Sobre a existência de leis morais objetivas


Na postagem Elementos de Ateísmo Platônico, o autor, o filósofo americano Eric Steinhart, menciona várias vezes a existência de leis morais objetivas. Ele se refere à “lei moral” como se existisse um conjunto abstrato de proposições morais, absolutamente eterno, necessário (isto é, verdadeiro em todo mundo possível), que precede tanto homens quanto deuses, se houver deuses. Para ele, a lei moral é tão objetiva quanto a lei da gravidade, tão objetiva quanto as leis da termodinâmica. Mais precisamente, a lei moral é tão objetiva quanto as leis da lógica e da matemática. Destaco dois parágrafos com os quais Steinhart explica melhor o que pretende dizer com leis morais objetivas:

“Há leis de moralidade. Tais leis são necessárias e universais. Elas incluem as leis que governam as relações entre pessoas de qualquer tipo. Elas cobrem as relações entre pessoas humanas e não humanas (chimpanzés, golfinhos, robôs sencientes, alienígenas extraterrestres, deuses, pessoas em outros universos). As leis morais incluem leis que governam as relações entre duas pessoas (por exemplo, não matar, não roubar, dizer a verdade, cumprir promessas). Mas as leis morais também incluem leis que governam sistemas maiores de pessoas. Elas incluem leis sociais e políticas. As leis morais incluem o sistema jurídico ideal, assim como a constituição ideal. Elas definem a comunidade ideal de povos e nações.

“O ateísta platônico é um realista moral. As leis da moralidade são objetivas. Elas são independentes de qualquer mente. Nós não as criamos: nós as descobrimos. Conforme nossas civilizações evoluem, produzimos representações da lei moral. Tais representações incluem os vários códigos legais e morais (a começar pelo código de Hammurabi). Elas também incluem os arquétipos de Estados ideais (por exemplo, a República de Platão ou a Utopia de Moore). Na maioria das vezes, temos feito progressos; nossas representações da lei moral têm ficado mais e mais acuradas. Mas tem havido fracassos retumbantes (como o fascismo, o comunismo, e o fundamentalismo).”

Mais à frente, ele ainda escreve:

“O ateísta platônico diz que as leis morais estão acima de todas as pessoas. Não há pessoa que possa alterar as leis morais. Elas estão além do poder de qualquer deus.”

Alguns leitores duvidam da existência de leis morais objetivas, e me escreveram para dizer que, provavelmente, só existem convenções sociais: numa sociedade x, os trabalhadores se levantam quando o chefe entra na sala — na sociedade x, é certo se levantar à entrada do chefe, é errado permanecer sentado; noutra sociedade y, os trabalhadores não se levantam quando o chefe entra na sala — na sociedade y, é certo permanecer sentado à entrada do chefe, é errado se levantar. E assim por diante, para todo e qualquer preceito moral. Para tais leitores, as leis morais estão mais para parágrafos de um contrato social tácito sobre como viver em comunidade do que para coisas objetivas.

Nesta postagem, o leitor verá a montagem de um argumento para defender a tese de que existem leis morais necessárias e objetivas.

Lembrete: “Necessário” significa “verdadeiro em todo mundo possível”. Quanto a “mundo possível”, por sua vez, é um conjunto de universos. Use UH para denotar o universo em que vivem os seres humanos. Daí {UH} é um mundo possível unitário, no qual o único elemento é nosso universo; {UH, ∅} é um mundo possível com dois universos, o nosso universo e o universo vazio, ou seja, {UH, ∅} é um multiverso; {U𝛼, U𝛽, U𝛾} é um mundo possível com três universos, dos quais nenhum deles é o universo humano UH. E assim por diante.

* * *

Comece com o jogo da velha. Suponha que você jogue X1, isto é, X na casa 1. Logo depois seu oponente responde com O2. O tabuleiro fica assim:

Lei X5-X7. Depois de jogar X1 e de seu oponente responder com O2, se você pretende ganhar o jogo, então deve jogar X5. Depois de X5, o melhor que seu oponente pode fazer é jogar O9. E daí você joga X7, para ficar com duas maneiras de ganhar o jogo: se o oponente joga O3, você ganha com X4; se o oponente joga O4, você ganha com X3.

