica para dizer que p acarreta q como consequência, escreva isso assim: pq. Leia: “q se segue de p” ou “p acarreta q como consequência.” Na lógica de proposições, por exemplo, para quaisquer duas proposições p, q, se é o caso de que pq (p implica materialmente q), e se é o caso de que p, então você pode inferir q. Usando a notação: pq, pq. Leia: “q se segue de (pq) & p” ou “(pq) & p acarretam q como consequência.” Isso é suficiente para entender a primeira premissa de Priest.

P1. Uma inferência pq funciona em certa situação se, e somente se, caso p seja verdadeira naquela situação, daí q também é verdadeira.

Priest diz que P1 captura a noção intuitiva de “conclusão que posso tirar caso esteja em certa situação”; em outras palavras, de “inferência que funciona em certa situação”.

Mas o que todos querem da lógica (se houver uma e apenas uma lógica) é que ela seja universal — que funcione em toda situação. É bom que a lógica funcione na sala de aula e na redação do jornal, na empresa e no senado, no consultório do médico e na cabine da nave espacial. A segunda premissa serve para capturar essa noção intuitiva de “lógica universal”, isto é, para capturar a noção intuitiva de validade, que é a de “funcionar em qualquer situação”.

P2. Uma inferência pq é válida se-se ela funciona em todas as situações.

Priest acha importante trabalhar também com a contrapositiva de P2, que você pode grafar com P2’. Lembrete: a contrapositiva de p ↔︎ q é ¬q ↔︎ ¬p; uma afirmação condicional e sua contrapositiva são logicamente equivalentes.

P2’. Existe pelo menos uma situação na qual pq não funciona se-se não é o caso de que pq seja válida.

Com P1, P2 e a contrapositiva de P2, Priest partiu de noções comuns, intuitivas, para deixar explícitas as ideias mais básicas da lógica: uma inferência pq, para que seja válida, tem de funcionar, e não só isso, tem de funcionar sempre; e se houver uma situação na qual pq não funciona, então essa inferência não deve ser classificada como válida — ela até pode ser útil numa situação ou outra, mas não é universalmente válida. Tudo muito natural.

Se o leitor já lidou com mais de um tipo de lógica, ou se já observou alguém lidando com mais de um tipo, deve ter observado o seguinte fenômeno: embora a lógica A sirva para a situação SA, mas não sirva para a situação SB; e embora a lógica B sirva para a situação SB, mas não sirva para a situação SA; a pessoa que está usando as duas lógicas consegue fazer conversões e adaptações de uma para outra, em geral recorrendo à linguagem corrente (português) como ponte, isto é, como linguagem apropriada para pensamentos metalógicos. Isso sugere o seguinte: na mente dessa pessoa, existe uma lógica com elementos tanto da lógica A quanto da lógica B. Parece haver, portanto, uma intersecção não vazia das inferências da lógica A e das inferências da lógica B. Assim, é natural considerar a possibilidade de que há uma lógica universal, no mínimo:

P3. Existe pelo menos uma coleção de inferências que funcionam em todas as situações.

Você sempre pode ver uma coleção de coisas como sendo um conjunto de coisas, “conjunto” sendo o termo técnico da matemática. O nome disso é extensionalidade das coleções, que é o jeito técnico de dizer que qualquer coleção de coisas concretas ou abstratas leva naturalmente a um conjunto cujos elementos são essas mesmas coisas. Se você convida Sócrates, Platão, e Aristóteles para jantar, você obviamente tem uma coleção de amigos inteligentes e famosos, quais sejam, Sócrates, Platão, e Aristóteles; pela extensionalidade das coleções, existe o conjunto {Sócrates, Platão, Aristóteles}. Além disso, de acordo com a teoria, se dois conjuntos são distintos entre si, então há pelo menos um elemento que pertence a um conjunto, mas não ao outro. E com isso pode compreender a quarta premissa do argumento de Priest.

P4. Se duas coleções de todas as inferências que funcionam em todas as situações são diferentes, então existe pelo menos uma inferência pq tal que ela pertence a uma coleção, mas não à outra.

O argumento de Priest é por redução ao absurdo: ele quer preparar o terreno, depois concordar com a verdade do pluralismo lógico (e com a falsidade do monismo lógico), para então chegar a um absurdo e por fim rejeitar a verdade do pluralismo lógico (e estabelecer a verdade do monismo lógico). Com as premissas P1-P4, Priest preparou o terreno. Falta concordar com a verdade do pluralismo lógico:

P5. Há pelo menos duas coleções distintas de todas as inferências que funcionam em todas as situações.

Com tudo isso, Priest está pronto para tirar uma conclusão depois da outra.

C1. Visto que há pelos menos duas coleções distintas de inferências válidas, há pelo menos uma inferência pq que é elemento de uma das coleções, mas não da outra. (P4, P5, modus ponens.)

