Para umas poucas pessoas, os físicos atuais dizem que o universo surgiu há 13,8 bilhões de anos, do nada, numa grande explosão. “É o que diz a teoria do Big Bang”, dizem essas pessoas. Não é verdade. As cinco afirmações a seguir são falsas (e por isso usei a letra “F”), embora haja quem pense que são verdadeiras.
(F1) O universo surgiu há 13,8 bilhões de anos.
(F2) O universo surgiu do nada.
(F3) O universo surgiu de uma singularidade.
(F4) Logo depois do surgimento do universo, um instante infinitesimal depois, o universo era tão denso que todo ele cabia num ponto menor que a cabeça de um alfinete.
(F5) Os físicos chamam a teoria que inclui as afirmações F1–F4 de “teoria do Big Bang”.
Qualquer adulto que já tenha concluído o ensino médio sabe o suficiente para entender por que razão as afirmações acima são falsas. Isso é algo muito curioso sobre as afirmações F1–F5: para discutir sua falsidade, o leitor (ou leitora) precisa saber pouco — precisa saber como funcionam os métodos da ciência (mais ou menos) e como discutir o gráfico de uma função simples. Não há motivo, portanto, para que alguém ande pelo mundo acreditando em qualquer uma das afirmações F1–F5.
Primeiro, o gráfico. Considere o gráfico da função f : R– {0} → R tal que y = f(t) = 1/t2. O gráfico é:
Em palavras: você pode atribuir qualquer valor real a t, exceto zero; e y assume valores reais maiores que zero. Usei a letra t para lembrá-lo de tempo. Ao estudar a função f, chame o instante t = 0 de singularidade. Na matemática, uma singularidade é um ponto no qual uma curva tende ao infinito (positivo ou negativo) ou se degenera (deixa de ter certas características importantes). No caso de f, quando o valor de t tende a zero pela direita ou pela esquerda, o valor de y tende ao infinito, e por isso o instante t = 0 é uma singularidade. Mas o fato é que você tem de tirar o valor t = 0 do domínio de f por um motivo simplíssimo: quando t = 0, t2 = 0, e daí 1/t2 se torna um quociente não definido. Não se pode dividir nada por zero. Nem sempre você precisa retirar a singularidade do domínio do discurso, mas, nesse caso de f, retirar t = 0 do domínio é indispensável.
Agora, é hora de discutir umas poucas características do método científico — em particular, o conceito de abdução = inferência no sentido da melhor explicação. É mais fácil explicar esse conceito por meio de um exemplo. Suponha que está caminhando pela praia, e vê desenhado na areia a figura de um cachimbo, e embaixo dele a frase “Isto não é um cachimbo”. Ao examinar melhor os sulcos que compõem a imagem e a frase marcadas na areia, vê que uma grande formiga caminha pelos sulcos. Qual é a melhor explicação do que acabou de ver?
(C1) Alguém desenhou o cachimbo e escreveu a frase, talvez usando a ponta de um graveto. A formiga chegou depois e passou a explorar os sulcos na areia.
(C2) A formiga, pacientemente, foi removendo os grãos de areia até produzir os sulcos, de modo que ela laboriosamente produziu o desenho e a frase.
As duas conjecturas C1 e C2 explicam perfeitamente o que viu na areia. Mas você escolhe acreditar em C1, pois é a explicação mais simples e razoável para o que viu; C2 é uma conjectura muito improvável, visto que não há registro de formiga que soubesse desenhar ou escrever. O que você fez, esse movimento de partir das evidências que encontra na Natureza para então compor um conjunto de afirmações tão simples quanto possível para explicar as evidências, se chama “abdução” na filosofia da ciência; às vezes, “abdução” aparece como “inferência no sentido da melhor explicação”.
Uma característica importante de explicações compostas por abdução é que elas têm consequências, que você obtém por meio de argumentos lógicos. Se escolhe a conjectura C1 para explicar o cachimbo e a frase, então uma pessoa que conhece o quadro de Magritte passou por aquela praia antes de você; em tese, portanto, pode perguntar aqui e ali para achá-la. “Com licença?”, você diz para o sorveteiro. “Você sabe de algum banhista aqui que conhece artes plásticas, em particular os quadros de René Magritte?” Se escolhe a conjectura C2, então deve observar essa formiga atentamente: visto que formigas costumam fazer as mesmas coisas todo dia (elas são de rotina), cedo ou tarde ela desenhará outro cachimbo e escreverá outra frase.
Outra característica importante de explicações obtidas por abdução: elas são consequência lógica de certas pressuposições simplificadoras, não necessariamente expressas na explicação. Ao escolher C1 e imaginar suas consequências, você pressupôs que o desenhista conhece Magritte, e não que ele, por coincidência, teve a ideia original e genial de desenhar o cachimbo e a frase; por isso a pergunta que fez ao sorveteiro. Se tivesse escolhido C2, ao imaginar suas consequências lógicas você provavelmente desprezaria a possibilidade de que a formiga havia sido possuída pelo espírito desencarnado de Magritte.