A lei X5-X7 é uma lei objetiva. Ela é verdadeira em todo mundo possível; ela é verdadeira em toda situação possível. Ela é verdadeira para qualquer pessoa que jogue o jogo da velha, seja um homem, seja um robô, seja um deus. Diz o platonista: as leis morais também são assim: objetivas e necessárias, pois verdadeiras em todo mundo possível.

Objeção 1. “Mas não é bem isso o que quero dizer quando digo ‘leis morais objetivas’. Quero dizer algo mais forte: leis que se parecem com a lei da gravidade, isto é, que agem sobre todos, quer queiram, quer não queiram. Todos devem se sentir compelidos a seguir uma lei moral objetiva, e quando alguém não a segue, deve automaticamente se sentir em estado de erro: deve automaticamente saber que está tentando se opor a uma lei da Natureza. A lei X5-X7 não me parece assim: se quero ganhar, jogo X5, mas não sou obrigado a jogar X5. Aliás, se perco um jogo da velha, que diferença isso faz? Com a lei X5-X7, tenho a impressão de que, na verdade, não tenho nada a perder, pois não há nada de importante em jogo.”

Imagine agora a seguinte situação: você vive no mundo hipotético MJV no qual, sempre que se encontra com alguém, joga o jogo da velha com ele (ou com ela). Não importa quem ganha ou quem perde — o que importa é jogar de corpo e alma, é jogar para ganhar. Se os dois se empenham para jogar bem, ao fim do jogo, ambos ganham o poder de cooperar numa das muitas tarefas necessárias para manter a cidade onde moram funcionando e também para desenvolvê-la. Se um dos dois não joga para ganhar, se um dos dois é leniente no jogo, os dois não conseguem cooperar um com o outro: surge entre eles uma ausência, uma fissura — surge entre eles uma infelicidade.

Com isso, dois casos ficam claros. Primeiro, a cidade com o maior número de indivíduos que jogam o jogo da velha para valer se mantém funcionando e, conforme o tempo passa, se desenvolve. Ela fica mais forte. Ao contrário, a cidade com menor número de jogadores fervorosos de jogo da velha funciona mais ou menos, e talvez até degringole. Ela fica mais fraca. Segundo, se você deseja que sua cidade se mantenha de pé, e se deseja ainda mais que ela se aperfeiçoe, então deve sempre se aproximar de seus concidadãos disposto a jogar o jogo da velha para valer, isto é, deve considerar a lei X5-X7 como sendo objetiva, necessária, universal. Nesse segundo caso, pode até reescrever a lei X5-X7 assim: “Se você deseja que sua cidade se mantenha de pé, e ainda por cima se desenvolva, a cada encontro jogue o jogo da velha de corpo e alma; em particular, depois de jogar X1 e de seu oponente responder com O2, jogue X5; depois de O9, jogue X7.”

Objeção 2. “A lei X5-X7, versão reescrita, é uma afirmação condicional com duas partes: o enunciado antecedente (‘se você deseja que sua cidade funcione e se desenvolva’) e o consequente (‘então jogue de corpo e alma, isto é, jogue X5-X7’). É claro que ela é verdadeira em todo mundo possível — pois, se pouco me lixo sobre minha cidade funcionar ou florescer, daí o antecedente é falso, e com isso a afirmação condicional como um todo é verdadeira. Mas e se eu realmente não tenho interesse em jogar para ganhar, de modo a preservar minha cidade ou a desenvolvê-la? Daí a lei X5-X7 não tem poder sobre mim. Mais uma vez, quero chamar a atenção para a lei da gravidade, que não funciona assim: quer eu queira me submeter à lei da gravidade, quer não queira, em qualquer caso ela tem poder sobre mim. A lei da gravidade não é uma afirmação condicional — ao contrário, se posso vê-la como uma afirmação, é uma afirmação incondicional. É isso o que espero de uma lei moral necessária e objetiva.”

