Sobre a existência de leis morais objetivas


Na postagem Elementos de Ateísmo Platônico, o autor, o filósofo americano Eric Steinhart, menciona várias vezes a existência de leis morais objetivas. Ele se refere à “lei moral” como se existisse um conjunto abstrato de proposições morais, absolutamente eterno, necessário (isto é, verdadeiro em todo mundo possível), que precede tanto homens quanto deuses, se houver deuses. Para ele, a lei moral é tão objetiva quanto a lei da gravidade, tão objetiva quanto as leis da termodinâmica. Mais precisamente, a lei moral é tão objetiva quanto as leis da lógica e da matemática. Destaco dois parágrafos com os quais Steinhart explica melhor o que pretende dizer com leis morais objetivas:

“Há leis de moralidade. Tais leis são necessárias e universais. Elas incluem as leis que governam as relações entre pessoas de qualquer tipo. Elas cobrem as relações entre pessoas humanas e não humanas (chimpanzés, golfinhos, robôs sencientes, alienígenas extraterrestres, deuses, pessoas em outros universos). As leis morais incluem leis que governam as relações entre duas pessoas (por exemplo, não matar, não roubar, dizer a verdade, cumprir promessas). Mas as leis morais também incluem leis que governam sistemas maiores de pessoas. Elas incluem leis sociais e políticas. As leis morais incluem o sistema jurídico ideal, assim como a constituição ideal. Elas definem a comunidade ideal de povos e nações.

“O ateísta platônico é um realista moral. As leis da moralidade são objetivas. Elas são independentes de qualquer mente. Nós não as criamos: nós as descobrimos. Conforme nossas civilizações evoluem, produzimos representações da lei moral. Tais representações incluem os vários códigos legais e morais (a começar pelo código de Hammurabi). Elas também incluem os arquétipos de Estados ideais (por exemplo, a República de Platão ou a Utopia de Moore). Na maioria das vezes, temos feito progressos; nossas representações da lei moral têm ficado mais e mais acuradas. Mas tem havido fracassos retumbantes (como o fascismo, o comunismo, e o fundamentalismo).”

Mais à frente, ele ainda escreve:

“O ateísta platônico diz que as leis morais estão acima de todas as pessoas. Não há pessoa que possa alterar as leis morais. Elas estão além do poder de qualquer deus.”

Alguns leitores duvidam da existência de leis morais objetivas, e me escreveram para dizer que, provavelmente, só existem convenções sociais: numa sociedade x, os trabalhadores se levantam quando o chefe entra na sala — na sociedade x, é certo se levantar à entrada do chefe, é errado permanecer sentado; noutra sociedade y, os trabalhadores não se levantam quando o chefe entra na sala — na sociedade y, é certo permanecer sentado à entrada do chefe, é errado se levantar. E assim por diante, para todo e qualquer preceito moral. Para tais leitores, as leis morais estão mais para parágrafos de um contrato social tácito sobre como viver em comunidade do que para coisas objetivas.

Nesta postagem, o leitor verá a montagem de um argumento para defender a tese de que existem leis morais necessárias e objetivas.

Lembrete: “Necessário” significa “verdadeiro em todo mundo possível”. Quanto a “mundo possível”, por sua vez, é um conjunto de universos. Use UH para denotar o universo em que vivem os seres humanos. Daí {UH} é um mundo possível unitário, no qual o único elemento é nosso universo; {UH, ∅} é um mundo possível com dois universos, o nosso universo e o universo vazio, ou seja, {UH, ∅} é um multiverso; {U𝛼, U𝛽, U𝛾} é um mundo possível com três universos, dos quais nenhum deles é o universo humano UH. E assim por diante.

* * *

Comece com o jogo da velha. Suponha que você jogue X1, isto é, X na casa 1. Logo depois seu oponente responde com O2. O tabuleiro fica assim:

Lei X5-X7. Depois de jogar X1 e de seu oponente responder com O2, se você pretende ganhar o jogo, então deve jogar X5. Depois de X5, o melhor que seu oponente pode fazer é jogar O9. E daí você joga X7, para ficar com duas maneiras de ganhar o jogo: se o oponente joga O3, você ganha com X4; se o oponente joga O4, você ganha com X3.

A lei X5-X7 é uma lei objetiva. Ela é verdadeira em todo mundo possível; ela é verdadeira em toda situação possível. Ela é verdadeira para qualquer pessoa que jogue o jogo da velha, seja um homem, seja um robô, seja um deus. Diz o platonista: as leis morais também são assim: objetivas e necessárias, pois verdadeiras em todo mundo possível.

Objeção 1. “Mas não é bem isso o que quero dizer quando digo ‘leis morais objetivas’. Quero dizer algo mais forte: leis que se parecem com a lei da gravidade, isto é, que agem sobre todos, quer queiram, quer não queiram. Todos devem se sentir compelidos a seguir uma lei moral objetiva, e quando alguém não a segue, deve automaticamente se sentir em estado de erro: deve automaticamente saber que está tentando se opor a uma lei da Natureza. A lei X5-X7 não me parece assim: se quero ganhar, jogo X5, mas não sou obrigado a jogar X5. Aliás, se perco um jogo da velha, que diferença isso faz? Com a lei X5-X7, tenho a impressão de que, na verdade, não tenho nada a perder, pois não há nada de importante em jogo.”

Imagine agora a seguinte situação: você vive no mundo hipotético MJV no qual, sempre que se encontra com alguém, joga o jogo da velha com ele (ou com ela). Não importa quem ganha ou quem perde — o que importa é jogar de corpo e alma, é jogar para ganhar. Se os dois se empenham para jogar bem, ao fim do jogo, ambos ganham o poder de cooperar numa das muitas tarefas necessárias para manter a cidade onde moram funcionando e também para desenvolvê-la. Se um dos dois não joga para ganhar, se um dos dois é leniente no jogo, os dois não conseguem cooperar um com o outro: surge entre eles uma ausência, uma fissura — surge entre eles uma infelicidade.

Com isso, dois casos ficam claros. Primeiro, a cidade com o maior número de indivíduos que jogam o jogo da velha para valer se mantém funcionando e, conforme o tempo passa, se desenvolve. Ela fica mais forte. Ao contrário, a cidade com menor número de jogadores fervorosos de jogo da velha funciona mais ou menos, e talvez até degringole. Ela fica mais fraca. Segundo, se você deseja que sua cidade se mantenha de pé, e se deseja ainda mais que ela se aperfeiçoe, então deve sempre se aproximar de seus concidadãos disposto a jogar o jogo da velha para valer, isto é, deve considerar a lei X5-X7 como sendo objetiva, necessária, universal. Nesse segundo caso, pode até reescrever a lei X5-X7 assim: “Se você deseja que sua cidade se mantenha de pé, e ainda por cima se desenvolva, a cada encontro jogue o jogo da velha de corpo e alma; em particular, depois de jogar X1 e de seu oponente responder com O2, jogue X5; depois de O9, jogue X7.”

Objeção 2. “A lei X5-X7, versão reescrita, é uma afirmação condicional com duas partes: o enunciado antecedente (‘se você deseja que sua cidade funcione e se desenvolva’) e o consequente (‘então jogue de corpo e alma, isto é, jogue X5-X7’). É claro que ela é verdadeira em todo mundo possível — pois, se pouco me lixo sobre minha cidade funcionar ou florescer, daí o antecedente é falso, e com isso a afirmação condicional como um todo é verdadeira. Mas e se eu realmente não tenho interesse em jogar para ganhar, de modo a preservar minha cidade ou a desenvolvê-la? Daí a lei X5-X7 não tem poder sobre mim. Mais uma vez, quero chamar a atenção para a lei da gravidade, que não funciona assim: quer eu queira me submeter à lei da gravidade, quer não queira, em qualquer caso ela tem poder sobre mim. A lei da gravidade não é uma afirmação condicional — ao contrário, se posso vê-la como uma afirmação, é uma afirmação incondicional. É isso o que espero de uma lei moral necessária e objetiva.”

Ora, como resposta à segunda parte da objeção 2, a lei da gravidade também pode ser escrita na forma de uma afirmação condicional. “Se ninguém fizer nada para contrabalançar a força da gravidade, então a força de atração gravitacional entre dois corpos exercerá seu poder naturalmente, e ela é diretamente proporcional ao produto da massa dos dois corpos, e inversamente proporcional ao quadrado da distância entre eles.” O enunciado antecedente “se ninguém fizer nada” não é mero truque linguístico, pois há o que se possa fazer: caso alguém instale asas e turbinas num cilindro de metal cujo peso se mede em toneladas, o cilindro voa, em vez de ficar preso ao chão por causa da força da gravidade. E o cilindro ganha ainda um nome especial: “avião”.

Portanto, se ninguém fizer nada para contrabalançar a gravitação universal, paga um preço: as coisas pesam, elas caem, elas não voam. No mundo hipotético MJV, se você não joga o jogo da velha de corpo e alma a cada encontro, também paga um preço. Que preço é esse?

É hora de dois conceitos importantes para o platonista contemporâneo. Um deles é o de valor intrínseco; o outro é o de Bem (com letra “B” maiúscula).

Valor intrínseco. Se duas coisas complexas (feitas de partes) são semelhantes, a coisa de maior valor intrínseco é a mais complexa. Se duas coisas semelhantes são igualmente complexas, a coisa de maior valor intrínseco é aquela na qual há maior harmonia entre as partes. Valor intrínseco é igual a complexidade (muitas partes) mais harmonia entre as partes. Se você tomar o termo “congruência” como sendo mais ou menos igual a consistência, complexidade, extensão, harmonia, equilíbrio, beleza, etc., então valor intrínseco é igual à congruência entre as partes. Se você aumenta a complexidade de algo, sem perder a harmonia entre as partes, então você aumenta sua congruência, isto é, seu valor intrínseco; se você mantém a complexidade de algo, mas aumenta a harmonia entre suas partes, então também aumenta sua congruência = seu valor intrínseco.

Algumas consequências: Se duas cidades são igualmente complexas, a de maior valor intrínseco é aquela na qual há maior harmonia entre suas partes — maior harmonia entre instituições, cidadãos, infraestrutura, etc. Se as partes de duas cidades distintas são igualmente harmônicas, a cidade de maior valor intrínseco é a mais complexa. Se dois estágios da mesma pessoa são igualmente harmônicos, o estágio mais complexo é o de maior valor intrínseco — por exemplo, a pessoa nesse estágio sabe mais coisas. Se dois estágios da mesma pessoa são igualmente complexos, o estágio no qual há maior harmonia é o de maior valor intrínseco; por exemplo, a pessoa nesse estágio aprendeu a controlar melhor seu corpo, incluindo suas emoções e sua razão.

Bem. O Bem é uma espécie de ideia matemática. É uma espécie de limite. Imagine uma sequência infinita de universos U0, U1, U2, …, Un, …, na qual a congruência de cada universo é a máxima possível e na qual o valor intrínseco cresce constantemente: o universo Uq tem maior valor intrínseco que o universo Up se p < q; em outras palavras, dado que tanto Uq quanto Up têm o maior grau possível de harmonia entre as partes, Uq é mais complexo que Up. Daí o Bem é o limite dessa sequência. Imagine uma sequência infinita de versões da mesma pessoa P: P0, P1, P2, …, Pn, …, sequência na qual o valor intrínseco de Pj cresce constantemente: Pq tem maior valor intrínseco que Pp se p < q, ou porque Pq alcançou maior complexidade que Pp, mas sem perder harmonia; ou porque Pq manteve a mesma complexidade de Pp, mas conquistou maior harmonia. Daí o Bem é o limite dessa sequência. Imagine uma sequência infinita de ciências C0, C1, C2, …, Cn, …, na qual cada ciência Cj é um conjunto congruente de proposições verdadeiras sobre universos possíveis ou concretos, e na qual o valor intrínseco de cada elemento Cj da sequência só aumenta, isto é, Cq tem maior valor intrínseco que Cp se p < q. Daí o Bem é o limite dessa sequência. O Bem é uma entidade platônica absolutamente transcendental, e não é uma pessoa; em particular, não é um deus, não é a mente de um deus, não é algo na mente de um deus. O Bem é o telos por excelência — “telos” sendo “objetivo derradeiro”. Nada pode ir além do Bem. Ao contrário, se algo chegou ao maior valor intrínseco x, o valor intrínseco do Bem está infinitamente além de x. O Bem não tem mentalidade, e portanto não é consciente, mas existe como entidade abstrata transcendental, da mesma forma que o conjunto de todas as funções contínuas não é consciente nem tem mentalidade, mas existe como objeto abstrato.

Além dos dois conceitos de valor intrínseco e de Bem, você vai precisar de um axioma:

Axioma platônico. A função de todo ser racional, seja neste nosso universo, seja em qualquer mundo possível, é o de dar testemunho do Bem — é o de viver para o Bem. Em outras palavras, é o de se empenhar para alcançar maior complexidade com máxima harmonia; ou então é o de se empenhar para conquistar a maior congruência que puder alcançar.

Se você vive no mundo hipotético MJV, para dar um passo no sentido do Bem, tem de aumentar o valor intrínseco da cidade onde mora. Por isso, sempre que interage com um de seus concidadãos, tem de jogar o jogo da velha de corpo e alma; em particular, tem de seguir a lei X5-X7. O argumento fica assim: (1) É certo viver em razão do Bem, e é certo dar testemunho do Bem, pois é certo agir para alcançar maior complexidade e maior harmonia, isto é, é certo agir para alcançar maior valor intrínseco. (2) Para alcançar maior valor intrínseco, contudo, você precisa da ajuda de seus concidadãos — você precisa de professores, instrutores, médicos, artesãos, amigos, amores. Você precisa do apoio de todo tipo de gente, com todo tipo de perícia, e é bom que essa gente tenha o maior valor intrínseco possível, e além disso é bom que essa gente viva na melhor cidade possível. Portanto, é certo agir de modo a aumentar o valor intrínseco da cidade como um todo. (3) Para aumentar o valor intrínseco da cidade, é preciso obter a capacidade de cooperar com os outros concidadãos. (4) Se é preciso obter a capacidade de cooperar com os concidadãos, para assim aumentar o valor intrínseco da cidade, então é mandatório jogar o jogo da velha de corpo e alma a cada interação com cada um de seus concidadãos, isto é, é mandatório se submeter à lei X5-X7. (5) É mandatório se submeter à lei X5-X7. (6) Logo, visto que a lei X5-X7 foi estabelecida por meio de um argumento robusto, visto que argumentos são objetos abstratos, e visto que objetos abstratos são objetivos e necessários, a lei X5-X7 é uma proposição objetiva e necessária.

