Termos matemáticos aplicados fora da matemática: cuidado


Num trechinho do livro Ética, Spinoza escreveu: “Sem dúvida, a maior parte dos erros [de pensamento] consiste apenas em não aplicarmos corretamente os nomes às coisas.” Parafraseando, para deixar a frase mais clara: “Quando cometemos um erro de pensamento, em geral é porque aplicamos às coisas os termos errados de vocabulário.”

Para observar essa ideia em ação, nesta postagem o leitor (ou leitora) verá como um termo surge na matemática; depois, como passa a ser usado fora da matemática; e também como, na matemática, esse termo servia de matéria-prima para pensamentos corretos, mas, fora da matemática, dá ensejo a erros de pensamento. Todo amante de matemática precisa compreender bem esse fenômeno, pois a matemática é uma fonte espetacular de termos técnicos novos, concebidos para nomear movimentos sutis de pensamento, movimentos estes abstratos; mas termos que, no dia a dia das coisas concretas, são mais difíceis de usar do que parece à primeira vista.

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Suponha o seguinte: você compra um baralho comum (52 cartas), vai a uma praça movimentada da cidade, e passa a desafiar os passantes para uma aposta. Diante de cada um deles, embaralha o maço de cartas e propõe: “Escolha uma carta. Se for o ás de paus, eu te pago x reais. Se for qualquer outra carta, você me paga y reais.”

Problema. Para fazer com que o passante fique tentado a apostar, e para que a coisa toda seja vantajosa para você, que valores atribuiria para x e y?

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Para resolver esse problema, o leitor precisa do conceito de valor esperado. Na equação a seguir, E(x, y) é o valor esperado da aposta em função dos valores de x e de y (medidos em reais), Pr(¬A) é a probabilidade de que o passante não retire do baralho um ás de paus, Pr(A) é a probabilidade de que o passante retire um ás de paus, y é o valor associado a não-ás-de-paus (qualquer carta exceto o ás de paus), e x é o valor associado ao ás de paus.

E(x, y) = Pr(¬Ay + Pr(Ax

Mais especificamente:

E(x, y) = (51/52)·y – (1/52)·x

A parcela (51/52)·y é positiva porque, caso o passante não retire o ás de paus do baralho, você embolsa y; a parcela (1/52)·x é negativa porque, caso o passante retire o ás de paus, você desembolsa x.

É claro que o valor esperado E(x, y) da aposta tem de ser positivo, pois, caso contrário, você perderá dinheiro. Além disso, o valor de y tem de ser tão baixo quanto possível, pois o passante sabe que, muito provavelmente, não vai retirar o ás de paus do baralho, isto é, sabe que muito provavelmente perderá a aposta. Inversamente, o valor de x tem de ser tão alto quanto possível, para que o passante se sinta tentado a apostar. A tabela a seguir mostra o valor esperado em função de dois conjuntos de valores para x, y. (Valores arredondados.)

E(x, y)yx
3599
510250

Se você brincou com esse problema, percebeu suas dificuldades: se fixa um valor baixo para y, consegue mais facilmente convencer o passante a apostar, porque daí ele perde pouco; em compensação, tem de fixar valores mais baixos para E e para x; quero dizer, menos você ganha por aposta, e menos o passante ganha caso tenha a sorte de tirar o ás de paus. Se você fixa um valor mais alto para y, pode daí fixar um valor mais alto para E e para x, e o valor mais alto de x serve para deixar o passante mais tentado a apostar; em compensação, o passante mais avesso a risco desistirá da aposta assim que perceber o inevitável: que provavelmente perderá o valor de y.

Outro problema: se você faz y = 10 reais e x = 250 reais, o valor esperado E da aposta é de apenas 5 reais, como mostram as contas e a tabela. Para ganhar 300 reais com um dia de trabalho, terá de passar tempo suficiente na praça, abordando passantes, até convencer 60 pessoas a apostar. Isso provavelmente levará o dia todo, exigirá de você um discurso bem elaborado (quase um espetáculo de teatro), e será cansativo.