Com tudo isso, já tem as ideias essenciais para entender por que as afirmações F1–F5 são falsas. São elas: (a) a definição matemática de singularidade; (b) a ideia de que, quando você redige uma explicação por abdução, ela deve ser consistente com as observações que obteve na Natureza; (c) além disso, pode usar a explicação para produzir consequências lógicas que, por sua vez, também devem ser consistentes com observações da Natureza; (d) por fim, toda explicação por abdução é consequência lógica de certas pressuposições simplificadoras, não necessariamente expressas na explicação.
O físico, quando quer discorrer sobre o universo, em geral usa como referência o modelo cosmológico padrão, cujo nome técnico é “𝚲-CDM” ou “lambda-CDM”. O modelo padrão foi construído, ao longo das últimas décadas, por abdução — isso significa que ele explica um conjunto de observações físicas atuais (localizadas no presente), que implica várias consequências lógicas, e que é consequência de certas premissas simplificadoras. Para os propósitos deste artigo, a premissa simplificadora mais importante foi: o universo é infinito em todas as direções. A observação mais importante foi: os elementos do universo, especialmente as galáxias, se afastam uns dos outros (isso sugere que o universo está em expansão). E a consequência lógica mais importante foi: se hoje os elementos do universo se afastam uns dos outros, então no passado estavam mais próximos uns dos outros. Resumindo isso tudo numa frase só, sem interrupções: Segundo o modelo padrão, o universo é infinito em todas as direções; os elementos do universo, especialmente as galáxias, se afastam uns dos outros; e, se hoje os elementos do universo se afastam uns dos outros, então no passado estavam mais próximos uns dos outros.
Quão próximos?
Visto que o modelo padrão foi construído com muita matemática (que é, em essência, a matemática de três áreas da física: teoria geral da relatividade, teoria quântica de campos, e termodinâmica), o físico pode lançar mão dos modelos matemáticos para dar resposta a essa pergunta — “Quão próximos?” E aí, conforme ele vai “andando para trás” no eixo do tempo, vai calculando a proximidade dos elementos do universo; e com isso pode calcular as características do universo conforme a proximidade dos elementos era em média assim e assado.
Ocorre que o físico não consegue andar para trás no eixo do tempo indefinidamente: a certa altura, há uma singularidade; há um momento no passado, um ponto no eixo do tempo, no qual o valor de certas funções tende ao infinito e as características de certas funções se degeneram. Em particular, quando t tende à singularidade pela direita, a densidade do universo tende ao infinito. Por causa disso, o físico tomou duas decisões sensatas: atribuiu o valor t = 0 para esse ponto no eixo do tempo, isto é, transformou a singularidade na origem O do eixo do tempo; e retirou todo ponto t ≤ 0 do domínio do discurso. É um caso semelhante ao do ponto t = 0 no gráfico da função f.
Você já pode entender algumas das consequências dessas decisões. Visto que no modelo padrão o ponto em que t = 0 não faz parte do domínio do discurso, o físico não tem o que dizer sobre esse ponto — é como se ele não fizesse parte do universo. Pois, se ele pode dizer algo significativo sobre o universo, só pode dizê-lo de olho no modelo padrão; e daí, se o instante t = 0 não faz parte do modelo padrão, o físico nada pode dizer sobre ele. (Melhor ainda: qualquer coisa que diga sobre qualquer instante t ≤ 0 é mera especulação.) A única coisa que pode dizer sobre t = 0, tendo por base o modelo padrão, é que está localizado no eixo do tempo há mais ou menos 13,8 bilhões de anos. Com essa ideia em mente, você pode reformar a afirmação F1 para torná-la verdadeira.
(V1) Segundo nossa melhor teoria sobre o funcionamento do universo, que é o modelo cosmológico padrão, há 13,8 bilhões de anos ele se apresentava em estado de altíssima densidade e em estado de muito rápida expansão.
Note que, em V1, não aparecem verbos do tipo “surgir”, “aparecer”, “nascer”, “explodir”, etc. Visto que nada se pode dizer sobre os valores de t tais que t ≤ 0, nada se pode dizer sobre a idade do universo ou sobre seu surgimento. O máximo que se pode dizer é que a singularidade está localizada há mais ou menos 13,8 bilhões de anos; mas, sendo uma singularidade, não faz parte do domínio do discurso.
(V2) Segundo nossa melhor teoria sobre o funcionamento do universo, que é o modelo cosmológico padrão, nada se pode dizer sobre quando e como o universo surgiu. O máximo que se pode dizer é que o universo existe há no mínimo 13,8 bilhões de anos.
A afirmação V2 substitui F2 e F3. Agora, a versão verdadeira de F4:
(V3) Logo depois da singularidade (que não faz parte do modelo padrão pois não faz parte do domínio do discurso), o universo infinito em todas as direções era tão denso que o universo hoje visível cabia num ponto menor que a cabeça de um alfinete. Hoje, o universo é menos denso, mas continua a ser infinito em todas as direções.