* * *

Basta de jogo da velha como analogia. O argumento a seguir é semelhante ao da seção anterior, porém mais detalhado e um pouco mais cotidiano.

(1) É certo viver em razão do Bem, e também é certo dar testemunho do Bem, isto é, é certo agir de modo a alcançar maior complexidade, mas com a máxima harmonia. Em outras palavras, para viver em razão do Bem e para dar testemunho do Bem, você deve se empenhar para alcançar maior congruência ou valor intrínseco.

(2) Para alcançar maior valor intrínseco, contudo, você precisa da ajuda de seus concidadãos — precisa de professores, médicos, artesãos, policiais, amigos, amores. Você precisa do apoio de gente com todo tipo de perícia. Cada uma dessas pessoas, contudo, só poderá ajudá-lo da melhor maneira possível se cada uma delas alcançou, ou está lutando para alcançar, o maior valor intrínseco possível. Portanto, se é certo se empenhar para alcançar o maior valor intrínseco possível, ao mesmo tempo é certo se empenhar para aumentar o valor intrínseco da cidade como um todo.

(3) Para aumentar o valor intrínseco da cidade, e com isso obter de seus concidadãos a ajuda de que necessita para aumentar seu próprio valor intrínseco, você precisa cooperar com seus concidadãos, e precisa também que eles cooperem com você.

(4) Se você precisa cooperar com seus concidadãos, e precisa também que eles cooperem com você, então, a cada relacionamento com um de seus concidadãos, você precisa se colocar mentalmente no lugar dele (ou dela) e, uma vez que entenda a situação do ponto de vista dele, você faz a ele o que gostaria que ele fizesse a você, se você estivesse na situação dele e ele estivesse na sua, isto é, se seus papéis estivessem trocados.

(5) Em outras palavras, “cooperar com seus concidadãos” não significa “usar seus concidadãos como se eles fossem meramente meios para seus fins”, mas sim “considerar seus concidadãos não apenas como meios para seus fins, mas também como fins em si mesmos”.

(6) Portanto, para viver em razão do Bem, e para dar testemunho do Bem, você precisa se submeter à lei de ouro: “Ponha-se no lugar do outro e, uma vez que entenda a situação de seu ponto de vista e do ponto de vista dele, faça ao outro como gostaria que ele fizesse a você, se você estivesse no lugar dele e ele estivesse em seu lugar.”

(7) Logo, visto que a lei de ouro foi estabelecida por meio de um argumento robusto, visto que argumentos são objetos abstratos, e visto que objetos abstratos são objetivos e necessários, então a lei de ouro é uma proposição objetiva e necessária.

(8) Portanto, há pelo menos uma lei moral objetiva e necessária, qual seja, a lei de ouro. Além disso, se você não tiver um bom domínio da lei de ouro, a arte de se autossuperar se torna imensamente mais difícil, isto é, a arte de viver em razão do Bem e de dar testemunho do Bem se torna imensamente mais difícil.

* * *

Sócrates dizia que qualquer pessoa tem uma e só uma missão sobre a Terra: tornar-se cada vez mais divina. Hoje em dia, séculos depois de Sócrates, o platonista tem uma receita bastante específica sobre como andar no sentido do Bem, e o principal ingrediente dessa receita é a eficiência de Pareto.

Considere você hoje, e depois imagine você no futuro. Esse “você futuro” é sua contraparte. Assim como você hoje, o você futuro é um ser complexo, feito de partes. Se você pretende agir hoje para se autossuperar, e assim aumentar seu valor intrínseco no futuro, pode estabelecer uma relação de contrapartes que pressuponha a eficiência de Pareto. Uma relação de contrapartes é Pareto-ótima se e somente se ela satisfaz quatro restrições:

(I) Para não perder valor ao perder uma parte velha, cada parte velha do todo atual tem pelo menos uma contraparte nova no todo futuro.

(II) Para não perder valor ao juntar duas ou mais partes velhas numa única parte nova, cada parte velha distinta tem uma parte nova também distinta que é sua contraparte.

(III) Nenhuma parte velha tem uma contraparte nova que seja menos valiosa que a parte velha.

(IIII) Pelo menos uma parte velha tem uma contraparte nova que é mais valiosa que a parte velha.

Por exemplo, suponha que você saiba lutar caratê, mas não sabe inglês. Isso significa que tanto o caratê quanto o inglês são duas de suas partes hoje — o caratê vale bastante, pois você é faixa-preta; mas o inglês não vale nada, pois você não fala inglês. Você se matricula numa boa escola de línguas estrangeiras; sua ideia é se dedicar para que, em no máximo dois anos, esteja falando inglês bastante bem. Contudo, não poderá se descuidar do caratê — tem de continuar treinando. Assim, sua contraparte nova, daqui a dois anos, não perderá valor ao perder a capacidade de lutar caratê, mas ganhará valor ao ganhar a capacidade de falar inglês.

Ao longo desse processo de transformação, terá de recorrer à lei de ouro muitas vezes. Se o professor de inglês te pedir uma redação, você escreverá a redação tão bem quanto puder, porque, se você fosse o professor, gostaria muito que seus alunos se dedicassem aos estudos. Se o instrutor de caratê te pedir para lutar com um aluno novato, um faixa-branca, você lutará não com toda a sua capacidade (se fizesse isso, machucaria o novato), mas ajustará sua capacidade para que fique um tantinho acima da capacidade do novato, porque, se você estivesse no lugar do novato, gostaria muito de lutar com alguém que seja difícil de vencer, mas não impossível de vencer — já que ninguém aprende nada lutando contra adversários invencíveis. O platonista atual diz que ninguém consegue viver bem sem que recorra o tempo todo a leis morais objetivas, como a lei de ouro — e isso é o que distingue tais leis de meras convenções sociais: não apenas é possível montar argumentos robustos para justificar leis morais objetivas, como também parece que, com argumentos ou sem argumentos, elas se impõem por si mesmas. Como a lei da gravidade.

Por último, se valor intrínseco é igual a complexidade mais harmonia, qual desses dois componentes de valor é mais importante? Complexidade ou harmonia?

Harmonia é mais importante. Se você deve aprender a se tornar mais complexo ao longo da vida, deve mais ainda aprender a tornar harmônicas as partes das quais é composto, e por um motivo banal: quem vive tempo suficiente para envelhecer fatalmente perderá complexidade. Talvez sofra um acidente de carro e perderá uma perna. Talvez tenha uma infecção e perderá a visão de um dos olhos. Talvez sua memória comece a falhar e não conseguirá mais falar inglês tão bem quanto antes. Não tem importância — quase toda gente passa por isso. É importante manter a complexidade sempre a mesma; é mais importante ainda aprender a aumentá-la; mas é importantíssimo aprender a orquestrar uma harmonia entre suas partes remanescentes a cada etapa da vida. Na República de Platão, Sócrates disse (354a): “A pessoa justa é feliz, e a pessoa injusta é miserável.” Contudo, Sócrates usava o termo “justiça” significando algo próximo de “harmonia”. Parafraseando com a linguagem técnica atual: “A pessoa congruente é feliz, e a pessoa incongruente é miserável; mais genericamente, a pessoa que constantemente batalha para aumentar seu valor intrínseco é feliz, e a pessoa que se descuida de seu valor intrínseco é miserável.” {FIM}



Observações:

1. Na literatura técnica atual, há uma grande quantidade de sugestões para medir valor intrínseco. Uma delas se chama profundidade lógica. Imagine um ambiente informático de simulação, no qual você consegue produzir objetos (inclusive seres vivos) por meio de um algoritmo recursivo de evolução. A profundidade lógica de um objeto qualquer é a quantidade de trabalho computacional necessário para gerar o objeto a partir de uma entrada aleatória.

2. O axioma platônico é, na verdade, um teorema. Foi defendido por Sócrates ao longo da República a partir de afirmações mais elementares. O famoso mito da caverna é uma ilustração bem visual de como é maravilhoso descobrir a existência do Bem.

3. Mesmo que o leitor pense que não tive sucesso ao estabelecer a objetividade da lei de ouro, deve pelo menos me conceder uma pequena vitória: para o platonista, o jeito certo de conversar sobre leis morais é conversar sobre razões a favor e razões contra, isto é, sobre argumentos. Assim, a conversa sobre leis morais é uma conversa sobre palavras, afirmações, exemplos, lógica — é uma conversa sobre coisas públicas. Se é uma conversa sobre coisas públicas, é uma conversa sobre algo objetivo.

4. Usei várias vezes o termo “de corpo e alma”. Não quero com isso sugerir um dualismo entre matéria e espírito; e menos ainda quero sugerir a ideia de que o platonista moderno é dualista. Ao contrário, os mais famosos filósofos platonistas modernos (como Russell e Gödel) são monistas. Steinhart, por exemplo, é monista: (1) existe uma e só uma Natureza, e ela é matemática; (2) um subconjunto próprio dessa Natureza matemática satisfaz as condições de fisicalidade, e portanto também é física; (3) um subconjunto próprio dessa Natureza física satisfaz as condições de concretude, e portanto também é concreta. Assim, de acordo com Steinhart, obviamente vivemos num universo concreto; mas tudo o que é concreto supervém num substrato físico, e tudo o que é físico supervém num substrato abstrato.

O termo “de corpo e alma” me lembra o conselho de Wittgenstein: cuidado para não se deixar enfeitiçar por expressões da linguagem corrente.

5. Note que, numa relação de contrapartes que seja Pareto-ótima, é desnecessário dizer que o todo novo pode ter uma parte completamente nova, que não existia no todo velho — isso porque você pode ver a parte nova como sendo parte do todo velho também, mas com valor intrínseco igual a zero, já que não existe no todo velho. Pensando assim, cada coisa no mundo tem um número infinito de partes, das quais um número finito tem valor intrínseco maior que zero, mas o resto das infinitas partes tem valor intrínseco igual a zero.

Dois lembretes importantes: (1) Para o platonista, não existe valor intrínseco menor que zero. (2) Ninguém deve usar o conceito de valor intrínseco para discriminar entre duas pessoas; por exemplo, para tratar mal uma que sabe menos diante de uma que sabe mais, ou para tratar mal uma que tem menos posses diante de uma que tem mais. O platonista contemporâneo tem ótimos argumentos para rejeitar todo tipo de escravidão, racismo, sexismo, classismo, etarismo, capacitismo. Não vou detalhar tais argumentos nesta postagem, pois são longos; com um pouco de imaginação, porém, é fácil ver que toda forma de injustiça social deixa a humanidade menos capaz de alcançar maior congruência.

6. O jogo da velha tem poucas regras. As duas mais importantes são: (1) Se você começa jogando num dos cantos (1, 3, 7, 9), e seu oponente joga num dos meios (2, 4, 6, 8), você já ganhou e seu oponente já perdeu. (2) Se você começa jogando no centro (5), e seu oponente joga num dos meios (2, 4, 6, 8), você já ganhou e seu oponente já perdeu.

7. Lembrete: a lei de ouro não implica a incessante aparência de paz e amor. Suponha que tem um filho, e ele vai mal na escola porque não desgruda do celular. Fazer a ele o que você gostaria que ele fizesse a você, se os papéis estivessem trocados, implica estabelecer regras de uso do celular, nem que isso só aconteça depois de um enfrentamento entre pais e filho, nem que isso exija a internação do filho numa clínica especializada no tratamento de vícios incapacitantes.

8. Outra lei moral objetiva se chama, em inglês, tit for tat; em português, na mesma moeda. É incrível como essa lei aparece na natureza; é incrível como ela faz sucesso em simulações de computador. Funciona assim: (1) o agente x, quando se encontra pela primeira vez na vida com um agente y, coopera com ele; (2) se numa interação anterior y cooperou com x, nesta interação x coopera com y; (3) se numa interação anterior y se recusou a cooperar com x, nesta interação x se recusa a cooperar com y; (4) se numa interação anterior x se recusou a cooperar com y, nesta interação x perdoa y de ofensas passadas e x coopera com y. Em simulações nas quais os agentes são instruídos a hostilizar os agentes que jogam tit for tat, mesmo assim estes agentes se saem bem, isto é, tit for tat é uma estratégia vencedora mesmo em ambientes hostis. Segundo Richard Dawkins, tit for tat é uma estratégia evolutivamente estável, isto é, se uma espécie acaba adotando tal estratégia, a estratégia tende a permanecer com a espécie mesmo depois de modificações provocadas por seleção natural.

9. A ideia de Bem, mais a ideia de valor intrínseco como sendo igual a complexidade com harmonia, mais o axioma platônico — tais ideias são úteis para pensar sobre o meio ambiente. A floresta amazônica é complexa e harmoniosa — com harmonia conquistada, a duras penas, ao longo de milhões de anos de evolução por seleção natural. Um garimpo ilegal é algo feio, barulhento, fedorento, poluente. É objetivamente errado permitir que um grupo de malfeitores derrube a floresta amazônica para instalar em seu lugar um garimpo ilegal. É objetivamente correto impedir que tais malfeitores façam seu trabalho, e mais do que isso: impedir que tais malfeitores destruam a floresta é agir em razão do Bem, é dar testemunho do Bem.