Eu fiz uma simulação sobre o que aconteceria se, todo dia, conseguisse convencer sessenta pessoas a apostar; e se, além disso, trabalhasse cinco dias. Usando o website random.org, sorteei sessenta inteiros de 1 a 52, cinco vezes seguidas, sendo que o número 1 significava ás de paus, isto é, sempre que aparecia 1 entre os sessenta inteiros, é porque o passante tirou um ás de paus. No primeiro dia, saiu 1 só uma vez; no segundo, nenhuma vez; no terceiro, duas vezes; no quarto, uma vez; e no quinto, duas vezes. Assim, ao todo, ganhei 1.440 reais em cinco dias de trabalho. Isso é bem consistente com o valor esperado E de 5 reais, pois 300 apostas ao longo de cinco dias, multiplicadas pelo valor esperado de 5 reais por aposta, resultam em 1.500 reais.

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O conceito de valor esperado surgiu quando, a partir do século 16, os matemáticos passaram a estudar jogos de azar. (E, como o leitor pôde ver na seção precedente, é um conceito perfeitamente aplicável a jogos de azar comuns.) Depois, com o tempo, passou a ser usado pelos que estudavam informação; visto que o conceito de informação é fundamental, o conceito de valor esperado passou também a ser usado por aqueles que estudam linguística, computação, riscos, física. Até que, a certa altura, já no século 20, muita gente achou que poderia usar o conceito de valor esperado para caracterizar o de racionalidade. Veja:

Definição de racionalidade. Diga que uma ação é racional se, dadas as circunstâncias, a ação é aquela cujo valor esperado é o maior possível.

Por algumas décadas, houve quem achasse que, finalmente, o homem estava perto de uma definição ótima de racionalidade. Contudo, em 1988, E. J. Gracely publicou um contraexemplo na revista Analysis.

Era uma vez um sujeito, chamado Azarado, que morreu e foi parar no inferno. Mas Deus teve pena dele e obrigou o Diabo a lhe fazer uma oferta, de tal modo que pelo menos tivesse uma chance de ir para o céu.

O Diabo se encontrou com Azarado e explicou:

“Se você quiser, pode jogar esta moeda. Se sair cara, está liberado para ir para o céu. Se sair coroa, você permanece no inferno para sempre.”

Azarado ficou superfeliz. Mas daí o Diabo explicou melhor:

“Só que eu controlo mentalmente a moeda. Se você aceitar a aposta hoje, a probabilidade de cara é de 50%, assim como a de coroa. Contudo, se você esperar até amanhã, e fizer a aposta só amanhã, a probabilidade de cara aumenta para 3/4, e a de coroa cai à metade: cai para 1/4.”

Azarado conhecia ideia de valor esperado, e rapidamente fez as contas de cabeça: se fizesse a aposta hoje, o valor esperado da aposta seria igual a zero. (Ele assumiu, para simplificar as contas, que ir para o céu vale 1 e que ficar no inferno vale –1.) Mas, se fizesse a aposta amanhã, o valor esperado seria igual a 2/4. Logo, sendo uma pessoa racional (embora azarada), deixou para fazer a aposta no dia seguinte.

Na manhã do dia seguinte, depois de uma noite dos infernos, o Diabo voltou a conversar com Azarado:

“Se você quiser, pode jogar a moeda hoje. Se sair cara, está liberado para ir para o céu. Se sair coroa, você permanece no inferno para sempre.”

Mas então completou:

“Só que, como você já sabe, eu controlo mentalmente a moeda. Se você aceitar a aposta hoje, a probabilidade de cara é de 3/4, como prometi ontem. Contudo, se você esperar até amanhã, e fizer a aposta só amanhã, a probabilidade de cara aumenta para 7/8, e a de coroa cai à metade: cai para 1/8.”

Azarado fez as contas. Se apostasse naquele mesmo dia, o valor esperado seria 2/4. Se deixasse para o dia seguinte, o valor esperado aumentaria para 6/8. Azarado deixou para o dia seguinte.