C2. Se pq é uma inferência válida, então ela funciona em todas as situações. (P2, equivalência, simplificação.)

C3. Se não é o caso de que pq seja uma inferência válida, então existe pelo menos uma situação na qual ela não funciona. (P2’, equivalência, simplificação.)

C4. A inferência pq funciona em todas as situações. (C1, C2, modus ponens.)

C5. A inferência pq não funciona em todas as situações. (C1, C3, modus ponens.)

C6. pq funciona em todas as situações e pq não funciona em todas as situações. (C4, C5, conjunção.)

C7. Não há nem mesmo duas coleções distintas entre si de inferências que funcionam em todas as situações. (P5-C6, redução ao absurdo.)

Agora, uma breve explicação sobre o termo silogismo disjuntivo: se você tem xy (“x ou y”), e se além disso tem ¬x (“não x”), pode imediatamente concluir y. Em símbolos: xy, ¬xy. Esse é a regra de inferência que justifica a próxima conclusão.

C8. Existe exatamente uma coleção de inferências que funcionam em todas as situações. (P3, C7, silogismo disjuntivo.)

C9. Existe uma e só uma lógica que funciona em todas as situações, isto é, o pluralismo lógico é falso e o monismo lógico é verdadeiro. (C8, equivalência, simplificação.)

Há várias maneiras de usar a linguagem corrente para expressar C8 ou C9, entre as quais: (a) existe uma e apenas uma relação de consequência que funciona em todas as situações; (b) existe uma e apenas uma resposta correta às duas perguntas, “Este argumento é correto? E por que ele é correto?”; (c) existe uma e apenas uma coleção de inferências válidas em todas as situações, isto é, uma e apenas uma coleção de verdades lógicas; (d) existe um e apenas um método de raciocínio que é correto em todas as situações.

Se o argumento de Priest é sólido, a notícia é boa para o platonista moderno. Ele diz que o universo em que vivemos é um modelo exato de uma estrutura abstrata puramente matemática. É fácil entender a ideia geral de modelo: “Romeu ama Julieta” é um modelo exato de “x ama y”, pois, quando você faz x = Romeu e y = Julieta, transforma “x ama y” numa afirmação verdadeira, visto que de fato Romeu ama Julieta. Assim, quando o platonista diz, “O universo em que vivemos é um modelo exato de uma estrutura puramente matemática”, está dizendo o seguinte:

(1) Existe uma classe própria, que você pode chamar de V, cujos elementos perfazem uma estrutura matemática infinita, cheia de constantes, variáveis, relações, funções; de fato, com todas as constantes, variáveis, relações, e funções possíveis e imagináveis. Ela contém, por exemplo, o termo “x R y” para indicar que o par ordenado de variáveis x, y, nessa ordem, satisfaz a relação R. Essa classe V é maximamente inclusiva: ela inclui tudo o que é possível. Sendo uma classe própria, não está contida em si mesma.

(2) Os elementos abstratos da classe V podem ser interpretados de infinitas maneiras — basta para tanto substituir as constantes, variáveis, relações, e funções por informação. Todas as interpretações verdadeiras também são elementos de V. Assim, além do termo “x R y”, a classe V contém o termo “x ama y”, no qual R = ama; ela contém o termo “Romeu ama Julieta”, que é uma interpretação verdadeira (isto é, um modelo) de “x ama y”; ela contém o termo “Capitu ama Bentinho”, que é um modelo de “Romeu ama Julieta”.

(3) Um subconjunto das interpretações verdadeiras é completamente equivalente ao universo em que vivemos. (Um subconjunto das interpretações verdadeiras é isomórfico com o universo em que vivemos.)

(4) Assim, o platonista está justificado em dizer que o universo em que vivemos é um modelo exato de uma estrutura abstrata puramente matemática.

(5) Se o argumento de Priest é sólido, então a classe V está assentada num sustentáculo único, qual seja, a única e verdadeira lógica universal.

(6) Para explorar esse sustentáculo único, uma pessoa precisa da capacidade de raciocinar corretamente, e “raciocinar corretamente” significa adicionar informação às várias estruturas abstratas que são elementos de V, ou, em outras palavras, significa interpretar corretamente os vários elementos de V.

(7) O homem é comprovadamente capaz de raciocinar corretamente, visto que é comprovadamente capaz de criar matemática. Em particular, é capaz de interpretar corretamente uma infinidade de afirmações lógicas.

(8) Assim, o homem é capaz de explorar tudo aquilo que é possível. Mais precisamente, todo aquele que estuda matemática está usando pelo menos uma parte da lógica, da única e verdadeira lógica, para explorar a estrutura abstrata de tudo aquilo que é possível, inclusive a estrutura abstrata do universo em que vive, inclusive a estrutura abstrata de si mesmo. {FIM}


Observações:

1. Na lógica dialeteica, pode haver afirmações que não são nem verdadeiras nem falsas nas mesmas situações. Se quiser saber um pouco mais, leia o ótimo livrinho de Graham Priest, Logic: A Very Short Introduction.