Elementos de Ateísmo Platônico

Artigo de Eric Steinhart, professor de filosofia na William Paterson University, especialista na investigação de problemas metafísicos com o uso de métodos lógicos e matemáticos

Resumo. O ateísmo platônico é um ateísmo afirmativo. Ele afirma a metafísica e a ética modernas, concebidas com métodos analíticos. O ateísta platônico é um realista metafísico e moral. A realidade é legal. [‘Legal’ no sentido de regulada, isto é, sujeita a leis.] A Lei inclui as leis da lógica, da matemática, da realidade, e da moralidade. Todas as coisas obedecem à Lei. Os deuses existem apenas se a Lei permite que existam. A existência de qualquer deus é uma questão científica. E se algum deus existe, então está sujeito à Lei. Portanto, a ciência informa o que deuses podem ou não podem fazer. As ações de qualquer deus podem ser avaliadas usando as leis morais. O ateísmo platônico permite que se defina a alma como a forma do corpo. Ele permite vida após a morte por meio de ressurreição legal em outros universos. Visto que todas as pessoas são iguais perante a Lei, o ateísta platônico está comprometido com a justiça. Para ele, a Lei é divina. A projeção de qualquer rei acima da Lei é idolatria. O ateísta platônico tem um sistema rico de conceitos ateológicos (piedade, impiedade, escatologia, soteriologia, entre outros). O ateísmo platônico liberta a religião do teísmo.


1. Introdução

No final de Eutífron, Sócrates expõe um dilema famoso. Suponha que os deuses decretem o mandamento P. Sócrates oferece duas alternativas a respeito da relação entre P e o decreto divino: para qualquer P, se os deuses decretaram P, então ou (1) P é certo porque os deuses decretaram P; ou (2) os deuses decretaram P porque P é certo.

De um lado, se P é certo porque os deuses decretaram P, então o decreto divino define a moralidade; e tais decretos podem ser inconsistentes ou arbitrários ou violentos. Por exemplo, se os deuses anunciam o mandamento “Sacrifique-nos teu filho primogênito!”, então é certo fazer exatamente isso — é moralmente indispensável realizar o sacrifício, e você tem a obrigação de fazê-lo. Por outro lado, se os deuses decretam P porque P é certo, então os deuses estão seguindo algum padrão de moralidade (estão seguindo a lei moral). Eles examinam esse padrão para que, quando anunciam mandamentos, tenham algo que lhes sirva de guia. Visto que o sacrifício de crianças é objetivamente errado do ponto de vista moral, os deuses não têm o direito moral de decretá-lo.

O dilema de Eutífron pode ser elaborado em termos legais. Ou (1) os deuses estão acima da lei moral ou (2) a lei moral está acima dos deuses. De um lado, se os deuses estão acima da lei moral, então eles a produzem e podem descumpri-la. Podem abrir exceções para eles mesmos ou para outros. Por qualquer razão, ou mesmo sem razão nenhuma, podem transformar o que é certo em errado e o que é errado em certo. De outro lado, se a lei moral está acima dos deuses, então eles não a produziram e não podem descumpri-la. Estão sujeitos à lei moral. Assim, Zeus não pode tornar certo o adultério apenas declarando a vontade de que o adultério seja certo. Os deuses são incapazes de mudar a estrutura da moralidade — o bem tem uma necessidade objetiva.

É também possível expressar o dilema de Eutífron para proposições. [Uma ‘proposição’ é o significado abstrato de uma declaração afirmativa.] Suponha que os deuses afirmem P. As alternativas socráticas são estas: (1) P é verdade porque os deuses afirmam P; ou (2) os deuses afirmam P porque P é verdade. Essa versão do dilema também pode ser expressa em termos legais. Há leis que definem a verdade — as leis da lógica, da matemática, da realidade. Ou (1) os deuses estão acima das leis que definem a verdade; ou (2) as leis que definem a verdade estão acima dos deuses. Suponha que coloquemos juntas as leis da moralidade e as leis da verdade. O resultado é a Lei. A versão mais geral possível do dilema de Eutífron é esta: ou (1) os deuses estão acima da Lei ou (2) a Lei está acima dos deuses.

O ateísta platônico diz que, se existem deuses, então a Lei está acima dos deuses[1]. Para saber o bem, os deuses têm de raciocinar em termos morais como qualquer outra pessoa. Estão sujeitos à lei moral e seu comportamento pode ser julgado de acordo com ela. Mesmo os humildes humanos podem avaliar os mandamentos e as ações dos deuses. Para saber a verdade, os deuses têm de raciocinar da mesma forma que raciocinamos. E para saber qualquer verdade a respeito de questões contingentes (por exemplo, sobre o universo físico), os deuses têm de fazer ciência. Eles têm de usar o método científico — o mesmo que usamos. As leis da realidade estão acima dos deuses — eles não as inventaram; meramente as descobrem. E não têm o poder de descumpri-las. Eles talvez sejam sobre-humanos, mas não podem ser sobrenaturais. Podem realizar ações magníficas, mas não milagres. E as coisas ficam ainda piores. As leis da lógica, da matemática, e da realidade determinam se um deus pode ou não pode existir. Se as definições de um deus são inconsistentes, ele está excluído pelas leis da lógica e da matemática. Se a existência de um deus entra em conflito com as leis da natureza em certo universo, então aquele deus não pode existir naquele universo. Se um deus pode ou não pode existir em certo universo é um problema a ser resolvido por meio de lógica, de matemática, e por meio dos métodos das ciências empíricas.

O ateísmo platônico afirma a realidade da Lei. E afirma que todas as pessoas estão sujeitas à Lei. Consequentemente, o ateísmo platônico se opõe ao teísmo. O teísmo diz que existe um rei acima da Lei — um rei que fez a Lei e que pode quebrá-la. Sem dúvida, o ateísmo platônico nega a existência desse tipo de rei. Mas o ateísmo platônico vai bem além da negação do teísmo. O ateísmo platônico é um ateísmo afirmativo. O ateísmo platônico é afirmativo com relação à metafísica. Ele não é materialismo, nem naturalismo extremo, nem nominalismo. Ao contrário, afirma tanto os objetos abstratos quanto os objetos possíveis (Quine 1990). O ateísmo platônico é afirmativo com relação à moralidade. Ele rejeita o relativismo moral, o subjetivismo, o ceticismo, e o niilismo. Ao contrário, ele implica objetivismo moral. Por fim, o ateísmo platônico é afirmativo com relação à reverência. Ele corrobora uma série de piedades pessoais e sociais. A religião não exige teísmo. De acordo com o ateísta platônico, o teísmo é um jeito primitivo de pensar. O teísmo produz péssimos resultados na ciência, na ética, e na política. E produz péssimos resultados na religião também. O ateísmo platônico é profundamente religioso. Uma das principais atribuições do ateísmo platônico é libertar a religião do teísmo.



2. A Lei

2.1. As leis da lógica

Há leis lógicas. Se algum cético gostaria de negar a existência desse tipo de lei, daí ele (ou ela) terá de compor argumentos; mas tais argumentos devem pressupor as leis que está tentando negar. O ceticismo a respeito das leis da lógica refuta a si mesmo. O ateísta platônico diz que as leis da lógica regulamentam certas características das proposições. Uma proposição é o significado abstrato de uma afirmação declarativa. Afirmações declarativas expressam proposições. Mas proposições não são objetos materiais ou físicos. Elas não existem em nenhum espaço-tempo; elas são eternas. Elas podem agir como causa formal, mas não como causa eficiente (não transmitem forças). Elas existem necessariamente. Proposições são independentes de qualquer mente — elas existem objetivamente. Proposições ou são verdadeiras ou falsas. As leis da lógica regulamentam o modo como ocorre a distribuição de valores de verdade entre proposições. Por exemplo, se P é verdadeira, e se P implica Q, então Q é verdadeira.

O cético talvez queira argumentar que não existem proposições abstratas — as leis da lógica se aplicam apenas a declarações que as pessoas efetivamente escrevem ou dizem. Mas esse jeito de pensar tem um custo: ele sacrifica a objetividade. Dizer que as leis da lógica são objetivas significa dizer que são mandatórias para todo agente racional possível — a qualquer tempo, em qualquer lugar. O cético não tem padrão de correção que seja universalmente e necessariamente mandatório. Mais uma vez, o ceticismo solapa a si mesmo. Ele não pode dizer que devemos acreditar no melhor argumento. Quem pode garantir? Para o cético, não há padrão objetivo de verdade. Há apenas a verdade-para-mim e a verdade-para-você. O ceticismo degenera em subjetivismo e relativismo. Quanto aos teístas, eles em geral afirmam que há padrões objetivos e absolutos de verdade e de racionalidade. Qualquer ateísmo que deseje competir vitoriosamente com o teísmo não pode se satisfazer com menos.

As leis da lógica são objetivas, necessárias, universais, formais, exatas. Elas são transcendentais. Não criamos as leis da lógica. Ao contrário, criamos regras de raciocínio. Com o tempo, conforme nossas várias civilizações progridem, nossas regras de raciocínio representam mais e mais acuradamente as leis da lógica. Por exemplo, a lógica de Aristóteles representa as leis da lógica; mas o cálculo de predicados representa tais leis ainda mais meticulosamente. Nossas regras de raciocínio também incluem as regras do raciocínio científico (por exemplo, inferência no sentido da melhor explicação). E assim como não criamos as leis da lógica, também não criamos os objetos que são governados por leis lógicas. A mera possibilidade de que o ateísmo é mais verdadeiro que o teísmo pressupõe um sistema ideal e abstrato de proposições verdadeiras. Uma dessas proposições é a de que deuses não existem.

2.2. As leis da matemática

Há leis da matemática. De acordo com o ateísmo platônico, tais leis são justificadas pela ciência: (1) as teorias científicas dependem de leis matemáticas; (2) se as teorias científicas dependem de alguma lei, então essa lei é verdadeira; (3) portanto, as leis da matemática são verdadeiras. Visto que as leis da matemática contêm quantificadores existenciais (por exemplo, existe um conjunto vazio; para cada número inteiro, existe um sucessor), o ateísta platônico é um realista matemático. O ateísta platônico afirma a existência de objetos como conjuntos, números, vetores, funções, e assim por diante. Objetos matemáticos não são fantásticos ou sobrenaturais. Eles não são como duendes, mentes imateriais, ou deuses. As teorias científicas não se referem a duendes, mentes imateriais, ou deuses. Contudo, visto que elas dependem de leis matemáticas, as teorias científicas também se referem a objetos matemáticos. Assim, o ateísta platônico diz que objetos da matemática caem no escopo do naturalismo científico. Eles pertencem à concepção platônica da natureza.

O ateísta platônico fundamenta a existência matemática na lógica. A lógica lida com consistência e com definibilidade. Muitos autores igualaram definibilidade consistente com existência matemática. Hilbert escreveu para Frege dizendo: “Se determinados axiomas arbitrários não contradizem uns aos outros em todas as suas consequências, então são verdadeiros e as coisas definidas por tais axiomas existem.” (Frege 1980: 39-40) Poincaré escreveu: “Na matemática a palavra ‘existe’ […] significa ‘livre de contradições’.” (Poincaré 1913: 454) Você pode ver um extenso desenvolvimento dessa ideia em Belaguer (1998). Para o ateísta platônico, essa é a lei básica da matemática: “ser” é o mesmo que “ser definido de modo consistente”. Todas as outras leis da matemática são expressões do significado dessa lei básica. Essa lei é um princípio de plenitude. Ela implica que a realidade matemática é completa. Ela é maximamente inclusiva. Para usar uma fórmula familiar: a realidade matemática é aquela tal que nenhuma outra maior que ela é logicamente possível.

O cético talvez queira argumentar contra a verdade objetiva das leis da matemática — afinal de contas, a objetividade de tais verdades é intensamente debatida. O ateísta platônico não pretende resolver esse debate. Ao contrário, ele meramente afirma que qualquer ateísmo que negue o realismo matemático é inferior a qualquer ateísmo que o reconheça. Ao dispensar a objetividade matemática, o ateísta cético entrega aos teístas a mais formidável fonte de racionalidade compulsória da história da humanidade. E ao dizer que a realidade matemática é aquela tal que nenhuma outra maior que ela é logicamente possível, o ateísta platônico tem os recursos para desenvolver alternativas relevantes ao teísmo. Seria útil ilustrar agora as dificuldades de qualquer ateísmo que negue o realismo matemático.

Os teístas desenvolveram argumentos matemáticos em favor de Deus. Agostinho (1993: 40-64) pensa mais ou menos assim: (1) A matemática é obviamente eficiente na ciência e na engenharia. (2) A melhor explicação para tal eficiência é Deus. Pois Deus arranjou todas as coisas “em medida, número, peso” (Wisdom 11:20) (3) Por inferência no sentido da melhor explicação, Deus existe. Outro argumento funciona mais ou menos assim: (1) A matemática obviamente obtém assentimento humano universal. (2) A melhor explicação para tal assentimento universal é que o ser humano foi feito à imagem e semelhança de algum matemático divino, qual seja, Deus. (3) Portanto, Deus existe, e o ser humano foi feito à sua imagem. Visto que o ateísta cético pensa que as leis da matemática são meramente convenções subjetivas, é difícil ver como pode oferecer explicações alternativas melhores. Contudo, o ateísta platônico pode oferecer tais explicações melhores: as leis da matemática são verdadeiras sem que exista nenhum deus. Nenhum deus desempenha qualquer papel em qualquer teoria matemática.

Muitos argumentos teístas envolvem a infinitude. De um lado, muitos deles dependem de negações da infinitude. A segunda e a terceira vias de Aquino dependem da negação de sequências infinitas (Suma Teológica, parte 1, Q. 2, art. 3). O argumento de Anselmo sobre os graus de perfeição depende da negação de sequências infinitas (Monologion, cap. 4). Por outro lado, alguns argumentos teístas dependem da afirmação da infinitude. A versão de Descartes para o argumento ontológico vai, por meio de raciocínio, de seu conhecimento do infinito para a existência de Deus (Terceira Meditação). O argumento sobre graus de perfeição de Locke vai do infinito para Deus (1690:III.6.12). Ao abandonar a objetividade matemática, o ateísta cético abandona os padrões que são necessários para se contrapor a tais argumentos. Contudo, o ateísta platônico tem os recursos necessários para se contrapor a tais argumentos. Ele pode dizer onde tais argumentos contêm um erro, e assim propor explicações alternativas.