No dia seguinte… O Diabo fez a mesma proposta, mutatis mutandis. Se Azarado apostasse no mesmo dia, a probabilidade de cara seria igual a 7/8, e o valor esperado da aposta seria 6/8. Se deixasse para o dia seguinte, a probabilidade de cara aumentaria para 15/16, e a de coroa cairia para 1/16; desse modo, o valor esperado de realizar a aposta no dia seguinte aumentaria para 14/16.

Azarado entendeu qual era o plano diabólico do Diabo. O valor esperado de apostar no dia n seria sempre menor do que o de apostar no dia n + 1, pois, no dia n + 1, a probabilidade de coroa cairia à metade, comparada com a do dia n. O valor esperado de apostar no dia seguinte seria sempre [2(n+1) – 2] dividido por 2(n+1), valor maior que o valor esperado de apostar no mesmo dia n. Assim, a cada dia que Azarado adiasse a aposta e passasse no inferno, o valor esperado de realizar a aposta no dia seguinte aumentaria, e se aproximaria devagar de 1 pela esquerda. Com isso, Azarado, querendo ser racional pela definição segundo a qual ser racional é sempre apostar na opção de maior valor esperado, passaria a eternidade no inferno! “Isso não pode estar certo”, disse Azarado consigo mesmo. “Esse demônio está tentando me enganar!” Qualquer pessoa racional em algum momento mandaria a definição de racionalidade às favas e realizaria a aposta — ou, em outras palavras, em algum momento optaria pela ação de menor valor esperado.

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Os matemáticos forneceram à humanidade milhares de conceitos importantes. Alguns passaram a fazer parte da cultura popular: “sair pela tangente”. Alguns são usados apenas em situações mais técnicas: “custo marginal”. E alguns ainda são usados somente em situações puramente matemáticas: “classe V de inclusão máxima de conjuntos puros”.

Assim, talvez, esse é o maior serviço que um matemático presta à humanidade: o de conceber sistemas axiomáticos, em primeiro lugar, para depois explorar suas consequências lógicas. Tais sistemas, uma vez que tenham sido explorados por algum tempo, podem ser úteis para cientistas e especialistas: eles vão usá-los como analogia, de modo a pensar mais claramente sobre a Natureza, incluindo os problemas humanos. Mas não cabe ao matemático nem ao usuário de matemática uma crítica geral e sistemática da adequação dos nomes matemáticos a situações práticas. Essa crítica é papel do filósofo.

É o filósofo, é um sujeito como Gracely, quem vai examinar definições aceitas por todos e procurar contraexemplos às definições. Seu objetivo não é ser um chato, não é estragar A Festa dos Humanos para os quais Há Nomes para Tudo, mas sim contribuir para o esforço humano de produzir definições que sejam as mais abrangentes possíveis — o alvo é produzir definições que sirvam para qualquer pessoa, em qualquer situação, em qualquer mundo possível. Seu objetivo é produzir bons nomes, mais os critérios de aplicação de tais nomes, de modo que o agente possa usá-los para compor um pensamento correto sobre a Natureza. Esse trabalho é importante. Pense nos engenheiros da Nasa, por exemplo, que ambicionam fabricar sondas espaciais equipadas com inteligência artificial: ora, quanto mais a sonda souber definições universais, mais preparada está para enfrentar situações não previstas pelos engenheiros que a criaram.

Todo estudante de matemática faz bem ao estudar filosofia. Ao estudar o pensamento de seres humanos incríveis como Platão, Aristóteles, Spinoza, Hume, Nietzsche, Simone de Beauvoir, o estudante fica mais sensível ao uso de nomes: seus instintos ficam mais aguçados, e ele percebe, antes mesmo de explicar o que percebeu e como percebeu, que certos nomes estão sendo aplicados de maneira incorreta ou fraudulenta. Hoje em dia, por exemplo, “racionalidade”, “convicção”, “fatos”, “evidências”, e “Deus”. {Fim}


Observações:

1. O trechinho de Spinoza está na segunda parte da Ética, no escólio da proposição 47. Uso a tradução de Tomaz Tadeu, publicada pela Autêntica em 2009. (Para comprá-la na Amazon, clique aqui.)