2. Muitos autores usam “pq” para dizer, “q se segue sintaticamente de p, isto é, q se seque de p por meio da aplicação mecânica de regras de inferência”. Mas, no caso desta postagem, as duas coisas são a mesma coisa: se p acarreta q como consequência em toda situação, então p acarreta sintaticamente q, isto é, você pode inferir q a partir de p por meio da aplicação mecânica da regra “se tenho p, posso inferir q”. Lembrete: nem sempre as propriedades de relações sintáticas de consequência coincidem com as de relações semânticas de consequência.

3. Há bons argumentos em defesa de pluralismo lógico, que é a defesa da existência de mais de uma lógica ou da existência de mais de uma relação de consequência. Alguns desses argumentos atacam a ideia de “em toda situação”, “em todo caso”, “em todo domínio”. Pergunta incômoda: como o ser humano, vivendo tão pouco tempo num cantinho do universo, pode falar de relações de consequência que valem em toda situação, se não pode de maneira nenhuma listar todas as situações relevantes? Se lê inglês e gostaria de saber mais sobre pluralismo lógico, clique aqui.

4. Você leu no texto: “Vários especialistas acreditam que existe uma e apenas uma lógica — ainda não inventada, e portanto ainda não descoberta.” Mas, se o platonismo é correto, toda matemática é descoberta, não é verdade? Não, não é verdade, mesmo que o platonismo seja correto. Para descobrir matemática, é imprescindível inventar matemática — é imprescindível inventar novos sistemas axiomáticos. Sempre digo que a matemática é semelhante a um jogo: o tabuleiro, as peças, a posição inicial, as regras pelas quais mover as peças. Para descobrir matemática completamente nova, é necessário inventar novos jogos axiomáticos — e depois disso descobrir estratégias de jogo vencedoras, isto é, descobrir novos teoremas.

5. O artigo de Luis Estrada-González está no livro Just the Arguments: 100 of the Most Important Arguments in Western Philosophy.

6. Quando escrevo “homem”, quero me referir ao conjunto {x : x é um ser humano}, isto é, o conjunto dos elementos x tais que x é um ser humano. Quando escrevo “pessoa”, quase sempre quero me referir ao conjunto {x : x é autoconsciente o bastante para ser tratado com respeito, seja x um animal, um robô, um deus}. Curiosidade: alguns filósofos usam a matemática moderna para defender a tese de que pode haver deuses não conscientes de si mesmos; e isso é um ponto a favor do modo como os antigos gregos pensavam, pois para eles o Sol e a Lua eram deuses.

7. (18 outubro 2021) Um leitor me escreveu para perguntar: Qual a diferença entre a visão de Platão e a de Pitágoras? Vou me concentrar nas versões atuais. Para alguns platonistas modernos, há uma diferença entre matemática e realidade. O platonismo fraco diz que a realidade é um modelo aproximado de uma estrutura puramente abstrata. (“Modelo” no sentido lógico atual: um modelo é uma interpretação verdadeira de uma estrutura abstrata.) O platonismo forte diz que a realidade é um modelo exato de uma estrutura puramente abstrata. Hoje em dia, o platonismo forte é mais comum que o fraco, pois hoje matemáticos e cientistas acreditam que podem, em tese, usar matemática para representar o mundo perfeitamente, dada a incrível expressividade da matemática moderna. Nos dois casos, contudo, a realidade é uma coisa, e a estrutura puramente abstrata é outra: realidade e estrutura abstrata são coisas distintas. Para o pitagórico moderno (que também é um platonista), por sua vez, não há diferença entre matemática e realidade. Ele é monista: existe uma coisa e só uma coisa, e essa coisa é uma estrutura puramente abstrata que produz, ou emana, tudo o que existe. (Essa coisa não é um deus; ela não tem entendimento.) A natureza da realidade é completamente matemática: primeiro há uma estrutura abstrata que corresponde à realidade; depois há a realidade, que supervém nessa estrutura abstrata. Em outras palavras, a realidade puramente abstrata de nosso universo subjaz à realidade concreta de nosso universo — e essa ideia vale para todo universo possível. Para entender essa visão, use como analogia uma simulação de computador: do ponto de vista das entidades que habitam a simulação, a realidade passível de ser estudada com as leis da física é indistinguível da realidade passível de ser estudada com matemática. Se o leitor gostaria de saber mais sobre esse assunto, que é fascinante, leia o ótimo livro de Eric Steinhart, Atheistic Platonism: A Manifesto.