Os teístas com frequência se perguntam por que existe alguma coisa em lugar de coisa nenhuma. Eles propõem Deus como a única resposta racional. Deus serve como razão suficiente para a existência de todas as coisas (Leibniz 1697). É difícil ver como o ateísta cético pode oferecer uma resposta racional [a esse problema]. Mas o ateísta platônico tem uma resposta: (1) Ser é ser definido de modo consistente; (2) há definições consistentes; (3) portanto, há coisas que são: há coisas que existem. Por fim, o ateísta platônico pode desafiar os teístas em termos matemáticos. Os teístas gastam bastante energia mostrando que Deus pode ser definido consistentemente. Mas, se isso é verdade, então existe algum modelo matemático de Deus. Contudo, ninguém até hoje conseguiu propor um modelo matemático de Deus. O ateísta platônico diz que a ausência de tais modelos significa que Deus não pode ser definido de modo consistente. Deus é como um quadrado redondo. Deus é um objeto impossível — e portanto não existe.

O ateísta platônico diz que as leis da matemática são transcendentais. Elas são objetivas, necessárias, universais, formais, exatas. Elas não são criadas por nós. Nós criamos teorias matemáticas. Essas teorias são o assunto principal da matemática. A história da matemática tem sido positiva: com o tempo, nossas teorias matemáticas representam as leis da matemática mais e mais acuradamente. Nossa melhor teoria matemática hoje em dia é provavelmente a teoria máxima dos conjuntos. A teoria máxima dos conjuntos são os axiomas de Zermelo-Fraenkel, mais o axioma da escolha, mais todos os axiomas consistentes dos grandes cardinais. É plausível que todos os teoremas da matemática conhecidos até hoje possam ser derivados da teoria máxima dos conjuntos (Horsten 2001). Mas a teoria máxima dos conjuntos é meramente uma aproximação das leis da matemática. Há muitos problemas em aberto na teoria dos conjuntos — por exemplo, a cardinalidade do contínuo. A pesquisa matemática tem como base o raciocínio. Por meio de raciocínio, podemos continuar melhorando nossas teorias matemáticas.

Há leis de possibilidade. Elas definem o sistema dos objetos possíveis. Leibniz diz que possibilidade é definibilidade consistente: ser possível é ser definível consistentemente[2]. Mas isso implica que os objetos possíveis são objetos matemáticos. Seguindo Leibniz, o ateísta platônico concorda que ser possível é ser matemático. Entre os objetos possíveis estão todos os universos possíveis. Universos possíveis são estruturas físicas abstratas. Visto que são meramente possíveis, não são concretos. Eles são meramente formas abstratas de universos matemáticos. Universos possíveis não são sobrenaturais. Muitas teorias científicas fazem referência a universos possíveis (veja Tegmark 1998 e 2003). Assim, o ateísta platônico diz que universos possíveis caem no escopo do naturalismo científico. Eles pertencem à concepção platônica da natureza.

O ateísta platônico reconhece a distinção entre meramente possível e real. Ser possível é existir; mas isso não implica existência real [por exemplo, palpável para algum ser vivo]. Existir realmente é ser concreto (é ser físico). Claramente, nosso universo é real. Antigamente, pensava-se que apenas um universo poderia ser real. Mas a física moderna apoia a ideia de que muitos universos são reais. Seguindo Kraay (2010), o ateísta platônico distingue universos possíveis de mundos possíveis. Seguindo Lewis (1986:103), o ateísta platônico diz que a coleção de universos possíveis é um conjunto em vez de uma classe própria. Disso se segue que um mundo possível é um conjunto de universos possíveis. O mundo vazio não contém nenhum universo possível — é vazio. Todo mundo unitário contém exatamente um universo possível. Todo mundo plural contém pelo menos dois universos possíveis — contém um multiverso. Existe exatamente um mundo real. Ele contém todo universo real e apenas universos reais.

2.3. As leis da realidade

Existem as leis da realidade. Tais leis incluem as leis que determinam quais universos possíveis são reais. Visto que mundos possíveis são conjuntos de universos, tais leis determinam qual mundo possível é real. Essas leis são absolutamente universais. Elas são independentes da mente. Não criamos essas leis. Ao contrário, criamos teorias da realidade que são representações dessas leis. Nossas teorias são parcialmente baseadas em evidências empíricas. Sabemos que pelo menos um universo é real — o nosso universo. E assim sabemos que o mundo vazio não é real. Portanto, é o caso de que há coisas contingentes. [Visto que o mundo vazio existe, mas não é real, então é contingente.] Essas leis da realidade explicam por que há alguma coisa real em vez de nenhuma coisa real. Sabemos que nosso universo tem certas características — ele é delicadamente ajustado para a vida. Assim as leis da realidade explicam esse ajuste tão delicado.

Uma longa tradição, conhecida como axiarquismo, diz que as leis da realidade estão baseadas em valores. Por que existe alguma coisa real em vez de nenhuma coisa real? Leibniz diz que todas as possibilidades têm uma tendência à realidade que é tanto natural quanto proporcional a seu valor (1697). Leslie diz que há um princípio ético abstrato que necessariamente torna real a melhor possibilidade (1970, 1979). Rescher diz que a realidade é definida por uma lei de otimização. Ele explica as coisas desta maneira: “Qualquer possibilidade que seja a melhor é ipso facto a possibilidade que é tornada real.” (2000:815; veja também pp. 814-821.) A lei da otimização explica por que existe alguma coisa real em vez de nada real. Ela também explica a ordem de nosso universo, assim como o modo como ele ampara grandes sistemas biológicos (Leslie 1979, 1989: caps. 6-8). Assim a lei da otimização é justificada por inferência no sentido da melhor explicação. Outros argumentos para a lei da otimização podem ser achados em Rescher (2000: 816-817). A lei da otimização não é uma lei causal (Rescher 2000: 821-823). A lei da otimização não envolve nenhum deus (Rescher 2000: 822-833). Tanto Leslie quanto Rescher notam que a lei da otimização talvez implique a realidade de algum deus. Mas a lei é anterior a qualquer deus que possa produzir. Tudo isso é consistente com o ateísmo platônico. Assim, o ateísta platônico é um axiarquista.

As leis da realidade incluem as leis eficientes em cada universo real. Visto que nosso universo é real, as leis da realidade incluem as leis de nosso universo. Essas são as leis de nossa natureza local. Elas são objetivas. Nós não criamos essas leis; nós criamos teorias científicas que mais ou menos acuradamente representam tais leis. Contudo, essas leis não são necessárias — são contingentes. Não podem ser justificadas a priori. Por isso nós nos informamos sobre elas: precisamos raciocinar a partir das evidências locais. A história nos mostra que o método científico é o melhor jeito de se informar sobre essas leis. O método científico é justificado por seu sucesso. A história da ciência é altamente positiva: com o tempo, a ciência faz progressos. Nossas teorias científicas mais e mais acuradamente representam as leis da lógica. O método científico garante o progresso: teorias menos primorosas são descartadas em favor de teorias mais primorosas.

O ateísmo platônico reconhece que a estrutura de larga escala de nosso universo pode ser muito complexa. Linde (1986, 1994) diz que nosso universo pode ser uma árvore genealógica de domínios cósmicos que eternamente se ramifica. Domínios maternos dão à luz domínios descendentes num processo sem fim. Smolin (1992, 1997) sugere que os domínios são gerados num processo de evolução supercósmico. Dawkins simpatiza bastante com essa ideia (2008: 174-175, 188-189; daqui por diante, GD. GD vem do livro ‘The God Delusion’, isto é, ‘Deus, um Delírio’). Autores como Moravec (1998) e Bostrom (2003) argumentam que alguns domínios talvez contenham engenheiros que programam computadores para simular outros domínios. Se isso é verdade, então o sistema de domínios é governado por uma relação de simulação. Simulações podem ser encadeadas indefinidamente, ou mesmo infinitamente. Gardner (2003) diz que civilizações suficientemente avançadas podem ter o poderio técnico para projetar e realizar domínios cósmicos.

2.4. As leis da moralidade

Há leis de moralidade. Tais leis são necessárias e universais. Elas incluem as leis que governam as relações entre pessoas de qualquer tipo. Elas cobrem as relações entre pessoas humanas e não humanas (chimpanzés, golfinhos, robôs sencientes, alienígenas extraterrestres, deuses, pessoas em outros universos). As leis morais incluem leis que governam as relações entre duas pessoas (por exemplo, não matar, não roubar, dizer a verdade, cumprir as promessas). Mas as leis morais também incluem leis que governam sistemas maiores de pessoas. Elas incluem leis sociais e políticas. As leis morais incluem o sistema jurídico ideal, assim como a constituição ideal. Elas definem a comunidade ideal de povos e nações.

O ateísta platônico é um realista moral. As leis da moralidade são objetivas. Elas são independentes de qualquer mente. Nós não as criamos: nós as descobrimos. Conforme nossas civilizações evoluem, produzimos representações da lei moral. Tais representações incluem os vários códigos legais e morais (a começar pelo código de Hammurabi). Elas também incluem os arquétipos de Estados ideais (por exemplo, a República de Platão ou a Utopia de Moore). Na maioria das vezes, temos feito progressos; nossas representações da lei moral têm ficado mais e mais acuradas. Mas tem havido fracassos retumbantes (como o fascismo, o comunismo, e o fundamentalismo).



3. Leis e pessoas

3.1. As leis formais estão acima de todas as pessoas

O ateísta platônico diz que as leis da lógica e as leis da matemática estão acima de todas as pessoas. A existência de qualquer deus depende dessas leis. Se a definição de um deus é inconsistente, então aquele deus não existe. Se não existe nenhuma maneira de conceber um modelo matemático de um suposto deus, então aquele deus é impossível; ele não existe. Por exemplo, se o conceito de trindade é logicamente ou matematicamente incoerente, então nenhum deus triuno é possível. Outro exemplo: a teoria dos conjuntos diz que a onisciência é matematicamente impossível (Grim 1988); portanto, não pode haver nenhum deus onisciente. Se algum deus existe, não pode violar ou mudar as leis formais. Ele tem de obedecer a tais leis.

3.2. As leis naturais estão acima de todas as pessoas

Uma pessoa é, por definição, um agente. Pessoas estão envolvidas em relações espaciais, temporais, e causais. Elas existem em universos físicos reais. Elas estão subordinadas às leis do universo no qual existem. Nosso universo obviamente contém pessoas humanas. Mas nós estamos sujeitos às leis de nossa natureza local. Nosso universo talvez contenha alienígenas sobre-humanos; se esse é o caso, eles também estão sujeitos às leis de nossa natureza local (GD 96-98).

Vários autores têm recentemente sugerido que talvez existam pessoas com poderes tão extremos que podem projetar universos inteiros, além de torná-los reais. Há duas maneiras pelas quais tais pessoas podem projetar e produzir universos. Na primeira delas, elas usam objetos físicos como buracos negros para produzir universos (Gardner 2003). Na segunda, usam objetos físicos como computadores para produzir universos (Moravec 1998)[3]. Essa segunda maneira tem recebido considerável atenção (Bostrom 2003; GD 98). Essa segunda maneira é profundamente intrigante: suponha que estamos vivendo numa simulação de computador que foi projetada por alguma pessoa em algum outro universo (e essa pessoa pode ser uma pessoa corporativa). Essa pessoa pode ter muitas das características de uma deidade teísta — ela seria um projetista inteligente; seria uma primeira causa; relativamente a nosso universo, seria uma fundação necessária para todo e qualquer ser.

Apesar disso, se nosso universo é o produto de tecnologia sobre-humana, os Engenheiros são coisas inteiramente naturais, vivendo em seu próprio universo nativo. Os Engenheiros estão debaixo das leis da matemática — especificamente, debaixo das leis da probabilidade. Tais leis dizem que coisas complexas evoluem a partir de coisas mais simples. Por isso Dawkins escreve: “Os próprios simuladores têm de ter vindo de algum lugar. As leis da probabilidade proíbem qualquer noção de que tais simuladores apareceram do nada, sem que antes tenha havido antecedentes mais simples.” (GD 98-99) E Dawkins escreve noutro lugar: “O próprio projetista tem de ser o produto final de algum tipo de processo cumulativo ou de guindaste [um processo natural capaz de tornar algo simples em algo mais complexo, mas difícil de detectar depois que a mudança está concluída]; talvez uma versão de darwinismo em outro universo.” (GD 186)[4] Se qualquer programador divino de computadores existe, ele está debaixo das leis da evolução. Ele está sujeito às leis naturais de seu próprio universo e às leis de todos os universos. E portanto está sujeito à Lei.

Os teístas dizem que nosso universo contém deuses. Se é verdade, tais deuses estão sujeitos às leis de nossa natureza local. Van Inwagen escreve: “Se existem tais coisas como as que se seguem, elas são concretas: repolhos, reis, pedaços de cera para selar cartas, elétrons, mesas e cadeiras, anjos, fantasmas, e Deus.” (2007: 199) Assim, Deus está sujeito às mesmas leis às quais estão sujeitos os repolhos, os reis, os pedaços de cera para selar cartas, os elétrons, as mesas e as cadeiras. Como era de se esperar, Dawkins argumenta que a religião não é um domínio à parte da ciência (GD 77-85). Toda afirmação religiosa é uma hipótese científica que pode ter seu valor de verdade decidido por meio do método científico (GD 82-83). Essa é uma ideia antiga. Para os estoicos, a teologia é um ramo da ciência natural (Algra 2003). O ateísta platônico concorda. É claro: a teologia talvez seja um ramo vazio da física.

