“Matemática nas coisas”? O existencialista diz que isso não existe


{1}/ Para começar, dois problemas

P1. Alguém invadiu o depósito de uma loja e roubou muitos produtos. O ladrão, ou ladrões, fugiu num caminhão. O que se sabe até agora é: (1) Ninguém mais se envolveu com o roubo exceto, talvez, os famosos ladrões A, B, ou C. (2) C nunca comete um crime sem que esteja acompanhado de A. (3) B não sabe dirigir. Pergunta: Qual dos ladrões A, B, ou C indiscutivelmente participou do roubo?

P2. Um comerciante comprou certo produto x por 7 reais, vendeu x por 8 reais, comprou x de volta por 9 reais, e por fim vendeu x por 10 reais. Pergunta: Quanto o comerciante lucrou?

A resolução de cada um deles está na seção 3 mais abaixo.


{2}/ Aqueles que constituem a situação

Em muitos textos sobre lógica, a palavra “situação” aparece para indicar um conjunto de afirmações as quais descrevem certo estado de coisas. Por exemplo, S = {[Na festa de casamento de Juliete, Marco vestia um terno azul]; [Na festa de casamento de Juliete, Marco derrubou uma grande quantidade de molho de tomate no terno azul]; [Na festa de casamento de Juliete, Marco ficou com vergonha do terno manchado e foi embora mais cedo]} é uma situação. Assim, a afirmação a1 = [Na festa de casamento de Juliete, o terno amarelo de Marco chamou a atenção de todos] é inconsistente com a situação S: ou a1 é verdadeira e pelo menos duas das afirmações de S são falsas, ou as afirmações de S são verdadeiras e a1 é falsa.

É claro que, quando o pensador usa a palavra “situação” dessa forma, ela é útil — ajuda a pensar em tópicos como a consistência ou a coerência de um conjunto de afirmações. No entanto, para qualquer filósofo que subscreva as teses do existencialismo atual, esse jeito de usar a palavra “situação” deixa o falante propenso a cair em erro grave, isto é, a cair em estado de alienação.

Para o existencialista, todo sujeito humano constitui ele próprio a situação pela qual passa. Vale a pena entender essa ideia. O existencialista não quer dizer com isso que o sujeito é a causa de tudo aquilo por que passa, ou que é a única origem do mundo tal como o vê, ou que pode mudar o mundo com o simples poder do “pensamento positivo” — não é isso. É que o existencialista rejeita o dualismo de Descartes, com o ego de um lado, o corpo e o mundo do outro — com ego e mundo como se fossem logicamente independentes. O existencialista rejeita essa visão ao classificá-la de incoerente: é impossível compreender o que significa um ego flutuando no nada, completamente isolado do corpo e do mundo. Ele também rejeita essa visão porque, além de incoerente, é prejudicial: ela transforma o mundo em algo estranho, estrangeiro, alienígena, a ser meramente conquistado e explorado. Contra Descartes, o existencialista diz que só pode haver pensamento e razão humanos desde que estejam corporificados e situados no mundo — portanto, se alguém desconsidera o corpo e o mundo, nada mais tem a dizer sobre o pensamento e a razão humanos.

Considere a pessoa P1. É impossível traduzir a singularidade de P1 por meio de regras de conduta universais, pois só existe uma pessoa no mundo como P1, e ela representa um ponto de vista único. Portanto, se a pessoa P1 está numa situação S1, e se você desconsidera P1, nada mais pode dizer sobre S1, pois P1 é condição necessária para que S1 exista — P1 constitui a situação S1 ou, usando outra linguagem, P1 e S1 são logicamente interdependentes. O que um sujeito é, em certa situação, não pode ser separado daquilo que ele diz a si mesmo que é naquela situação; nem pode ser separado do modo como valoriza ou desvaloriza cada elemento da situação que vive, isto é, não pode ser separado do ponto de vista que ocupa no mundo nem do modo como ele mesmo constitui a situação. Para usar uma analogia: imagine uma clareira na floresta. Dizer que um sujeito P é logicamente independente da situação S na qual está ou dizer que a mente é logicamente independente do corpo-mundo é como dizer que a clareira é logicamente independente da floresta — se alguém destruir a floresta, de algum modo a clareira subsiste.

