Martin Buber, matemática, e seres espirituais


{1}/ Um problema para começar

Problema. Imagine que há quatro cartas sobre a mesa, e cada uma delas tem uma letra de um lado e um inteiro positivo do outro. Eis o que você vê:

A, M, 3, 6

Qual carta ou quais cartas deve virar, de modo que possa ver o outro lado, para assim testar a verdade da seguinte afirmação condicional:

Condição. Se há uma vogal num lado da carta, então há um inteiro ímpar do outro lado.

Seu problema é testar a verdade da condicional (ou da implicação) virando o menor número possível de cartas.


{2}/ Diálogo à moda de quase uma briga

“Eu acho que terei de virar as quatro cartas”, disse Implicação-L. “Só assim posso ter a certeza de que a condição é verdadeira.”

“Por que quatro cartas? Me explica isso melhor”, pediu Implicação-T.

“Ora, tenho de virar a carta A para ver se há um número ímpar do outro lado. Se não houver, se houver um par, a condição é falsa. Mas também tenho de virar a carta M, pois, se do outro lado houver um número ímpar, a condição é falsa. Tenho de virar a carta 3, porque, se houver uma consoante do outro lado, a condição é falsa. Mas também tenho de virar a carta 6, para ver se do outro lado há uma vogal; se houver, a condição é falsa. Portanto, para ter a mais absoluta certeza de que a condição é verdadeira, tenho de virar as quatro cartas.”

“Mas que definição você está usando de ‘afirmação condicional’, ou então de ‘implicação’?”

“Ora”, respondeu Implicação-L, “se A implica B, isto é, se digo assim, ‘Se A, então B’, quero dizer que sempre que acontece A, também acontece B. Ou então que sempre que tenho A, também tenho B. Ouvi dizer que os filósofos têm um jeito engraçado de dizer isso: ‘Se A obtém, então B também obtém.’ E isso quer dizer que, se constato B, é porque antes de B houve A.”

“Acho que você está confundindo ‘implicação’ com ‘relação de causa e efeito’. Mas uma coisa não tem nada a ver com a outra. Por exemplo, posso dizer assim: ‘Se o calor aumenta, vende-se mais sorvete.’ Isso é uma afirmação condicional; isso é uma implicação. Mas, se constato que as vendas de sorvete aumentaram, não necessariamente isso aconteceu porque o calor aumentou. Talvez os fabricantes de sorvete tenham combinado uma incrível promoção para comemorar a Semana Mundial do Sorvete. Talvez Hollywood tenha lançado um filme muito popular sobre sorvete. Sei lá.”

“Qual é a sua definição de ‘implicação’?”

“Uma implicação é falsa se e somente se o enunciado antecedente é verdadeiro e o consequente é falso. Nos demais casos, a implicação é verdadeira.”

“Se for assim”, disse Implicação-L, “então uma implicação é verdadeira se o antecedente é falso, mas o consequente é verdadeiro?”

“Sim.”

“Portanto, a afirmação condicional ‘Se Brasília não é a capital federal do Brasil, então Brasília é a capital federal do Brasil’ é verdadeira?”

Implicação-T pôs a mão direita sobre o peito e anuiu com a cabeça, num gesto de submissão. “Tenho de admitir que sim.”

“Isso não faz o menor sentido.”

“Mas essa é a definição matemática de implicação. Melhor dizendo, essa é a definição usada por todos os especialistas em lógica.”

“Contudo”, disse Implicação-L, “quando alguém usa a palavra ‘implicação’, quando diz que A implica B, não está pensando nessa definição usada pelos lógicos ou pelos matemáticos. Quando alguém diz que A implica B, está dizendo que existe algum tipo de conexão entre A e B, isto é, está dizendo que A e B estão de algum modo ligados.”

“Sim, é verdade, mas o nome disso não é ‘implicação’, mas sim ‘implicatura conversacional’. Quando uma pessoa comum diz que A implica B, em geral não afirma uma implicação, mas usa uma implicatura conversacional; talvez esteja até afirmando uma relação de causa e efeito. Mas a definição de ‘implicação’ é a que mencionei.”