Visto que deuses estão subordinados às leis do universo em que vivem, eles não podem alterar tais leis. Eles não podem violar tais leis ou produzir exceções às leis. Se milagres exigem a violação de alguma lei natural, então não existem milagres (GD 82-85). Por exemplo, se alguma história na Bíblia não é consistente com a lei natural, tal como revelada pela ciência, então essa história é falsa. Se deuses interagem causalmente com outras coisas em nosso universo, então essas interações são reguladas pelas leis da física. Por exemplo, se deuses agem, então agem usando forças físicas. Suas ações são como nossas ações. E visto que as ações dos deuses estão sujeitas às leis naturais, elas podem ser avaliadas cientificamente. Podemos usar o método científico para decidir se alguma ação hipotética de um deus é ou não é real. Por exemplo, o método científico nos diz que orações não ajudam a curar doenças (GD 85-90). Ou considere as afirmações “Apenas Deus pode criar a vida” ou “Apenas Deus pode direcionar o desenvolvimento da vida.” Tais afirmações são hipóteses científicas. O processo de evolução por seleção natural diz que são falsas.

Visto que todas as pessoas (humanas ou divinas) estão subordinadas às leis do universo em que vivem, todas as pessoas têm de usar o mesmo método para descobrir tais leis. Esse é o método científico. Por tudo o que sabemos, talvez exista inteligência sobre-humana no nosso universo. Talvez ela até tenha poderes infinitos. Mas está subordinada às leis de nosso universo. Deidades como Jeová e Zeus não inventaram as leis de nossa natureza local — ao contrário, tais deidades têm de usar o método científico para descobrir as leis. Portanto os seres humanos podem usar o método científico para testar e avaliar qualquer revelação que, segundo dizem, tais deidades fazem.

Visto que deuses estão sujeitos às leis do universo em que vivem, a existência de qualquer deus é puramente uma hipótese científica. A existência de uma deidade teísta é uma tese que pode ser averiguada pelo método científico (GD 68, 70, 72-73, 82, 85). Não existe lacuna explicativa na qual a deidade teísta possa se esconder (GD 151-155). A ciência mostra que deidades teístas como Jeová e Zeus não existem (Stenger 2007). E o ateísta platônico concorda.

3.3. As leis morais estão acima de todas as pessoas

O ateísta platônico diz que as leis morais estão acima de todas as pessoas. Não há pessoa que possa alterar as leis morais. Elas estão além do poder de qualquer deus. Essa ideia já estava presente nos estoicos. Por exemplo, Marco Aurélio escreve: “Sempre que algo pode ser feito do modo como dita o Logos compartilhado por deuses e homens, então tudo está em ordem.” (Meditações 7.53) Essa ideia é até defendida por alguns teístas. Por exemplo, Swinburne (1977: cap. 11) é um realista moral. Ele diz que a lei moral é objetiva e necessária. Portanto, nem mesmo a deidade pode alterá-la: “Se a lei moral é logicamente necessária, como temos afirmado, então certas ações são erradas, como o genocídio; e daí Deus tem o poder de torná-las certas tanto quanto tem o poder de tornar um homem casado e solteiro ao mesmo tempo.” (Swinburne, 1977: 203)

Visto que todas as pessoas (humanas ou divinas) estão sujeitas à lei moral, todas as pessoas podem usar a lei moral como padrão para julgar umas às outras. Sendo assim, humanos estão livres para usar a lei moral como padrão para julgar o comportamento de qualquer suposto deus. Por exemplo, deuses como Zeus ou Jeová podem ser julgados de acordo com a lei moral. Ponha Jeová em destaque. O comportamento de Jeová está descrito em detalhes no Velho Testamento. Está cada vez mais claro que a maioria de suas ações é depravada (Nelson-Pallmeyer 2003; GD cap. 7; Johnston 2009: 57-64). Jeová em pessoa participa diretamente de assassínios em massa (incluindo infanticídio e genocídio), ou então ordena tais ações a seus seguidores.[5] Jeová consente com estupro, pilhagem, escravidão, poligamia. Julgado de acordo com a lei moral, Jeová é mau. O ateísta platônico diz que, se qualquer pessoa adora Jeová, então está adorando um deus malévolo.

Visto que todas as pessoas (divinas ou não) estão subordinadas à lei moral, todas as pessoas podem usá-la como padrão para avaliar qualquer código jurídico, projeto político, ideologia, ou constituição política. Por exemplo, qualquer pessoa pode avaliar as normas de conduta propostas pela Bíblia recorrendo à lei moral. Mais especificamente, considere os códigos legais contidos no Levítico e no Deuteronômio. Em sua maior parte, tais códigos são primitivos e injustos.



4. Aplicações

4.1. A alma

O ateísmo platônico tem muitas aplicações ateológicas imediatas — pode ser usado para fazer revisões ateístas de doutrinas teístas tradicionais. Como ilustração, considere as pessoas humanas. O ateísta platônico, seguindo o que há de melhor nas nossas ciências da natureza, diz que pessoas são coisas inteiramente materiais — somos estritamente idênticos a nosso corpo. Mas o que dizer da alma? Os cartesianos dizem que a alma é uma substância pensante imaterial. Contudo, tais substâncias não são consistentes com as leis da natureza em nosso universo. Visto que o dualismo cartesiano não é consistente com as nossas leis locais da natureza, é falso. Não temos uma alma cartesiana.

Muitos tipos de ateísmo (por exemplo, aqueles baseados em materialismo ou em naturalismo extremo) não têm os recursos metafísicos para considerar alternativas ao cartesianismo. Se o cartesianismo é falso, então esses ateístas têm de dizer que as pessoas não têm uma alma de jeito nenhum. Contudo, para o ateísta platônico, o fracasso do dualismo cartesiano não implica que falte uma alma para cada pessoa. O ateísta platônico pode considerar alternativas afirmativas ao cartesianismo. Por exemplo, Aristóteles disse que a alma é a forma do corpo (De Anima, 412a5-412b21). Um jeito de pensar nisso é dizer que a forma do corpo é um objeto matemático. A biologia computacional sugere que coisas vivas são máquinas programadas. A forma do corpo é algo como um programa de computador — uma função abstrata que leva de números para números. Com essa visão, sua alma é o programa em seu corpo. Visto que o ateísta platônico é um realista matemático, pode endossar a tese de que cada pessoa roda um programa que supervém na forma de seu corpo. Toda pessoa tem uma alma.

Sua alma é seu programa-corpo. Todos os programas têm atributos variáveis. As entradas de um programa estão entre tais atributos variáveis. Diferentes sequências de entradas fazem o mesmo programa viver histórias diferentes. Qualquer programa define um conjunto de histórias possíveis. Sua alma define um conjunto de vidas possíveis. Uma alma é uma essência: qualquer vida no conjunto definido por sua alma é uma de suas vidas possíveis; qualquer vida que não esteja no conjunto não é uma de suas vidas possíveis. Para qualquer uma de suas vidas possíveis, existe algum universo possível que contém aquela vida. Qualquer coisa que viva uma de suas vidas possíveis é uma de suas contrapartes. Contrapartes compartilham uma alma: x é uma contraparte de y se-se (se e somente se) a alma de x é a alma de y. Algumas de suas vidas possíveis são melhores do que outras (existe uma ordem parcial das vidas possíveis, organizadas da mais valiosa à menos valiosa). Portanto, algumas de suas contrapartes vivem uma vida melhor que a de outras: x é uma contraparte melhor de y se-se x é uma contraparte de y e a vida de x é melhor que a vida de y. Reciprocamente, algumas contrapartes têm uma vida pior do que outras. Claramente, há versões piores e melhores de sua vida presente na Terra. Algumas de suas contrapartes vivem uma vida pior que a sua — e outras, uma melhor.

4.2. Vida após a morte

Muitos tipos de ateísmo (mais uma vez, aqueles baseados em materialismo ou em naturalismo extremo) não têm os recursos metafísicos para desenvolver qualquer teoria de vida após a morte. Mas o ateísmo platônico tem recursos consideráveis — e pode usá-los para desenvolver tais teorias. Note que vida após a morte não implica sobrevivência. Pessoas são corpos; corpos não sobrevivem à própria morte; logo, nenhuma pessoa sobrevive à própria morte. Se imortalidade é sobrevivência post-mortem indefinida, daí o ateísmo platônico descarta a imortalidade (Lamont 1935: 2). Mas não descarta a vida após a morte. Há várias maneiras pelas quais o ateísta platônico pode argumentar em favor de vida após a morte. A seguir, pode examinar o rascunho de dois argumentos.

O primeiro deles é baseado na teoria de ressurreição de John Hick (1976: caps. 15, 20, 22). Hick propõe uma sequência de universos físicos distintos. Esses universos estão interligados como contas numa linha do tempo supercósmica. Os universos são espacialmente distintos. Não há como viajar de um universo para outro. Nosso universo é um deles — pode chamá-lo de universo-1. Ele é seguido do universo-2, que é seguido do universo-3, etc. Cada universo é inteiramente natural — é governado por suas próprias leis naturais. Mas as leis que operam dentro de cada universo não são as únicas leis. Os universos são interconectados por leis supercósmicas. Essas leis não são leis sobrenaturais. São apenas leis naturais numa escala muito maior. Para Hick, a ressurreição é o resultado do funcionamento de uma lei supercósmica. Ele diz que é uma lei da natureza que, quando um corpo morre num universo, uma réplica desse corpo aparece no próximo universo (1976: 287). Cada universo da sequência é mais propício à vida. Sua réplica vai levar uma vida melhor no próximo universo. Sua réplica é uma de suas contrapartes — ela tem sua alma; tem sua essência. É claro que a teoria de réplicas de Hick sofre com várias falhas. Dilley (1983) e Steinhart (2008) trabalharam para reparar certos problemas com a teoria de Hick e para estendê-la.

O segundo argumento tem como base a premissa de que nosso universo é gerado por computador (ou seja, é uma simulação). Desse ponto de vista, nosso universo é um processo de software rodando em algum computador de algum universo de mais alto nível. O universo de mais alto nível é um sistema físico — ele funciona de acordo com suas próprias leis naturais. Vamos chamar esse computador de Engenho. É possível que o Engenho foi desenhado e construído por Engenheiros. Embora o Engenho e os Engenheiros sejam naturais em seu próprio universo, para nós eles parecem sobrenaturais. Da nossa perspectiva, eles se parecem com deuses (Bostrom, 2003: 253-254). Os Engenheiros têm inteligência e poderes sobre-humanos. É claro que eles são pessoas em algum sentido altamente abstrato: são agentes morais racionais. Mas qual é sua moralidade? Se o axiarquismo é verdadeiro, então maior racionalidade implica maior benevolência. E daí é razoável supor que eles possuem benevolência sobre-humana. Eles se interessam pelas pessoas que aparecem em suas simulações — se interessam cognitivamente e eticamente. O Engenho é capaz de gravar cada detalhe de cada vida humana. E essa gravação pode ser usada depois para uma promoção (Moravec, 1988: 152-153; Bostrom, 2003: 253-254; Leslie, 2007: 61-65). Os Engenheiros podem te promover se-se eles recriam você depois de sua morte (ou recriam em algum outro universo simulado ou no próprio universo em que eles vivem). Qualquer versão promovida de você é uma de suas contrapartes — pois tem a sua alma. Promoções perfazem uma teoria inteiramente natural de vida após a morte.

Um ateísta platônico talvez queira desenvolver mais a descrição de vida após a morte que esboçamos aqui. Outros talvez queiram compor teorias completamente diferentes. Para o ateísta platônico, há muitas maneiras de criar uma teoria de vida após a morte. Há muitas maneiras de desenvolver escatologias e soteriologias ateístas. Essas doutrinas mostram que o conteúdo existencial afirmativo do ateísmo platônico é pelo menos tão grande quanto o conteúdo existencial afirmativo do teísmo (veja Martin 2002: cap. 13; Craig 2008: cap. 2). Se o teísmo pode tornar a vida significativa, então o ateísmo platônico também pode. Essas doutrinas ateístas mostram que, da mesma forma que deuses não são necessários para a criação do universo ou o desenvolvimento da vida, também não são necessários para a vida após a morte ou a salvação da alma.

4.3. Justiça

Visto que a Lei está acima de todas as pessoas, todas as pessoas são iguais diante da Lei. Para o ateísta platônico, isso significa compromisso com toda forma de justiça — toda forma de equidade e de igualdade. O ateísta platônico se opõe a toda forma de injustiça com base em raça, sexo, riqueza, ou política. Surpreendentemente, talvez, o ateísta platônico concorda, de muitas maneiras, com a concepção de bem comum do cristão progressista. Isso abre intrigantes maneiras pelas quais ateístas platônicos e cristão progressistas podem trabalhar juntos para perseguir os objetivos da justiça.



5. Divindade

5.1. A Lei é divina

Há duas razões para afirmar que a Lei é divina. Em primeiro lugar, a Lei tem muitos atributos clássicos da divindade. A Lei é transcendental, universal, necessária, eterna, etc. Ela define todo ideal platônico: a verdade, o bem, a justiça, a beleza. Em segundo lugar, se existe algum deus, a Lei está acima desse deus. Visto que tradicionalmente dizemos que os deuses são divinos, então temos ainda mais o direito de dizer que a Lei é divina. Para o ateísta platônico, sim, a Lei é divina. Ela é santa e sagrada. Mas a Lei é uma forma abstrata — ela é o Logos[6]. Portanto, não é uma coisa entre outras coisas. Em vista disso, não é uma pessoa divina — a Lei não é um deus.

Visto que o ateísmo platônico afirma que a Lei é divina, o ateísmo platônico implica duas atitudes opostas diante da Lei. A atitude negativa é a de irreverência ou de impiedade. Para o ateísta platônico, qualquer um que tome uma atitude inapropriada ou incorreta diante da Lei é ímpio. A atitude positiva é a de reverência ou de piedade. Para o ateísta platônico, qualquer um que tome uma atitude apropriada ou correta diante da Lei é pio[7].

5.2. Devoção à Lei

A piedade ateísta é a devoção à Lei; logo, o ateísta platônico pode ser devoto. Devoção à Lei é primordialmente devoção à verdade e à justiça. Para o ateísta platônico, é pio buscar a verdade e a justiça. Os deveres sagrados do ateísta platônico incluem serviços à verdade e à justiça. Por exemplo, fazer matemática e fazer ciência são atividades de devoção. Honestidade é uma virtude devota. Promover a justiça é uma atividade devota. Devoção à Lei é uma fonte de significado existencial para o ateísta platônico — ela torna a vida importante.