Se o existencialista estiver certo (e acho que está), há três consequências importantes para o estudante de matemática.

1) Ele pára de dizer que “existe matemática nas coisas”, e por dois motivos. Um deles: é incoerente dizer “coisas” sem dizer qual pessoa P constituiu as coisas, visto que, para cada situação S (da qual as coisas fazem parte), existe uma pessoa P tal que P constitui S. O outro, correlacionado com o primeiro: só existe matemática numa situação S, e portanto só existe matemática nas coisas que fazem parte de S, se a pessoa P que constituiu a situação S sabe matemática. De novo: se uma situação é sempre constituída por um agente humano, só pode haver matemática naquela situação se o agente a constituiu com matemática. Como diz o existencialista: “O mundo é humano.”

2) Quando uma pessoa P estuda matemática, ela passa a viver num mundo maior, mais cheio de possibilidades, pois P abre para si mesma a possibilidade de constituir situações nas quais a matemática desempenha papel importante.

3) Quando uma pessoa P passa a viver num mundo em que existe a possibilidade de que haja “matemática nas coisas” (porque P estudou matemática), ela passa a viver num mundo no qual tem a capacidade de se engajar com as situações pelas quais passa (e as quais constituiu) por meio do recurso à matemática. A matemática passa a ser uma ferramenta acessível, ferramenta essa que de fato se encaixa em muitas coisas do mundo, simplesmente porque P constitui o mundo de modo que a matemática se encaixe nas coisas do mundo.

O leitor pode ter uma ideia de como tudo isso funciona ao pensar nos dois problemas de abertura. Para muitos internautas, eles nunca fazem parte de nenhuma situação, pelo simples motivo de que tais internautas jamais se dariam ao trabalho de ler este blogue sobre matemática, lógica, e filosofia. Entre os internautas que visitam este blogue, uns pensam assim, “Muito fáceis — nem vou me dar ao trabalho de resolvê-los, pois já sei que consigo.” Outros pensam assim, “Que legal! Vou tentar resolvê-los antes de continuar a leitura.” Outros pensam assim, “Vou resolvê-los e, caso goste deles, verei se consigo bolar outros problemas semelhantes.”

Para cada leitor dos dois problemas P1 e P2, portanto, há um juízo. Mas não parece que é assim: realmente parece que é possível discorrer sobre os dois problemas sem mencionar nenhuma pessoa em particular. Isso porque a linguagem humana permite ao redator descrever uma situação sem mencionar a pessoa que constituiu a situação: cada leitor parte das palavras e, por trabalho próprio, imagina um jeito de constituir uma situação hipotética que possa ser descrita com tais palavras. (Se não fosse assim, a linguagem seria inútil: se, para entender o que a pessoa P diz, o interlocutor fosse obrigado a se colocar 100% no ponto de vista de P, ninguém entenderia P, pois só P pode ocupar o ponto de vista de P.) Visto que a lógica surge de exames muito detalhados da linguagem humana, a lógica também contém centenas de conceitos que não fazem nenhuma referência à pessoa P que constituiu certa situação — e até mesmo a palavra “situação” dispensa qualquer pessoa P. Diante de certas afirmações lógicas, o leitor que se vire e dê um jeito de conceber uma situação hipotética que lhes dê sentido.

Eis agora uma consequência prejudicial de o leitor estudar lógica: a de se acostumar com situações em abstrato, e daí pular para a ideia de que pode haver um mundo em abstrato, à parte do mundo humano em que vive, mundo abstrato esse que é eterno, misterioso, perfeito — de modo que, depois de uns anos pensando assim, você sem perceber passa a desvalorizar o mundo humano em que vive; o único, aliás, em que pode viver. Esse é um dos tipos mais comuns de alienação: a alienação entre a pessoa (você) e seu mundo — a ideia de que seu mundo pode existir sem que você exista, a ideia de que você é dispensável na constituição do mundo humano em que vive. Wittgenstein tem uma boa frase sobre isso, da qual os existencialistas se apropriaram como se fosse deles: “A filosofia é uma batalha contra o modo como nossa linguagem enfeitiça nossa inteligência.” {FIM}


{3}/ Apêndice: A resolução dos problemas

Resolução de P1. Com problemas desse tipo, a primeira coisa que faço é uma tabela verdade. Na tabela a seguir, “0” significa “falso”, “1” significa “verdadeiro”, “D(A)” significa “A dirigiu o caminhão”, e “R” significa “Resultado”, isto é, “Há condições para que tenha acontecido o roubo”. Cada linha da tabela mostra o resultado de [(A ∨ B ∨ C) & (C → A) & (D(A) ∨ D(C))] ⊧ R.