“Bom”, disse Implicação-L, “eu sou uma pessoa comum, uso a expressão ‘A implica B’ com alguma frequência, e nem sabia que esse termo, ‘implicatura conversacional’, existia. Mas, segundo você, minha solução está errada. Me diga, portanto, quais cartas eu deveria virar.”

“Só duas: as cartas A e 6. Se não houver um número ímpar atrás de A, a implicação é falsa. Se houver uma vogal atrás de 6, a implicação é falsa. A questão é que, para testar uma afirmação condicional, você precisa achar um contraexemplo à condição, e as cartas A e 6 forneceriam um contraexemplo. Você não precisa virar a carta M, pois a implicação é silenciosa sobre as consequências de haver uma consoante num dos lados da carta. E também não precisa virar a carta 3, porque, se houver uma vogal do outro lado, essa carta confirma a condição; mas, se houver uma consoante, essa carta não contradiz a condição — pois, de novo, a implicação é silenciosa sobre haver uma consoante num dos lados da carta. A implicação não diz que, se houver uma consoante num dos lados da carta, daí não pode haver um número ímpar do outro lado. A implicação diz apenas que, se há uma vogal de um lado, então há um inteiro ímpar do outro; se a implicação é verdadeira, ela não diz nada além disso.”


{3}/ Martin Buber e a esfera espiritual

Tive a ideia de escrever o diálogo entre Implicação-L (a ideia de implicação dos leigos) e Implicação-T (a ideia de implicação dos técnicos, tais como o matemático) depois de ler o livro Eu e Você, de Martin Buber (1878-1965), publicado pela primeira vez em 1923. Buber disse que os seres humanos vivem em três esferas: (1) a esfera da Natureza; (2) a esfera dos seres humanos; (3) e a esfera dos seres espirituais. Citando Buber diretamente:

“Em cada esfera, por meio de tudo aquilo que se torna presente para nós, olhamos para o séquito do Você eterno. […] Em todo Você nós nos dirigimos ao Você eterno, em cada esfera de acordo com suas maneiras. […]”

“A terceira esfera é a esfera dos seres espirituais. Aqui a relação [entre Eu e Você] está envolta em nuvens, mas revela a si mesma; ela não tem linguagem, mas cria linguagem. Não ouvimos nenhum Você, mas mesmo assim sentimos que se dirigem a nós; [e por causa disso] criamos, pensamos, agimos; com todo o nosso ser dizemos a palavra básica [Eu-Você], incapazes de dizer Você com nossa boca.”

Imagine um especialista em computadores que, enquanto assiste a uma peça de teatro, de repente tem uma ideia: “Como seria a vida de uma pessoa que sabe o futuro, isto é, como seria a vida de uma pessoa que conhece aquilo que é inevitável?” Isso aconteceu com Ted Chiang, que, depois do estalo, passou anos tentando escrever a estória, até que publicou “História de sua Vida” em 1998. (Em 2016, o cineasta Denis Villeneuve lançou o filme A Chegada, tendo como base a estória de Chiang.)

Para Martin Buber, um ser espiritual se dirigiu a Chiang enquanto assistia à peça. Chiang o levou a sério, isto é, diante dele pronunciou a palavra básica, Eu-Você; e durante anos dialogou com esse ser espiritual, até que conseguiu transformá-lo em algo real; até que conseguiu colocá-lo no mundo na forma de algo palpável, que é uma estória publicada num livro; até que conseguiu transformá-lo em linguagem. Agora, tendo o ser espiritual se transformado em linguagem corpórea graças à relação com Chiang, ganhou a chance de interpelar outras pessoas — outro homem (ou mulher) comprará o livro e, diante do ser espiritual materializado em “História de sua Vida”, terá a oportunidade de dizer Você e de estabelecer uma relação com ele; e dessa relação entre os dois surgirá um mundo.