Está claro que devoção à Lei não implica adoração. A Lei é uma estrutura lógica abstrata — a forma do possível e do real, a forma do devir e da bondade. Não faria sentido algum adorar uma estrutura lógica abstrata. Ao repudiar o teísmo, o ateísta platônico repudia toda forma de adoração que é dirigida a pessoas sobrenaturais. O ateísta platônico rejeita toda forma de adoração cujo propósito é bajular uma pessoa sobrenatural ou obter dela favores. É absurdo tentar barganhar com a Lei — não faz sentido pedir favores à Lei ou a ela agradecer. Não faz sentido oferecer sacrifícios à Lei; ou a ela cantar hinos de louvor.

Embora o ateísta platônico rejeite toda forma de adoração teísta, o ateísta platônico afirma que a piedade ateísta pode ser expressa socialmente. Vale a pena para os ateístas platônicos desenvolver rituais e liturgias ateístas. Os ateístas platônicos podem elaborar cerimônias de reparação ou de perdão. Podem elaborar cerimônias para curar uma culpa e purificá-la. Podem elaborar cerimônias para marcar passagens importantes na vida (nascer, chegar à idade adulta, casar-se, morrer). E embora nunca vá haver padres ou profetas ateístas, pode haver celebrantes ateístas — líderes de comunidades ateístas de reverência.

Não existe nenhuma contradição em dizer que uma comunidade ateísta de reverência é uma comunidade religiosa. Ateísmo e religiosidade não são incompatíveis (Martin 2007). Há várias religiões ateístas orientais; mas tais religiões também podem surgir no ocidente. Dizer que o ateísmo não pode ser religioso é partir da pressuposição de que a religião exige o teísmo. Infelizmente, muitos ateístas concordam com os teístas nesse ponto[8]. Essa concordância concede ao teísmo algo que ele não merece. A religião não exige o teísmo. Ao contrário, da mesma forma que o teísmo dificultou o progresso da ciência, o teísmo ainda dificulta o progresso da religião. Os ateístas platônicos podem trabalhar juntos para erguer novas instituições religiosas ateístas.

5.3. Pecando contra a Lei

Pecar contra a Lei é impiedade; é irreverência. Pecar contra a Lei inclui a promoção de inverdades e de injustiça. A promoção de inverdades é blasfêmia. Por exemplo, a promoção do criacionismo ou do projeto inteligente é blasfêmia. A promoção de qualquer tipo de injustiça é perversidade. Pecar contra a Lei pode chegar a um grau demoníaco. Com relação tanto à verdade quanto à justiça, o fundamentalismo é demoníaco. O ateísta platônico é obrigado pela lei moral a evitar qualquer pecado contra a Lei.

Pecar contra a Lei inclui idolatria. Idolatria é a reverência inapropriada — é incorretamente tratar algo que não é divino como se fosse divino. Uma pessoa ou uma instituição social idólatra reverencia alguma versão pervertida do divino. Todo teísmo é idólatra. A idolatria teísta compreende a projeção de alguma pessoa por detrás da Lei ou acima da Lei (Feuerbach 1841). Ela compreende a projeção de um rei por detrás da Lei. Mas esse rei está sempre ligado às pessoas que o projetam — sua família, tribo, costumes, valores. Tendo como base a idolatria, o idólatra projeta mitos, costumes, e valores tribais no divino. Portanto, a idolatria teísta naturalmente tende no sentido da adoração de líderes políticos ou de ordens políticas. Ela se transforma na adoração do imperador e da nação. Nos Estados Unidos, por exemplo, ela se transforma em Nacionalismo Cristão (Boyd 2006).

É idolatria dizer que a Lei está de algum modo incorporada em algum deus. Logo, é idolatria dizer que a Lei é a estrutura das ideias na mente divina ou a estrutura das disposições na vontade divina. É idolatria dizer que a Lei é a natureza de qualquer deus (contra Plantinga 1980). É idolatria dizer que a Lei é produzida por algum deus. Se a Lei for identificada com o antigo Logos, daí é idolatria dizer que a Lei é a filha de algum deus (contra Fílon de Alexandria e João 1:1-7). E é tanto idolatria quanto é incoerente dizer que a Lei é ao mesmo tempo idêntica com algum deus e que está fundamentada nesse deus (contra João 1:1-7 e Tillich 1951: 238-239). O ateísta platônico diz que os cristãos adoram um mero ser humano. Mas isso é idolatria extrema.

O ateísta bondoso é bondoso por causa da bondade em si mesma. Ele não é bondoso por causa de alguma compensação futura — por exemplo, para merecer algum futuro prêmio ou para evitar algum futuro castigo (Anthony 2009). Os ateístas têm dito que ser bom por causa de alguma compensação futura não é bondade, mas uma forma de egoísmo. De acordo com Rahner, alguns ateístas são tão bons que podem ser considerados cristãos anônimos — e, sendo assim, merecem a salvação (Pasquini 2000). Mas o ateísta platônico devoto inverte isso de ponta cabeça: alguns cristãos são tão bons que merecem ser considerados ateístas anônimos. Eles não são pecadores.



6. Conclusão

De um lado, o ateísmo platônico é negativo. Ele constantemente luta contra a idolatria teísta. Ele constantemente luta contra as perversões teístas da verdade e da justiça. Por exemplo, o ateísmo platônico funciona como a consciência do teísmo (Kay 2008). De outro lado, o ateísmo platônico não é meramente negativo. O ateísmo platônico vai além de meramente dizer que deuses não existem. Ele é afirmativo. O ateísmo platônico tem uma enorme quantidade de conteúdo positivo. Para o ateísta platônico, a reverência à Lei é a boa nova. É o evangelho ateísta. A apologética ateísta defende esse evangelho. O evangelismo ateísta apregoa esse evangelho.

O ateísmo platônico procura desenvolver alternativas existenciais ao teísmo. Hoje em dia, os teístas têm quase um monopólio sobre as instituições para serviços à comunidade e para suporte emocional. Igrejas providenciam muitos serviços sociais (incluindo aconselhamento matrimonial, aconselhamento em situação de pêsames, assistência com problemas jurídicos, assistência com problemas financeiros, e toda sorte de serviços de caridade). O ateísmo platônico procura desenvolver uma práxis ateísta completa, incluindo instituições. Sendo um ateísmo afirmativo, o ateísmo platônico tem os recursos para derrotar o teísmo em seu próprio jogo. {FIM}



Notas do autor:

[1] Para muitos no mundo antigo, a Lei é o Logos. O Logos é a ordem racional da existência. Provavelmente, o Logos apareceu pela primeira vez com Heráclito (Kirk & Raven 1957: cap. 6). Leucipo usa o termo “logos” para “razão” quando escreve: “Nada acontece em vão, mas tudo acontece por razão e por necessidade.” (Taylor 1999: 3) O Logos continuou a ser desenvolvido pelos estoicos (Zeno, Cleantes, Crísipo). E o Logos desempenha papel importante nas Meditações de Marco Aurélio (Hays 2002).

[2] Leibniz define possibilidade em termos de consistência. Ele menciona Bayle ao oferecer a máxima de que “Tudo o que implica contradição é impossível, e tudo o que não implica nenhuma contradição é possível.” (Teodiceia, seç. 173) E depois diz: “Vou adicionar apenas que o que acabei de indicar como sendo uma máxima é de fato a definição de possível e de impossível.” (Teodiceia, seç. 174)

[3] Seguindo Moravec (1988), há uma inferência do cristianismo bíblico para o simulacionismo. Se o cristianismo bíblico fosse verdadeiro, a melhor explicação para essa verdade seria que estamos vivendo numa simulação de computador. Para os cristão bíblicos, o modo como o universo aparece é falso. O universo parece que existe há bilhões de anos; na verdade, existe há alguns milhares de anos apenas. A vida parece que evoluiu por seleção natural; na verdade, a vida surgiu e evoluiu por projeto inteligente. Se estivéssemos vivendo numa simulação, tais afirmações poderiam ser verdadeiras. Os simuladores teriam poderes milagrosos, comparados a nós. Eles poderiam enviar mensageiros para dentro da simulação. Poderiam até enviar um messias. Se estivéssemos vivendo numa simulação, daí milagres, profetas, revelações do Apocalipse, e a encarnação [de Deus, o filho, no corpo de Jesus Cristo] poderiam ser verdadeiras.

[4] Para Dawkins, a ciência (não a religião) explica a origem e o desenvolvimento da realidade física em si mesma. Dawkins diz que deve ter havido uma primeira causa (GD 184). Mas essa primeira causa, pura e simplesmente, não é Deus (GD 184). Ele diz: “A primeira causa que buscamos deve ter sido a base simples para um guindaste autoinicializável que no fim das contas ergueu o mundo para a versão complexa dele tal como a conhecemos.” (GD 185)

[5] Eis aqui uns poucos casos nos quais Jeová participa diretamente de assassinatos em massa: o dilúvio de Noé (Gênesis 5-6); o massacre de Sodoma e Gomorra (Gênesis 19); o massacre dos primogênitos do Egito (Êxodo 7, 12); o massacre dos 42 meninos (II Reis 2: 23-24); Jeová ajuda Asa a matar os etíopes (II Crônicas 14). Menção especial: o próprio Jeová mata amorreus em fuga ao jogar sobre eles grandes pedras do céu (Josué 10:11). Eis aqui uns poucos casos nos quais Jeová ordena a seus seguidores que pratiquem assassinatos em massa: o assassinato dos cananeus (Números 21:1-3); o assassinato dos amorreus (Números 21:21-31; Deuteronômio 2:24-25); o assassinato dos moradores de Basã (Números 21:32-35); o assassinato dos midianitas (Números 25:16-17); Números 31:1-18); o assassinato das sete nações (Deuteronômio 7:1-5, 20-24; Deuteronômio 20:16-17); o assassinato dos moradores da cidade de Jericó (Josué 6); o assassinato dos moradores da cidade de Ai (Josué 8:1-29); o assassinato dos moradores de muitas cidades (Josué 10, 11). Selecionei esses exemplos porque em quase todos eles há destruição total: são assassinados homens, mulheres, e crianças. Eles envolvem infanticídio. Envolvem holocausto total. Esses exemplos são histórias de genocídio.

[6] O Logos é divino, sagrado, santo. Os estoicos com frequência afirmavam a divindade do Logos. Por exemplo, Marco Aurélio escreve: “Tudo está entrelaçado, e a urdidura é santa; nenhuma de suas partes está desconectada. Elas estão compostas harmoniosamente, e juntas perfazem o mundo. Nosso mundo, feito de todas as coisas. Uma divindade, presente em todas elas. Uma substância e uma lei — o Logos que todos os seres racionais compartilham.” (Meditações 7.9)

[7] Dawkins parece ter a reverência de um ateísta platônico. Visto que ele tem uma apreciação extasiada da natureza, frequentemente ouve outras pessoas a descrevê-lo como “um homem profundamente religioso” (GD 33). Dawkins fornece citações de Einstein e de Carl Sagan as quais sugerem que eles também reverenciavam a Lei (GD 36, 39, 40-41). Mas tal reverência é ateísmo platônico.

[8] Às vezes ouvimos esse tipo de declaração vinda de ateístas: “Se o ateísmo é uma religião, então não jogar beisebol é um esporte.” Declarações como essa são ingênuas.


Observações do tradutor:

1. Para citar esse artigo, por favor, escreva:

Steinhart, Eric. “Elementos de Ateísmo Platônico”. Tradução de Márcio Simões. São Paulo: Imaginário Puro (blogue), 6 de setembro de 2021.

2. Clique aqui para baixar um PDF do artigo no original em inglês. Para ver as referências bibliográficas, vá direto para a página 17.

3. Steinhart escreveu um livro sobre esse assunto, platonismo ateísta, que é ótimo. Para ver um resumo do livro e uma descrição de sua estrutura, inclusive um resumo de cada capítulo, clique aqui. Já mencionei Steinhart outras vezes neste blogue, porque ele é o autor de um livro de matemática para estudantes de filosofia, livro o qual não me canso de elogiar: More Precisely: The Math You Need to Do Philosophy.

4. Filosofia analítica. Definição. É uma filosofia praticada por meio de análise sistemática daquilo que está escrito (palavras, locuções, gráficos, ilustrações), e com frequência o filósofo parte para tal análise recorrendo a métodos formais de apoio ao pensamento sistemático, tais como lógica e matemática. Steinhart é um praticante.

5. Platonismo. Definição atual. Platonismo é a visão de que (1) existem tais coisas como objetos abstratos, dos quais os objetos da matemática são o melhor exemplo; e, além disso, (2) nosso universo é um modelo exato de uma estrutura puramente matemática. Um objeto abstrato (como a proposição de que o número 3 é primo) não existe no espaço ou no tempo — e portanto não é físico (não é feito de átomos, moléculas, energia) nem mental (não é a mente de algum ser nem é uma ideia na mente de algum ser). Melhor dizendo: – Objetos abstratos precedem tudo aquilo que é físico e tudo aquilo que é mental; ou então: – Tudo aquilo que é físico e tudo aquilo que é mental supervêm em objetos abstratos.