ABCA B CC AD(A) D(C)R
0000100
0011010
0101100
0111010
1001111
1011111
1101111
1111111

Assim, fica claro que R = 1 se-se A = 1, e isso significa que A certamente participou do roubo.

Depois que resolvi o problema dessa maneira, fiquei pensando: “Mas isso é muito complicado. Não haverá um jeito mais simples? E se o estudante não sabe montar tabelas verdade?” Foi então que me ocorreu a ideia de dar resposta ao problema P1 por meio de redução ao absurdo. Assim:

Presuma que A não participou do roubo. Então participou B, ou então C, ou então B e C juntos. Se B participou, mas desacompanhado de C, o roubo não poderia ter acontecido, pois B não sabe dirigir. Se C participou, acompanhado ou não de B, significa que A também participou, pois C nunca comete um crime se não estiver acompanhado de A. Logo, a presunção de que A não participou o roubo é falsa — e, ao contrário, indiscutivelmente A participou do roubo.

Resolução de P2. Um jeito de resolver o problema: use números negativos para denotar as quantias que o comerciante desembolsou; e use números positivos para denotar as quantias que o comerciante embolsou. Daí:

–7 + 8 – 9 + 10 = 18 – 16 = 2

O comerciante lucrou 2 reais. Esse problema confunde aqueles que pensam assim: “De sete para oito, o comerciante lucrou um real; de oito para nove, perdeu um real. Um real de lucro menos um real de prejuízo é igual a zero. Logo, posso trabalhar apenas com os números dos extremos, que são sete e dez. Dez menos sete é três — o comerciante lucrou três reais.”

Você pode montar um problema mais interessante a partir de P2:

P3. Um comerciante comprou um produto por x reais, e o vendeu por x + 1 reais. Depois comprou o mesmo produto por x + 2 reais, e o vendeu por x + 3 reais. O comerciante repetiu por n vezes esse padrão de “comprar, vender” o mesmo produto. Quanto o comerciante lucrou?

Trabalhando apenas com inteiros positivos, verifique a resposta por si mesmo: o comerciante lucrou n reais. {❏}



Observações:

1. O mesmo que disse sobre matemática, poderia dizer dizer sobre qualquer disciplina, qualquer ciência: quem não sabe nada de química, por exemplo, nunca vê química nas situações pelas quais passa, pois, grosso modo, nunca constitui situações “tingidas pela química”.

2. Uma definição rápida de existencialismo.

(a) O existencialista acha que o maior problema filosófico de todos os tempos é o problema da alienação — que é o problema de separar coisas que não podem ser separadas: alienação entre mente e corpo, entre o sujeito e o mundo em que vive, entre o sujeito e sua responsabilidade por quem ele é. O ser humano tem propensão a viver em estado de alienação.

(b) O existencialista ataca o problema da alienação por meio da fenomenologia existencialista, e isso significa que ele começa descrevendo com cuidado o mundo tal como aparece, incluindo sentimentos, emoções, e valorações.

(c) Uma vez que os fenômenos do mundo estejam cuidadosamente descritos, o existencialista consegue enfatizar a interdependência lógica entre a mente e o mundo, e consegue também enfatizar o caráter único da existência humana — que é o de livremente dar sentido à vida e ao mundo por meio de projetos e preocupações pessoais.

(d) Com isso, o existencialista dissolve vários dualismos, como o dualismo entre sujeito e objeto, entre mente e corpo (isto é, mente e mundo), entre razão e paixão, e entre fatos e valores.

(e) Apesar dessa conquista, sobra ainda a possibilidade de que alguém se aliene de si mesmo, e não perceba que está alienado. A alienação de si mesmo produz uma consequência grave: ela separa indevidamente o sujeito dos outros sujeitos do mundo.