Ora, como resposta à segunda parte da objeção 2, a lei da gravidade também pode ser escrita na forma de uma afirmação condicional. “Se ninguém fizer nada para contrabalançar a força da gravidade, então a força de atração gravitacional entre dois corpos exercerá seu poder naturalmente, e ela é diretamente proporcional ao produto da massa dos dois corpos, e inversamente proporcional ao quadrado da distância entre eles.” O enunciado antecedente “se ninguém fizer nada” não é mero truque linguístico, pois há o que se possa fazer: caso alguém instale asas e turbinas num cilindro de metal cujo peso se mede em toneladas, o cilindro voa, em vez de ficar preso ao chão por causa da força da gravidade. E o cilindro ganha ainda um nome especial: “avião”.

Portanto, se ninguém fizer nada para contrabalançar a gravitação universal, paga um preço: as coisas pesam, elas caem, elas não voam. No mundo hipotético MJV, se você não joga o jogo da velha de corpo e alma a cada encontro, também paga um preço. Que preço é esse?

É hora de dois conceitos importantes para o platonista contemporâneo. Um deles é o de valor intrínseco; o outro é o de Bem (com letra “B” maiúscula).

Valor intrínseco. Se duas coisas complexas (feitas de partes) são semelhantes, a coisa de maior valor intrínseco é a mais complexa. Se duas coisas semelhantes são igualmente complexas, a coisa de maior valor intrínseco é aquela na qual há maior harmonia entre as partes. Valor intrínseco é igual a complexidade (muitas partes) mais harmonia entre as partes. Se você tomar o termo “congruência” como sendo mais ou menos igual a consistência, complexidade, extensão, harmonia, equilíbrio, beleza, etc., então valor intrínseco é igual à congruência entre as partes. Se você aumenta a complexidade de algo, sem perder a harmonia entre as partes, então você aumenta sua congruência, isto é, seu valor intrínseco; se você mantém a complexidade de algo, mas aumenta a harmonia entre suas partes, então também aumenta sua congruência = seu valor intrínseco.

Algumas consequências: Se duas cidades são igualmente complexas, a de maior valor intrínseco é aquela na qual há maior harmonia entre suas partes — maior harmonia entre instituições, cidadãos, infraestrutura, etc. Se as partes de duas cidades distintas são igualmente harmônicas, a cidade de maior valor intrínseco é a mais complexa. Se dois estágios da mesma pessoa são igualmente harmônicos, o estágio mais complexo é o de maior valor intrínseco — por exemplo, a pessoa nesse estágio sabe mais coisas. Se dois estágios da mesma pessoa são igualmente complexos, o estágio no qual há maior harmonia é o de maior valor intrínseco; por exemplo, a pessoa nesse estágio aprendeu a controlar melhor seu corpo, incluindo suas emoções e sua razão.

Bem. O Bem é uma espécie de ideia matemática. É uma espécie de limite. Imagine uma sequência infinita de universos U0, U1, U2, …, Un, …, na qual a congruência de cada universo é a máxima possível e na qual o valor intrínseco cresce constantemente: o universo Uq tem maior valor intrínseco que o universo Up se p < q; em outras palavras, dado que tanto Uq quanto Up têm o maior grau possível de harmonia entre as partes, Uq é mais complexo que Up. Daí o Bem é o limite dessa sequência. Imagine uma sequência infinita de versões da mesma pessoa P: P0, P1, P2, …, Pn, …, sequência na qual o valor intrínseco de Pj cresce constantemente: Pq tem maior valor intrínseco que Pp se p < q, ou porque Pq alcançou maior complexidade que Pp, mas sem perder harmonia; ou porque Pq manteve a mesma complexidade de Pp, mas conquistou maior harmonia. Daí o Bem é o limite dessa sequência. Imagine uma sequência infinita de ciências C0, C1, C2, …, Cn, …, na qual cada ciência Cj é um conjunto congruente de proposições verdadeiras sobre universos possíveis ou concretos, e na qual o valor intrínseco de cada elemento Cj da sequência só aumenta, isto é, Cq tem maior valor intrínseco que Cp se p < q. Daí o Bem é o limite dessa sequência. O Bem é uma entidade platônica absolutamente transcendental, e não é uma pessoa; em particular, não é um deus, não é a mente de um deus, não é algo na mente de um deus. O Bem é o telos por excelência — “telos” sendo “objetivo derradeiro”. Nada pode ir além do Bem. Ao contrário, se algo chegou ao maior valor intrínseco x, o valor intrínseco do Bem está infinitamente além de x. O Bem não tem mentalidade, e portanto não é consciente, mas existe como entidade abstrata transcendental, da mesma forma que o conjunto de todas as funções contínuas não é consciente nem tem mentalidade, mas existe como objeto abstrato.