6. Platonismo. Definição de Platão (por inferência). Há uma mulher bonita. Há um homem bonito. Há um cavalo bonito. Há uma montanha bonita. Há um templo bonito. Há um discurso bonito. Há um poema bonito. Há uma equação matemática bonita. Como é possível que uma mulher, um homem, um cavalo, uma montanha, um templo, um discurso, um poema, e uma equação matemática sejam tão diferentes entre si, mas compartilhem uma propriedade comum, que é a propriedade de ser bonito? Sócrates (personagem de Platão) explicava esse fato tão enigmático assim: existe a Forma da Beleza, e, de algum modo, todas as coisas bonitas participam dessa Forma. Sócrates achava que existe um reino mais real e mais perfeito que a realidade em que vivemos, reino esse constituído por entidades eternas, imutáveis, perfeitas, que servem de paradigma para as coisas que existem em nossa realidade. Nos textos de Platão, as Formas que Sócrates menciona com maior frequência são o Bem, a Beleza, a Coragem, a Moderação (no sentido de controle, sobriedade), e a Justiça. (Para usar uma imagem do próprio Sócrates: imagine que você olha para um candelabro iluminado pelo Sol. Você vê o candelabro porque ele está iluminado pelo Sol e porque tem olhos: se estivesse escuro, ou se fosse cego, não poderia vê-lo. Para Sócrates, as Formas [em especial a Forma do Bem] “iluminam” nosso mundo concreto, de modo que podemos usar nossa razão para compreendê-lo. Sem as Formas, não poderíamos compreendê-lo: ele seria ininteligível. Sem a razão, também não poderíamos compreendê-lo.) Sócrates achava possível explorar o reino das Formas por meio da dialética, que é um diálogo especial, no qual os participantes cooperam na busca da verdade ao testar as pressuposições, os argumentos, e as teses uns dos outros.

7. Para ver Sócrates em ação, leia A República de Platão. É um livro extraordinário, tanto é que vem sendo lido há 2.400 anos e até hoje filósofos profissionais descobrem nele alguma coisa nova. Na primeira leitura, parece que Sócrates e seus interlocutores conversam para descobrir juntos como seria a cidade idealmente justa, para que, usando-a como referência analógica, possam descobrir se uma pessoa deve agir sempre com justiça, mesmo que tal ação lhe traga desonra ou prejuízo. Depois de algumas leituras, contudo, você percebe que Sócrates usa um sistema de objetos abstratos de referência, semelhantes aos mitos que contou a seus interlocutores, desde a primeira linha do livro. Isso é platonismo puro: usar objetos abstratos para alicerçar o pensamento sistemático e para se engajar com o mundo; no caso de Sócrates em A República, para pôr Glaucon, Adimanto, e o leitor no caminho da justiça, isto é, de escolhas e de ações guiadas por razão, ciência, coragem, beleza, bondade.

8. Pessoa. Definição. Na filosofia, uma pessoa é um ente consciente (ou autoconsciente) capaz de raciocinar e de tomar decisões morais. Pode ser um homem, uma máquina, um deus.

9. Metafísica. Definição. É difícil definir a metafísica moderna, mas eis uma tentativa: o especialista em metafísica se preocupa em dar resposta a questões que estão além dos métodos das ciências empíricas. Exemplo: como distinguir, exatamente, aquilo que é mental daquilo que é físico?

10. Realismo. Definição de realismo a respeito de a, b, e c, que têm as propriedades F, G, e H: As coisas a, b, e c existem, e o fato de que existem e de que têm as propriedades F, G, e H é independente de qualquer crença, prática linguística, esquema conceitual, cultura, ponto de vista, etc. Portanto, o realista moral diz que existe pelo menos uma proposição moral que tem a propriedade de ser verdadeira independente de qualquer crença, prática linguística, esquema conceitual, cultura, ponto de vista, etc. Quanto ao platonista, é um realista a respeito de objetos abstratos. E, como Steinhart explicou, o ateísta platônico é um realista a respeito da Lei.

11. Nominalismo. Definição. Hoje, há dois tipos principais de nominalismo: um diz que existem apenas objetos particulares e que tudo é particular; o outro diz que existem apenas objetos concretos e que tudo é concreto.

12. Ficcionalismo. Definição. O ficcionalista é um tipo de nominalista. Ele diz que existem objetos abstratos, como os objetos da matemática, mas diz ainda que tais objetos são uma espécie de ficção; em particular, objetos abstratos são ficções especialmente concebidas para que sejam úteis ao raciocínio. O autor deste blogue é um ficcionalista a respeito de platonismo: afirma que o platonismo é uma espécie de ficção, mas reconhece que é uma ficção imensamente útil no apoio ao pensamento sistemático. É bom dizer, contudo, que há ótimos argumentos contra e a favor tanto de platonismo quanto de ficcionalismo, e portanto a questão não está resolvida.

13. Conjuntos e classes próprias. Definição. A teoria de classes foi criada para evitar o paradoxo de Russell. De acordo com ela, toda coleção de elementos concretos ou abstratos é um conjunto ou é uma classe própria. Todo conjunto é também uma classe. Todo conjunto é elemento de outra classe; por exemplo, é elemento de seu conjunto potência. Se x é um conjunto, então existe uma classe y tal que xy. Mas nem toda classe é um conjunto. Uma classe própria não é elemento de nenhuma outra classe. Se x é uma classe própria, não existe classe y tal que xy. Não existe o conjunto potência de uma classe própria. Uma das consequências interessantes da teoria de classes: existe a classe V de todos os conjuntos, que é uma classe própria, e que contém toda e qualquer estrutura abstrata que possa ser convertida em relações entre números. Visto que, ao que parece, nosso universo pode ser convertido em relações entre números, então V contém uma estrutura abstrata completamente equivalente ao nosso universo.

13. Guindaste. Definição. Um “guindaste” é um processo natural capaz de pegar uma coisa A simples e, por meio de incrementos modestos, com o tempo transformá-la em uma coisa B mais complexa, sem contudo deixar marcas de si mesmo em B. (Examinando B, é impossível ver que A se transformou em B por meio de um guindaste.) O melhor exemplo de guindaste é o processo de evolução das espécies por seleção natural. O nome “guindaste” é uma ideia do filósofo Daniel Dennett, e serve para marcar o fato de que um guindaste (como o processo de evolução por seleção natural) está sempre firmemente apoiado no chão, isto é, na estrutura física da realidade: guindastes são processos, mas não milagres.

15. A forma do corpo = alma. Quando Steinhart diz que a alma é a forma do corpo, não quer dizer que a alma é o contorno do corpo, mas sim que é a constituição abstrata do corpo: a estrutura abstrata que representa os átomos, as moléculas, e os processos físico-químicos que tornam uma pessoa aquilo que ela é. Para usar uma analogia, a forma de um computador é o projeto do hardware desse computador, mais uma descrição detalhada dos software que estão nele instalados. Eis outra definição abstrata de alma: A alma de determinado corpo é o mais simples programa de computador que simula exatamente a história daquele corpo. Com essa definição, a forma do corpo, ou a alma, é um objeto abstrato, e como tal absolutamente eterna, tão eterna quanto a proposição de que o conjunto {2, 4, 6} é o conjunto dos três primeiros inteiros positivos pares.

16. Programas, entradas, histórias. Se uma máquina M de estados finitos está no estado x quando recebe a entrada w, ela muda o estado de x para y e produz a saída z. Sempre (se for determinística). Visto que uma máquina de estados finitos tem um conjunto finito de estados, o que determina o comportamento da máquina M ao longo do tempo é a sequência de entradas: duas sequências distintas de entradas fazem M se comportar de duas maneiras distintas, isto é, produzem duas sequências distintas de estados e duas sequências distintas de saídas; em outras palavras, produzem duas histórias distintas de M. (Dizendo isso mais trivialmente: duas sequências distintas de acontecimentos [entradas] provocam duas sequências distintas de memórias, pensamentos, sensações, e sentimentos [estados], além de duas sequências distintas de ações [saídas].) Em 1973, Arthur Burks, um dos pioneiros da computação moderna, montou um argumento para defender a tese de que todo ser humano é funcionalmente equivalente a uma máquina de estados finitos.

17. Caute.

Lógica e analogias: um casamento perfeito na ‘República’ de Platão


Suponha que tem uma tarefa para completar: deve escolher um número inteiro de um conjunto não vazio de inteiros não negativos. Por exemplo, deste conjunto:

C1 = {3, 53, 75, 67, 99}

Você escolhe 67 e forma o conjunto R1 = {67}, de modo que R1C1 = {67}.

Agora tem de escolher exatamente um inteiro de cada um de dois conjuntos não vazios de inteiros não negativos, tais como:

C1 = {3, 53, 75, 67, 99}

C2 = {5, 37, 1}

Você escolhe 67 ∈ C1 e 5 ∈ C2 e forma o conjunto R2 = {67, 5}, de modo que R2C1 = {67} e R2C2 = {5}.

E agora tem de escolher exatamente um inteiro de cada um de três conjuntos não vazios de inteiros não negativos, tais como:

C1 = {3, 53, 75, 67, 99}

C2 = {5, 37, 1}

C3 = {0, 2, 4, 6, 8, …}

Você escolhe 67 ∈ C1, 5 ∈ C2, e 6 ∈ C3 para formar o conjunto R3 = {67, 5, 6}, de modo que R3C1 = {67}, R3C2 = {5}, e R3C3 = {6}.

Difícil ou fácil?

Supertarefa 1. Suponha agora que tem diante de si uma lista com infinitos conjuntos não vazios de inteiros não negativos C1, C2, C3, C4, C5, …, todos mutuamente disjuntos (isto é, CiCj = ∅ quando ij), e que deve escolher exatamente um inteiro de cada um deles para formar um novo conjunto RN, de modo que RN contenha exatamente um elemento em comum com cada um dos conjuntos Cj.

Difícil ou fácil? Em certo sentido, é tão fácil quando partir de C1, C2, e C3 para chegar ao conjunto R3 — basta considerar um conjunto de cada vez e escolher um inteiro, e só um, de cada um dos conjuntos C1, C2, C3, C4, C5, …, sem exceção. Se for um deus capaz de realizar supertarefas, e então puder escolher o primeiro inteiro em 1/2 minuto, o segundo inteiro em 1/4 de minuto, o terceiro inteiro em 1/8 de minuto, …, o enésimo inteiro em 1/2n de minuto, e assim por diante, em apenas 1 minuto terá o conjunto RN completamente formado.

Ora, no começo do século 20, quando matemáticos do mundo inteiro trabalhavam para tornar mais explícitas as regras da lógica matemática, muitos implicaram com problemas semelhantes à supertarefa 1. Diziam que essa possibilidade, a de escolher exatamente um elemento de cada conjunto numa lista infinita de conjuntos não vazios, era um passo lógico muito grande, uma tremenda ousadia intelectual, e que tal ousadia precisava ser batizada com um nome especial e ser escrita na forma de axioma:

Axioma da escolha. Dada qualquer coleção de conjuntos não vazios mutuamente disjuntos, coleção essa finita ou infinita, é possível montar um novo conjunto, a ser chamado de conjunto transversal ou conjunto de escolha, o qual contém exatamente um elemento de cada um dos conjuntos da coleção.

Em termos bem simples, o axioma da escolha diz que, tendo diante de si uma coleção de conjuntos, coleção essa finita ou infinita, conjuntos esses finitos ou infinitos, pode fazer uma série de escolhas não especificadas para formar um novo conjunto. Afinal, quando partiu de C1 = {3, 53, 75, 67, 99} e escolheu o elemento 67, ora, poderia ter escolhido 53, ou então 99. Por que não escolheu 53? Por que não escolheu 99? E por que escolheu 67? Talvez queira dar a seguinte resposta: “Por motivos os quais não quero especificar.” O axioma da escolha permite que dê esse tipo de resposta.

Se muitos matemáticos implicavam com problemas como a supertarefa 1, muitos outros não implicavam. Achavam a coisa toda muito natural, e não viam necessidade de incluir, nas fundações da teoria dos conjuntos, o axioma da escolha. Achavam que o axioma da escolha poderia ficar nos bastidores, entre os conceitos primitivos, isto é, entre os conceitos que dispensam definição ou explicação formal; ao contrário, se alguém reclamasse das escolhas feitas para formar conjuntos novos a partir de conjuntos dados, escolhas essas não especificadas, bastava uma breve explicação informal sobre a simplicidade que é escolher, explicação essa dada em linguagem corrente.

Até que um dia alguém foi perguntar a opinião de Bertrand Russell — matemático, filósofo, ativista, ensaísta dos bons. E então? Devemos incluir o axioma da escolha nas fundações da teoria dos conjuntos? Ele não é a coisa mais natural do mundo, e portanto não deve ficar na prateleira dos conceitos primitivos? Por que poluir a teoria axiomática dos conjuntos com um axioma que, ao que tudo indica, é desnecessário?

“Se você tem infinitos pares de sapatos”, respondeu Russell, “sempre pode escolher o pé esquerdo de cada um deles. Mas não pode fazer algo assim para o caso de infinitos pares de meias.”

A analogia de Russell mudou a cabeça de muita gente. Sim, se tem diante de si infinitos pares de sapatos, pode escolher o pé esquerdo de cada um deles — isso é fácil, é simples, é incontroverso. Mas, se tem diante de si infinitos pares de meias… ora, o pé direito é idêntico ao pé esquerdo. Logo, para cada par de meias, terá de pegar um pé e dizer: “Declaro este pé de meia como sendo o pé esquerdo deste par de meias.” Essa operação é mil vezes mais complicada do que simplesmente separar o pé esquerdo de um par de sapatos, e os matemáticos queriam ter a certeza de que podiam realizar operações desse tipo, nas quais a escolha envolve também uma espécie de batismo, isto é, uma decisão mais sutil. O axioma da escolha daria essa certeza.

Veja como essa situação toda aparece num trecho de matemática. Quando trabalha com irracionais, dado o irracional a, sempre pode escolher um irracional b tal que a + b é racional. (Por exemplo, faça b = 1 – a, e daí a + b = 1.) Ou então, dado o irracional a, sempre pode escolher um irracional b tal que ab é racional. (Faça b = 1/a, e daí ab = 1.) Mas será que existem dois irracionais a, b tais que ab é racional?

Há uma prova simples e elegante que diz: “Sim, existem.” Faça x = (√2)√2. Se x é racional, achou o seu exemplo, com a = b = √2. Se x é irracional, faça a = x e b = √2, pois daí ab = 2, e de novo achou o seu exemplo.