Nessa afirmação, você não diz que o universo inteiro cabia na cabeça de um alfinete, mas sim o universo visível. É bom sublinhar isso: segundo o modelo padrão, o universo todo é infinito em todas as direções — isso era assim há 13,8 bilhões de anos, era assim ontem, é assim hoje. Repetindo e parafraseando: segundo o modelo padrão, há 13,8 bilhões de anos o universo era infinito em todas as direções, tal como é hoje, só que incrivelmente mais denso.
Por último, para contrapor uma afirmação verdadeira à afirmação F5:
(V4) Os físicos chamam a teoria que inclui as afirmações V1–V3 de “modelo cosmológico padrão”, “modelo 𝚲-CDM”, “modelo lambda-CDM” — ou, mais simplesmente, “modelo padrão”. Eles raramente usam o termo “modelo cosmológico do Big Bang” ou o termo “teoria do Big Bang”, e, quando usam, em geral é porque estão conversando com alguém mais leigo, que por conta própria traz à baila o termo “Big Bang”.
Modelos abstratos se tornaram importantíssimos na ciência contemporânea, e a investigação filosófica sobre modelos está deixando cada vez mais claro algo que Galileu e Newton não sabiam: o homem só é capaz de dizer algo relevante sobre algum sistema da Natureza quando, antes disso, construiu um modelo simplificado desse sistema. Um dos bons modelos atuais de átomo descreve o núcleo não como um conjunto de partículas (prótons e nêutrons) presas umas às outras por meio de força forte, mas como uma gota de um líquido especial — as propriedades do núcleo são as propriedades da gota. Outro bom modelo descreve o átomo como sendo um conjunto de perturbações nas características de campos eletromagnéticos — segundo esse modelo, o que há de fundamental na Natureza não são os átomos, mas sim os campos. Os melhores modelos são modelos abstratos, e os melhores modelos abstratos contêm bastante lógica e matemática: sendo assim, dizer algo relevante sobre a Natureza é dizer algo relevante sobre o modelo, que, por sua vez, é dizer algo relevante sobre a matemática usada no modelo. Em vista disso, se o modelo padrão é o melhor guia daquilo que se pode dizer de relevante sobre o universo, você pode afirmar que, por enquanto, não há nada de muito esplêndido que o homem possa dizer sobre qualquer instante t ≤ 0, exceto que o instante t = 0, que não faz parte do domínio do discurso porque é uma singularidade matemática, “aconteceu” há uns 13,8 bilhões de anos. {FIM}
Observações:
1. Provavelmente, a singularidade é apenas um fenômeno matemático, sem correspondência com o mundo real. Ela talvez desapareça quando os cientistas forem capazes de produzir uma teoria mais completa, que una a física quântica com a teoria sobre a gravitação universal. Se um dia houver um modelo sem a singularidade, talvez se torne possível dizer algo relevante sobre o que aconteceu no instante t = 0 ou antes dele.
2. Note que o modelo padrão não é uma teoria sobre o que aconteceu no instante t = 0, que usamos para extrapolar o que aconteceu depois. É o contrário. É uma teoria sobre observações atuais, que usamos para extrapolar o que aconteceu antes. O que sabemos está localizado no presente, no hoje; o passado é uma ficção útil que compomos a partir do que sabemos hoje.
3. Para ser preciso, por enquanto o modelo padrão não permite ao físico dizer nada relevante sobre o intervalo 0 < t ≤ 1 picossegundo. Nesse intervalo, a densidade do universo é tão alta que a física atual deixa de ser útil.
4. Se eu fosse físico, lutaria bravamente para produzir uma teoria na qual o universo é eterno, pois a ideia de que o universo é eterno me parece mais natural. No entanto, sou o primeiro a reconhecer que a Natureza não tem nenhuma obrigação de ser como eu gostaria que ela fosse. Afinal, Einstein passou 20 anos tentando produzir uma teoria na qual não houvesse singularidades inconvenientes, sem sucesso.
5. Às vezes, o universo visível aparece como “universo observável”, que é um termo mais preciso, pois observamos o universo principalmente por meio de radiotelescópios — é uma observação indireta, feita por meio de instrumentos de tecnologia complicada e muita computação.
6. Se lê inglês e gostaria de saber mais sobre filosofia da cosmologia, clique aqui.
7. Por que escrevo “universo” com “u” minúsculo e “Natureza” com “N” maiúsculo? Para mim, a palavra “Natureza” designa absolutamente tudo; o universo é parte da Natureza, e não necessariamente se confunde com a Natureza. Se existem infinitos universos, se existem infinitos mundos possíveis, como dizem alguns filósofos, cada um deles é também parte da Natureza. Escrevo “Natureza” com “N” maiúsculo porque não há nada que esteja fora ou além da Natureza.