(f) O existencialista batiza o principal modo de alienação de si mesmo de “má-fé” (seguindo Sartre), que é típico daqueles que dizem, “eu fiz assim e assado porque esse era o mandamento dos deuses”, “eu fiz assim e assado porque esse é o costume de minha tribo” — mais genericamente, “Eu fiz assim e assado porque não tinha escolha.”

(g) Mas, para justificar sua descrição de má-fé (que é uma condição comum), o existencialista precisa provar que existe a possibilidade de viver sem má-fé, isto é, de viver de modo autêntico. (“Eu fiz assim e assado não porque esse era o mandamento dos deuses, nem porque esse é o costume de minha tribo, mas porque parei, pensei, dei meu assentimento às regras pelas quais vivo, e portanto assumo inteiramente a responsabilidade pelo modo como agi.”) O existencialista acha a prova ao descrever sentimentos e emoções como (1) angústia sem causa definida, (2) antecipação da morte, e (3) aquela sensação de absurdo típica dos que levam a sério suas regras de vida, mas, ao mesmo tempo, percebem que tais regras foram uma escolha livre. Tais sentimentos e emoções revelam um aspecto importante da realidade humana, qual seja, relevam ao homem que ele pode viver de modo autêntico — basta querer, basta se comprometer.

(h) De todas as características do modo de vida autêntico, o existencialista diz que a principal é a liberdade existencialista — a liberdade de recusar dogmas, costumes, e tradições e de começar algo novo.

(i) Finalmente, o existencialista deduz qual é a principal consequência moral do modo de vida autêntico nos relacionamentos que mantém com os outros — que é o de sempre dar aos outros, por meio da troca de ideias honesta e sistemática, a possibilidade de escolher e de decidir livremente. (Ressalva: dar a oportunidade de uma decisão livre não implica dar a oportunidade de se pôr a salvo das consequências da decisão.)

3. Em textos sobre filosofia, a palavra “incoerente” aparece com um significado especial: se certo conceito é incoerente, você não pode fornecer as condições necessárias e suficientes para classificar algo do mundo debaixo daquele conceito — já que não pode compreendê-lo, mesmo que à primeira vista tenha a sensação de que pode. Assim, “incoerente” está mais para “irremediavelmente desconexo” do que para “inconsistente”. A crítica que o existencialista faz do dualismo de Descartes é esta: é um dualismo incoerente. Ele parece compreensível à primeira vista, mas, depois de examiná-lo com cuidado, fica impossível dizer as condições necessárias e suficientes para que haja um “eu-existo” sem que também haja um corpo indissociável do “eu-existo”, assim como um mundo indissociável do corpo, mundo esse habitado por outros “eu-existo”. Portanto, para o existencialista, dizer “eu existo” significa ao mesmo tempo dizer “meu corpo existe”, “um mundo existe”, e “neste mundo, há outros corpos e outros eu-existo além de mim”.

Note que, ao afirmar que o dualismo de Descartes é incoerente, o existencialista não afirma nenhum tipo de monismo.

4. No primeiro parágrafo da seção 1, a afirmação a1 está entre colchetes. Você pode usar colchetes para indicar que o importante não é o modo como escreveu a afirmação, mas sim seu significado, ainda que você a tivesse escrito de outra maneira.

5. Você leu no texto: o existencialista rejeita o dualismo de Descartes. Também rejeita outro dualismo comum hoje em dia: de um lado, a imagem científica de uma realidade objetiva não tingida por preocupações humanas; de outro, o ser humano. Assim como, para o existencialista, mente e mundo são logicamente indissociáveis, o ser humano e a imagem científica que ele produz da realidade também são logicamente indissociáveis.

6. Você viu no texto: “Cada leitor parte das palavras e, por trabalho próprio, imagina um jeito de constituir uma situação hipotética que possa ser descrita com tais palavras.” É por isso que leitores jovens em geral não gostam dos clássicos: eles são inexperientes demais para, a partir das palavras, constituir uma situação hipotética que combine com as palavras. É por isso também que o leitor ideal é, ao mesmo tempo, culto e experiente — é uma pessoa tanto de livros quanto de vivências.