Note que, com essa prova, você diz que existem sim dois irracionais a, b tais que ab é racional, mas não diz se x = (√2)√2 é ou não é irracional, embora tenha usado x em dois passos importantes da prova — na qual, assim como escolheu um pé de meia e o declarou como sendo o pé esquerdo, você escolheu o número real x e o declarou como sendo racional, na primeira parte da prova, e depois como sendo irracional, na segunda parte. Depois da analogia dos pares de meias de Russell, os matemáticos perceberam mais claramente que os axiomas da teoria dos conjuntos precisavam, de alguma maneira, justificar esse tipo de manobra numa prova, e o axioma da escolha era a melhor maneira.

Pensar sem recorrer a analogias é como viajar a pé. O sujeito chega aonde quer chegar, no fim das contas, mas cansa — e demora.

Há um jeito de ver centenas de analogias em ação: basta ler A República, de Platão, livro no qual Sócrates (personagem de Platão) encadeia analogias, símiles, e metáforas umas atrás das outras, no esforço hercúleo de justificar as duas teses centrais do livro: (1) É sempre melhor praticar a justiça do que a injustiça, mesmo que a justiça traga desonra ao praticante e que a injustiça traga honra; (2) Para praticar a justiça, o sujeito precisa aprender a desconsiderar muitos aspectos de todas as histórias oficiais que veio a amar desde criança: as histórias da escola, do teatro, e principalmente as histórias da religião.

A certa altura d’A República, por exemplo, Sócrates quer preparar o terreno para uma tese controversa: a de que, na cidade perfeita, as mulheres de espírito forte devem receber a mesma educação que os homens de espírito forte recebem, e que, caso uma mulher dessas se revele a mais capaz na arte de comandar a cidade, então ela tem o direito e o dever de exercer o comando. Para tanto, Sócrates compara a espécie humana a outras espécies.

Quem cria e vende cães de pastoreio não faz distinção entre machos e fêmeas, pois sabe que um bom pastor talvez seja macho, ou talvez seja fêmea. Quem cria e vende cavalos de corrida também não faz distinção entre machos e fêmeas, pois um cavalo veloz talvez seja macho, ou talvez seja fêmea. Portanto, dada a experiência que o homem tem com animais, sabe que um dom da Fortuna às vezes incide sobre um macho, e às vezes sobre uma fêmea. Visto que o homem também é um animal, então os vários dons da Fortuna às vezes incidem sobre homens, e às vezes sobre mulheres, e isso inclui o dom de comandar a cidade. Logo, diz o argumento de Sócrates, toda criança de espírito forte, seja menino, seja menina, deve receber o mesmo tipo de educação, para que, no futuro, as autoridades tenham a possibilidade de escolher a melhor pessoa possível para comandar a cidade, mesmo que, por um capricho da Fortuna, essa pessoa seja uma mulher.

Como deixar o argumento de Sócrates mais estrito? Um bom começo é recorrer a uma definição mais formal de analogia:

1. S é similar a T em certos aspectos (conhecidos).

2. Além disso, S tem a propriedade Q.

3. Logo, T também tem a propriedade Q, ou então T tem alguma propriedade Q’ que é similar a Q.

No linguajar técnico, S é o domínio de origem da analogia e T é o domínio de destino. Um jeito de usar a definição mais formal de analogia com o argumento de Sócrates é este: faça S = [Os indivíduos de uma espécie animal, sejam machos ou fêmeas, têm virtudes e vícios relativos ao estilo de vida daquela espécie]; faça T = [A espécie humana é uma espécie de animal, e os indivíduos da espécie humana têm virtudes e vícios relativos ao estilo de vida humano]. (As chaves servem para indicar que você está interessado não exatamente no texto ipsis litteris dentro das chaves, mas sim no significado do texto, mesmo que seja escrito com outras palavras.) Depois de definir S e T dessa maneira:

A1. S = [Os indivíduos de uma espécie animal, sejam machos ou fêmeas, têm virtudes e vícios relativos ao estilo de vida daquela espécie] e T = [A espécie humana é uma espécie de animal, e os indivíduos da espécie humana têm virtudes e vícios relativos ao estilo de vida humano] são similares em vários aspectos, pois, sendo o homem um animal entre outros animais, muitas das propriedades dos animais são também propriedades do homem.

A2. Além disso, S = [Os indivíduos de uma espécie animal, sejam machos ou fêmeas, têm virtudes e vícios relativos ao estilo de vida daquela espécie] tem ainda a propriedade Q = [As virtudes e vícios daquela espécie são distribuídos pela deusa Fortuna ao acaso entre machos e fêmeas].

A3. Portanto, T = [A espécie humana é uma espécie de animal, e os indivíduos da espécie humana têm virtudes e vícios relativos ao estilo de vida humano] também tem a propriedade Q = [As virtudes e vícios da espécie humana são distribuídos pela deusa Fortuna ao acaso em homens e mulheres], de modo que T também tem a propriedade Q’ = [Dado um grupo qualquer de meninos e meninas, a virtude de comandar a cidade talvez tenha sido dada pela Fortuna a uma menina]. E disso que segue que tal menina especial, que é uma menina de espírito forte, deve receber a mesma educação apropriada para comandar a cidade que um menino igualmente especial receberia.

Como pôde ver com o exemplo, toda vez que estuda algum tipo de lógica, fica mais competente na arte de usar analogias, ou de analisá-las, pois fica mais competente na arte de substituir coisas complicadas, como frases e parágrafos, por coisas um pouco mais simples, como letras e argumentos escritos com letras e outros símbolos lógicos. A substituição de coisas complicadas por coisas mais simples, que é a essência das várias lógicas, muitas vezes ajuda a identificar certas semelhanças estruturais entre o domínio de origem e o de destino, e com isso você ganha a capacidade de ver algo novo no domínio de destino, ou então ganha uma maior confiança sobre algo que já via no domínio de destino, mas sobre o qual alimentava dúvidas.

É importante dizer, porém: analogias são perigosas porque são sedutoras. Uma boa analogia convence, mesmo que a afirmação bancada pela analogia seja falsa. Um caso famoso é o de Thomas Reid, que, em 1785, usou uma analogia para defender a ideia de vida em outros planetas do sistema solar:

B1. A Terra é iluminada pelo Sol ao longo de toda a sua órbita, ela tem uma lua, e ela gira em torno de si mesma. Mas, quanto a esses aspectos, a Terra é similar aos outros planetas do sistema solar: cada um deles é iluminado pelo Sol ao longo de sua órbita, vários deles têm pelo menos uma lua, e eles também giram em torno de si mesmos.

B2. Além disso, há seres vivos na Terra.

B3. Logo, por analogia, também há seres vivos nos outros planetas do sistema solar. Nas palavras de Reid: “Esses planetas são, tal como é a nossa Terra, a morada de várias outras criaturas vivas.”

Bem, como o leitor sabe, até hoje ninguém achou seres vivos em lugar nenhum do sistema solar — nem mesmo uma colônia de micróbios unicelulares. (Não quer dizer que não existam, mas, até agora, ninguém achou nenhuma colônia.)

O filósofo escocês David Hume (1711-1776) tinha um conselho para reduzir a probabilidade de um erro como o de Reid: para que uma analogia funcione bem, você deve conhecer apropriadamente não apenas o domínio de origem, mas também o de destino; ou, em outras palavras, o domínio de destino não pode ser um imenso mistério, porque, se for, você não tem condições de saber se a propriedade Q, que se aplica ao domínio de origem, também se aplica ao de destino. Nos tempos de Hume, circulavam várias versões de um argumento cujo propósito era mostrar que o universo tinha sido criado por Deus, e que um dia teria fim graças à vontade de Deus.

C1. As coisas humanas e as coisas da Natureza têm uma propriedade em comum: elas cumprem uma função. Um relógio serve para marcar o tempo; uma semente serve para dar origem a uma nova árvore. Uma ponte serve para atravessar um fosso; os olhos servem para ver.

C2. Além disso, as coisas humanas têm começo e fim. O homem cria uma ponte, mas um dia ela cai. O homem cria um relógio, mas um dia ele pára e tem de ser jogado no lixo.

C3. Logo, por analogia, as coisas da Natureza têm começo e fim. Em particular, a própria Natureza tem começo e fim, e portanto Deus é a causa do começo e do fim da Natureza — pois quem mais, senão Deus, poderia determinar o começo e o fim da Natureza?

Hume se opôs a esse argumento dizendo o seguinte: o homem tem experiência com as coisas humanas. Tem experiência com a concepção e a construção de casas, cadeiras, pontes, relógios. Mas não tem absolutamente nenhuma experiência com a criação ou destruição de universos — o homem nunca viu um deus criando ou destruindo um universo, e, para aplicar o argumento C1C3, o ideal seria que tivesse visto vários deuses criando ou destruindo vários universos. Logo, não sabe nada sobre isso, e não pode de maneira nenhuma garantir que a analogia se aplica.

Sócrates não cometeu o erro de Thomas Reid. N’A República ele usa, como analogia, coisas que seus interlocutores conhecem bem: cães de guarda, pássaros cantores, cavalos; o timoneiro num navio, os construtores de uma cidade; um lutador, um sapateiro; um pai severo, um filho invejoso. Mesmo sua analogia mais famosa, e muito sofisticada, foi toda explicada com elementos bem conhecidos: tudo o que constitui o Mito da Caverna é fácil de visualizar e de entender. E foi assim, com analogia simples atrás de analogia simples, que Sócrates deixou várias pulgas para coçar as orelhas da posteridade, entre as quais estas duas: (a) O melhor que um ser humano pode fazer ao longo da vida é praticar a justiça, prática essa guiada pela melhor sabedoria que possa amealhar; (b) Os líderes da cidade devem ser aqueles que melhor sabem praticar a justiça.

Até quem não gosta de Sócrates acaba confessando o poder que A República exerce. Simon Blackburn, filósofo britânico, professor aposentado da Universidade de Cambridge, admirador de Hume e de Nietzsche, escreveu um livro só sobre A República, no qual escreve no prefácio:

“Nunca achei Platão um autor particularmente agradável.”

E depois escreve na introdução, ao comentar a mania de Platão de escrever por meio de diálogos:

“Platão (e supostamente também Sócrates), embora tenha doutrinas a ensinar, por algum irritante motivo prefere revelá-las apenas por partes, um pouquinho de cada vez, numa espécie de striptease intelectual.”

Mas por fim escreve no último parágrafo do livro:

“Continuamos a venerar os homens de [espírito forte], enquanto o falso prazer e os falsos objetivos são os principais produtos do entretenimento popular e da formação mental de nossos filhos. Hoje estamos menos confiantes do que Bacon, Pope, ou Macaulay de que a revolução científica por si mesma pode garantir a pura libertação e o puro progresso. Numa época em que os recursos energéticos do mundo desaparecem; em que muitos dos nossos recursos culturais, modelados desde o Iluminismo, também parecem se esgotar; quando o pensamento sobre a realidade básica torna-se apenas uma opção de vida entre outras, e como tal é encarado por estadistas; quando a fúria religiosa é tida como virtude; quando a democracia é vendida à plutocracia em todo o mundo ocidental; quando os políticos riem abertamente da ideia de um código de ética do serviço público na administração ou nas outras profissões, preenchendo os cargos mais altos com gente vendida e doutores de araque — o nosso futuro talvez dependa do quão profundamente conseguimos responder às questões colocadas pela República.” {FIM}



Observações:

1. Para saber mais sobre supertarefas, veja a postagem Um deus tem o poder de contar todos os números.

2. Hoje em dia, o matemático menciona o axioma da escolha por uma questão de etiqueta intelectual — pois, numa demonstração, todo trecho no qual o matemático tenha recorrido ao axioma da escolha é necessariamente um trecho de demonstração não construtiva, e é bom que o leitor da demonstração tenha a consciência disso.

3. Em 1965, o matemático Paul Cohen provou que o axioma da escolha é independente dos outros axiomas da teoria axiomática dos conjuntos, isto é, não pode ser deduzido desses outros axiomas.

4. Ao longo do texto, usei “espírito forte” para traduzir a palavra grega “thumos”, que significa, mais ou menos, “entusiasmo com energia com valentia”.

5. O livro de Blackburn se chama A República de Platão: Uma Biografia, e você pode comprá-lo aqui. É muito bem escrito.

6. Hoje, segundo quem entende dessas coisas, a melhor tradução d’A República para o inglês contemporâneo é a de Christopher Rowe, publicada pela Penguin em 2012. É a que tenho usado. Já procurei alguma boa tradução brasileira, que esteja à venda nas livrarias, mas até agora só passei raiva com a falta de capricho. Seria tão bom se houvesse uma tradução brasileira criteriosa, com linguagem de bom gosto, contida num livro bem editado e bonito… Se quiser uma tradução bem-feita para o português de Portugal, numa edição bem cuidada, baixe aqui a tradução de Maria Helena Rocha Pereira, posta à disposição do internauta pela Fundação Calouste Gulbenkian.

7. Você leu no texto: “Ora, no começo do século 20, quando matemáticos do mundo inteiro trabalhavam para tornar mais explícitas as regras da lógica matemática […]” Esse trabalho começou no século 19, virou obsessão mundial nas primeiras décadas do século 20, avançou muito, mas ainda não acabou. Hoje a humanidade sabe muito mais sobre as lógicas empregadas na matemática, mas ainda falta bastante coisa para explicitar.

8. A Fortuna é uma deusa romana, e não grega. Logo, Sócrates não menciona a deusa Fortuna n’A República. (Aliás, até onde sei, também não menciona Tique, a deusa grega da sorte e do azar.) Mas o leitor brasileiro entende “dom da Fortuna” melhor do que entenderia “dom de Tique”.

9. Quando Sócrates usa a palavra “justiça”, quer dizer algo diferente do significado comum: uma pessoa só pode praticar uma ação justa quando se deixa guiar racionalmente pelo conhecimento (e não por crença ou opinião, mesmo que verdadeiras), pela bondade, e pela beleza.

10. Quando escrevo “homem”, quero dizer o conjunto {x : x é um indivíduo da espécie humana}.

11. “O Sol jamais se põe sobre a leitura de Platão. Sempre alguém, em algum lugar, está lendo A República.” — Myles F. Burnyeat (1939-2019), no artigo “Plato as Educator of 19th-century Britain”, publicado pela Routledge em 1998.