Além dos dois conceitos de valor intrínseco e de Bem, você vai precisar de um axioma:

Axioma platônico. A função de todo ser racional, seja neste nosso universo, seja em qualquer mundo possível, é o de dar testemunho do Bem — é o de viver para o Bem. Em outras palavras, é o de se empenhar para alcançar maior complexidade com máxima harmonia; ou então é o de se empenhar para conquistar a maior congruência que puder alcançar.

Se você vive no mundo hipotético MJV, para dar um passo no sentido do Bem, tem de aumentar o valor intrínseco da cidade onde mora. Por isso, sempre que interage com um de seus concidadãos, tem de jogar o jogo da velha de corpo e alma; em particular, tem de seguir a lei X5-X7. O argumento fica assim: (1) É certo viver em razão do Bem, e é certo dar testemunho do Bem, pois é certo agir para alcançar maior complexidade e maior harmonia, isto é, é certo agir para alcançar maior valor intrínseco. (2) Para alcançar maior valor intrínseco, contudo, você precisa da ajuda de seus concidadãos — você precisa de professores, instrutores, médicos, artesãos, amigos, amores. Você precisa do apoio de todo tipo de gente, com todo tipo de perícia, e é bom que essa gente tenha o maior valor intrínseco possível, e além disso é bom que essa gente viva na melhor cidade possível. Portanto, é certo agir de modo a aumentar o valor intrínseco da cidade como um todo. (3) Para aumentar o valor intrínseco da cidade, é preciso obter a capacidade de cooperar com os outros concidadãos. (4) Se é preciso obter a capacidade de cooperar com os concidadãos, para assim aumentar o valor intrínseco da cidade, então é mandatório jogar o jogo da velha de corpo e alma a cada interação com cada um de seus concidadãos, isto é, é mandatório se submeter à lei X5-X7. (5) É mandatório se submeter à lei X5-X7. (6) Logo, visto que a lei X5-X7 foi estabelecida por meio de um argumento robusto, visto que argumentos são objetos abstratos, e visto que objetos abstratos são objetivos e necessários, a lei X5-X7 é uma proposição objetiva e necessária.

* * *

Basta de jogo da velha como analogia. O argumento a seguir é semelhante ao da seção anterior, porém mais detalhado e um pouco mais cotidiano.

(1) É certo viver em razão do Bem, e também é certo dar testemunho do Bem, isto é, é certo agir de modo a alcançar maior complexidade, mas com a máxima harmonia. Em outras palavras, para viver em razão do Bem e para dar testemunho do Bem, você deve se empenhar para alcançar maior congruência ou valor intrínseco.

(2) Para alcançar maior valor intrínseco, contudo, você precisa da ajuda de seus concidadãos — precisa de professores, médicos, artesãos, policiais, amigos, amores. Você precisa do apoio de gente com todo tipo de perícia. Cada uma dessas pessoas, contudo, só poderá ajudá-lo da melhor maneira possível se cada uma delas alcançou, ou está lutando para alcançar, o maior valor intrínseco possível. Portanto, se é certo se empenhar para alcançar o maior valor intrínseco possível, ao mesmo tempo é certo se empenhar para aumentar o valor intrínseco da cidade como um todo.

(3) Para aumentar o valor intrínseco da cidade, e com isso obter de seus concidadãos a ajuda de que necessita para aumentar seu próprio valor intrínseco, você precisa cooperar com seus concidadãos, e precisa também que eles cooperem com você.