2. É muito difícil, se não for impossível, compreender a Ética de Spinoza sozinho. Recomendo dois comentários: Behind the Geometrical Method: A Reading of Spinoza’s ‘Ethics’, de Edwin Curley; e Spinoza’s Religion: A New Reading of the ‘Ethics’, de Clare Carlisle.

3. Você pode ver os valores que o Diabo propõe a Azarado como limites. O limite de [2(n+1) – 1]/2(n+1), que é a probabilidade de cara, tende a 1 conforme n tende ao infinito; o limite de 1/2(n+1), que é a probabilidade de coroa, tende a zero conforme n tende ao infinito. (Sendo n um inteiro positivo que representa o número de dias.) Com isso, o valor esperado da aposta (com 1 unidade sendo o valor de ir para o céu e –1 o valor de ir para o inferno) tende a 1 conforme n tende ao infinito.

Aliás, nos bastidores da definição usual de valor esperado, também existe a ideia de limite. Quando você faz x = 250 reais e y = 10 reais, e diz que o valor de E é de 5 reais, está dizendo, na verdade, o seguinte: que se alguém propuser a aposta sobre o ás de paus para n passantes, com n tendendo ao infinito, o valor de E tenderá a 5 reais.

4. Nome. Substantivo. Termo. Conceito. Rótulo. Designação. Caracterização. Definição. Tais palavras fazem parte da mesma família. Usar um termo de vocabulário incorretamente é rotular certa coisa do mundo incorretamente; é colocar o livro Moby Dick na estante de biologia, em vez de colocá-lo na de romance americano; é dizer que a coisa faz parte de determinado conjunto, quando, na verdade, não faz.

5. Como constituir um sistema axiomático. Você vai precisar de: (a) termos primitivos, que pode explicar ao leitor usando a linguagem corrente, mas que não vai definir formalmente; (b) termos definidos formalmente, ou seja, definições feitas com termos primitivos; (c) axiomas, ou afirmações feitas com termos primitivos e termos definidos formalmente, e tidas como verdadeiras por hipótese; (d) regras de inferência, também escritas com termos primitivos e termos definidos formalmente. Com isso, tem condições de usar o seu sistema axiomático para deduzir dele teoremas, que são afirmações corretamente deduzidas dos axiomas por meio das regras de inferência.

Sempre digo que isso tudo é semelhante a um jogo. (Na verdade, sistemas axiomáticos são isomórficos com jogos.) Para constituir um jogo, você precisa definir o tabuleiro, as peças, a posição inicial, e as regras pelas quais mover as peças, assim como as regras para definir quando o jogo acaba e quem deve ser declarado vencedor. Um teorema do jogo é uma posição que se segue da posição inicial e da aplicação correta das regras do jogo.

Demorou vários séculos para que um membro da humanidade, o autor deste blogue, pudesse escrever os dois parágrafos precedentes. Hoje está clara a missão do matemático: transformar raciocínios corretos, mas feitos por instinto, em sistemas axiomáticos explícitos; ou então usar a criatividade para propor sistemas axiomáticos que não têm nada a ver com os instintos humanos (pois são jogos absolutamente extravagantes), mas que talvez sirvam como fonte de nomes para quem vai pensar sobre a Natureza.

O ponto de Spinoza: é perfeitamente possível lançar mão de um sistema axiomático sofisticado (pense no cálculo diferencial e integral) e aplicá-lo incorretamente aos fenômenos da Natureza; isso acontece nos casos em que é imperfeita a correspondência entre os elementos da Natureza e os termos mais importantes do sistema axiomático, mas o estudioso não percebe isso antes de tirar suas conclusões.