(4) Se você precisa cooperar com seus concidadãos, e precisa também que eles cooperem com você, então, a cada relacionamento com um de seus concidadãos, você precisa se colocar mentalmente no lugar dele (ou dela) e, uma vez que entenda a situação do ponto de vista dele, você faz a ele o que gostaria que ele fizesse a você, se você estivesse na situação dele e ele estivesse na sua, isto é, se seus papéis estivessem trocados.

(5) Em outras palavras, “cooperar com seus concidadãos” não significa “usar seus concidadãos como se eles fossem meramente meios para seus fins”, mas sim “considerar seus concidadãos não apenas como meios para seus fins, mas também como fins em si mesmos”.

(6) Portanto, para viver em razão do Bem, e para dar testemunho do Bem, você precisa se submeter à lei de ouro: “Ponha-se no lugar do outro e, uma vez que entenda a situação de seu ponto de vista e do ponto de vista dele, faça ao outro como gostaria que ele fizesse a você, se você estivesse no lugar dele e ele estivesse em seu lugar.”

(7) Logo, visto que a lei de ouro foi estabelecida por meio de um argumento robusto, visto que argumentos são objetos abstratos, e visto que objetos abstratos são objetivos e necessários, então a lei de ouro é uma proposição objetiva e necessária.

(8) Portanto, há pelo menos uma lei moral objetiva e necessária, qual seja, a lei de ouro. Além disso, se você não tiver um bom domínio da lei de ouro, a arte de se autossuperar se torna imensamente mais difícil, isto é, a arte de viver em razão do Bem e de dar testemunho do Bem se torna imensamente mais difícil.

* * *

Sócrates dizia que qualquer pessoa tem uma e só uma missão sobre a Terra: tornar-se cada vez mais divina. Hoje em dia, séculos depois de Sócrates, o platonista tem uma receita bastante específica sobre como andar no sentido do Bem, e o principal ingrediente dessa receita é a eficiência de Pareto.

Considere você hoje, e depois imagine você no futuro. Esse “você futuro” é sua contraparte. Assim como você hoje, o você futuro é um ser complexo, feito de partes. Se você pretende agir hoje para se autossuperar, e assim aumentar seu valor intrínseco no futuro, pode estabelecer uma relação de contrapartes que pressuponha a eficiência de Pareto. Uma relação de contrapartes é Pareto-ótima se e somente se ela satisfaz quatro restrições:

(I) Para não perder valor ao perder uma parte velha, cada parte velha do todo atual tem pelo menos uma contraparte nova no todo futuro.

(II) Para não perder valor ao juntar duas ou mais partes velhas numa única parte nova, cada parte velha distinta tem uma parte nova também distinta que é sua contraparte.

(III) Nenhuma parte velha tem uma contraparte nova que seja menos valiosa que a parte velha.

(IIII) Pelo menos uma parte velha tem uma contraparte nova que é mais valiosa que a parte velha.

Por exemplo, suponha que você saiba lutar caratê, mas não sabe inglês. Isso significa que tanto o caratê quanto o inglês são duas de suas partes hoje — o caratê vale bastante, pois você é faixa-preta; mas o inglês não vale nada, pois você não fala inglês. Você se matricula numa boa escola de línguas estrangeiras; sua ideia é se dedicar para que, em no máximo dois anos, esteja falando inglês bastante bem. Contudo, não poderá se descuidar do caratê — tem de continuar treinando. Assim, sua contraparte nova, daqui a dois anos, não perderá valor ao perder a capacidade de lutar caratê, mas ganhará valor ao ganhar a capacidade de falar inglês.

Ao longo desse processo de transformação, terá de recorrer à lei de ouro muitas vezes. Se o professor de inglês te pedir uma redação, você escreverá a redação tão bem quanto puder, porque, se você fosse o professor, gostaria muito que seus alunos se dedicassem aos estudos. Se o instrutor de caratê te pedir para lutar com um aluno novato, um faixa-branca, você lutará não com toda a sua capacidade (se fizesse isso, machucaria o novato), mas ajustará sua capacidade para que fique um tantinho acima da capacidade do novato, porque, se você estivesse no lugar do novato, gostaria muito de lutar com alguém que seja difícil de vencer, mas não impossível de vencer — já que ninguém aprende nada lutando contra adversários invencíveis. O platonista atual diz que ninguém consegue viver bem sem que recorra o tempo todo a leis morais objetivas, como a lei de ouro — e isso é o que distingue tais leis de meras convenções sociais: não apenas é possível montar argumentos robustos para justificar leis morais objetivas, como também parece que, com argumentos ou sem argumentos, elas se impõem por si mesmas. Como a lei da gravidade.

Por último, se valor intrínseco é igual a complexidade mais harmonia, qual desses dois componentes de valor é mais importante? Complexidade ou harmonia?

Harmonia é mais importante. Se você deve aprender a se tornar mais complexo ao longo da vida, deve mais ainda aprender a tornar harmônicas as partes das quais é composto, e por um motivo banal: quem vive tempo suficiente para envelhecer fatalmente perderá complexidade. Talvez sofra um acidente de carro e perderá uma perna. Talvez tenha uma infecção e perderá a visão de um dos olhos. Talvez sua memória comece a falhar e não conseguirá mais falar inglês tão bem quanto antes. Não tem importância — quase toda gente passa por isso. É importante manter a complexidade sempre a mesma; é mais importante ainda aprender a aumentá-la; mas é importantíssimo aprender a orquestrar uma harmonia entre suas partes remanescentes a cada etapa da vida. Na República de Platão, Sócrates disse (354a): “A pessoa justa é feliz, e a pessoa injusta é miserável.” Contudo, Sócrates usava o termo “justiça” significando algo próximo de “harmonia”. Parafraseando com a linguagem técnica atual: “A pessoa congruente é feliz, e a pessoa incongruente é miserável; mais genericamente, a pessoa que constantemente batalha para aumentar seu valor intrínseco é feliz, e a pessoa que se descuida de seu valor intrínseco é miserável.” {FIM}



Observações:

1. Na literatura técnica atual, há uma grande quantidade de sugestões para medir valor intrínseco. Uma delas se chama profundidade lógica. Imagine um ambiente informático de simulação, no qual você consegue produzir objetos (inclusive seres vivos) por meio de um algoritmo recursivo de evolução. A profundidade lógica de um objeto qualquer é a quantidade de trabalho computacional necessário para gerar o objeto a partir de uma entrada aleatória.

2. O axioma platônico é, na verdade, um teorema. Foi defendido por Sócrates ao longo da República a partir de afirmações mais elementares. O famoso mito da caverna é uma ilustração bem visual de como é maravilhoso descobrir a existência do Bem.

3. Mesmo que o leitor pense que não tive sucesso ao estabelecer a objetividade da lei de ouro, deve pelo menos me conceder uma pequena vitória: para o platonista, o jeito certo de conversar sobre leis morais é conversar sobre razões a favor e razões contra, isto é, sobre argumentos. Assim, a conversa sobre leis morais é uma conversa sobre palavras, afirmações, exemplos, lógica — é uma conversa sobre coisas públicas. Se é uma conversa sobre coisas públicas, é uma conversa sobre algo objetivo.

4. Usei várias vezes o termo “de corpo e alma”. Não quero com isso sugerir um dualismo entre matéria e espírito; e menos ainda quero sugerir a ideia de que o platonista moderno é dualista. Ao contrário, os mais famosos filósofos platonistas modernos (como Russell e Gödel) são monistas. Steinhart, por exemplo, é monista: (1) existe uma e só uma Natureza, e ela é matemática; (2) um subconjunto próprio dessa Natureza matemática satisfaz as condições de fisicalidade, e portanto também é física; (3) um subconjunto próprio dessa Natureza física satisfaz as condições de concretude, e portanto também é concreta. Assim, de acordo com Steinhart, obviamente vivemos num universo concreto; mas tudo o que é concreto supervém num substrato físico, e tudo o que é físico supervém num substrato abstrato.

O termo “de corpo e alma” me lembra o conselho de Wittgenstein: cuidado para não se deixar enfeitiçar por expressões da linguagem corrente.

5. Note que, numa relação de contrapartes que seja Pareto-ótima, é desnecessário dizer que o todo novo pode ter uma parte completamente nova, que não existia no todo velho — isso porque você pode ver a parte nova como sendo parte do todo velho também, mas com valor intrínseco igual a zero, já que não existe no todo velho. Pensando assim, cada coisa no mundo tem um número infinito de partes, das quais um número finito tem valor intrínseco maior que zero, mas o resto das infinitas partes tem valor intrínseco igual a zero.

Dois lembretes importantes: (1) Para o platonista, não existe valor intrínseco menor que zero. (2) Ninguém deve usar o conceito de valor intrínseco para discriminar entre duas pessoas; por exemplo, para tratar mal uma que sabe menos diante de uma que sabe mais, ou para tratar mal uma que tem menos posses diante de uma que tem mais. O platonista contemporâneo tem ótimos argumentos para rejeitar todo tipo de escravidão, racismo, sexismo, classismo, etarismo, capacitismo. Não vou detalhar tais argumentos nesta postagem, pois são longos; com um pouco de imaginação, porém, é fácil ver que toda forma de injustiça social deixa a humanidade menos capaz de alcançar maior congruência.

6. O jogo da velha tem poucas regras. As duas mais importantes são: (1) Se você começa jogando num dos cantos (1, 3, 7, 9), e seu oponente joga num dos meios (2, 4, 6, 8), você já ganhou e seu oponente já perdeu. (2) Se você começa jogando no centro (5), e seu oponente joga num dos meios (2, 4, 6, 8), você já ganhou e seu oponente já perdeu.

7. Lembrete: a lei de ouro não implica a incessante aparência de paz e amor. Suponha que tem um filho, e ele vai mal na escola porque não desgruda do celular. Fazer a ele o que você gostaria que ele fizesse a você, se os papéis estivessem trocados, implica estabelecer regras de uso do celular, nem que isso só aconteça depois de um enfrentamento entre pais e filho, nem que isso exija a internação do filho numa clínica especializada no tratamento de vícios incapacitantes.

8. Outra lei moral objetiva se chama, em inglês, tit for tat; em português, na mesma moeda. É incrível como essa lei aparece na natureza; é incrível como ela faz sucesso em simulações de computador. Funciona assim: (1) o agente x, quando se encontra pela primeira vez na vida com um agente y, coopera com ele; (2) se numa interação anterior y cooperou com x, nesta interação x coopera com y; (3) se numa interação anterior y se recusou a cooperar com x, nesta interação x se recusa a cooperar com y; (4) se numa interação anterior x se recusou a cooperar com y, nesta interação x perdoa y de ofensas passadas e x coopera com y. Em simulações nas quais os agentes são instruídos a hostilizar os agentes que jogam tit for tat, mesmo assim estes agentes se saem bem, isto é, tit for tat é uma estratégia vencedora mesmo em ambientes hostis. Segundo Richard Dawkins, tit for tat é uma estratégia evolutivamente estável, isto é, se uma espécie acaba adotando tal estratégia, a estratégia tende a permanecer com a espécie mesmo depois de modificações provocadas por seleção natural.

9. A ideia de Bem, mais a ideia de valor intrínseco como sendo igual a complexidade com harmonia, mais o axioma platônico — tais ideias são úteis para pensar sobre o meio ambiente. A floresta amazônica é complexa e harmoniosa — com harmonia conquistada, a duras penas, ao longo de milhões de anos de evolução por seleção natural. Um garimpo ilegal é algo feio, barulhento, fedorento, poluente. É objetivamente errado permitir que um grupo de malfeitores derrube a floresta amazônica para instalar em seu lugar um garimpo ilegal. É objetivamente correto impedir que tais malfeitores façam seu trabalho, e mais do que isso: impedir que tais malfeitores destruam a floresta é agir em razão do Bem, é dar testemunho do Bem.