Assim, seguindo Buber, você, leitor, quando topa com o problema das cartas, topa com um ser espiritual. O diálogo da seção 2, entre Implicação-L e Implicação-T, representa o tipo de conversa interior que todo amante de matemática terá com o problema. Se o leitor não conhece a definição técnica, provavelmente vai responder como Implicação-L, ou então vai virar as cartas A e 3 — e, ao consultar a resposta certa, verá que errou. E daí lerá sobre o assunto para saber por que errou e, de novo, terá uma conversa interior como a que ocorreu entre Implicação-L e Implicação-T. Uma definição técnica sempre surge desse tipo de diálogo com seres espirituais — pois uma definição técnica é um tipo de linguagem, e todo ser espiritual almeja se transformar de algum modo em linguagem.

Alfred Tarski, no livro Introduction to Logic and to the Methodology of Deductive Sciences, diz que o significado da expressão “se x, então y” na linguagem cotidiana é muito diferente de seu significado na linguagem técnica. No dia a dia, se alguém diz “se x, então y”, é porque acredita em algum tipo de conexão entre x e y. “Esse é um fenômeno psicológico”, escreveu Tarski. Se um leigo diz “se x, então y”, é porque acredita que x e y são sempre igualmente verdadeiros, ou então igualmente falsos. (Portanto, o leigo diz “x implica y” quando, se conhecesse definições técnicas, diria “x se e somente se y”. Para usar a linguagem de David Hume, o leigo diz “x implica y” porque acredita numa conjunção frequente entre x e y, ou então numa conjunção constante.) Escreveu Tarski: “Essa conexão entre x e y é muito difícil de caracterizar de modo geral, e somente algumas vezes sua natureza nos é mais ou menos clara.” 

É por tudo isso que o significado cotidiano de “se x, então y” não serve para o cientista e o matemático. Como eles são pesquisadores, como estão sempre investigando fenômenos desconhecidos, não poderiam usar a expressão “se x, então y” se fossem obrigados a explicar detalhadamente qual é a conexão misteriosa entre x e y, pois, ora bolas, é justamente isso que estão tentando descobrir. Depois de muitas idas e vindas, depois de muito diálogo com seres espirituais, o lógico fixou o significado de “se x, então y” assim:

a) Se você aceita a implicação como sendo verdadeira, e além disso também aceita o enunciado antecedente, não tem escolha senão aceitar também o consequente. (O nome técnico desse raciocínio é modus ponens.)

b) Além disso, se você aceita a implicação como sendo verdadeira, mas rejeita o enunciado consequente como falso, não tem escolha senão rejeitar também o antecedente. (Modus tollens.)

Ou seja, para estabelecer o significado de “se x, então y”, que é o significado de “x implica y”, o lógico partiu do significado do dia a dia e chegou a algo mais simples e claro: a expressão “se x, então y” só é falsa quando o enunciado x é verdadeiro, mas y, falso; nos demais casos, é verdadeira. O lógico se livrou de levar em consideração qualquer conexão que possa haver entre x e y para levar em consideração tão somente o valor de verdade dos enunciados antecedente e consequente. Para deixar claro o que fez, parou de chamar “se x, então y” de “implicação”, pura e simplesmente, e passou a chamá-la de “implicação material”.

Quando o professor apresenta o problema das cartas ao aluno (ou qualquer problema semelhante), e o aluno não atina com a “resposta certa”, o professor não pode dizer que ele está errado. Pois, quase sempre, não está. Ao contrário, está simplesmente usando a definição cotidiana de “se x, então y”, pois nunca parou para pensar na enorme quantidade de vezes que o homem diz isso acreditando numa conexão entre x e y, sem, contudo, possuir uma explicação dessa conexão. Ao parar para refletir sobre esse problema, isto é, ao dialogar com esse ser espiritual, o aluno fica pronto para cocriar a definição técnica. O professor que diz, “Você errou”, faz o aluno perder a oportunidade desse diálogo tão importante com seres espirituais — e daí, como diz Buber, algo nele não cria linguagem, e ele próprio não pensa, cria, age; algo nele surge natimorto e ele se torna hesitante.

Às vezes, Martin Buber é classificado como um teólogo judeu; às vezes, como um filósofo existencialista. É mais correto classificá-lo como um autor erudito, que, entre muitos outros assuntos, explorou temas religiosos; e que, além disso, pode ser classificado como um autor de inclinação existencialista. Buber insistia em achar no presente, no aqui e agora, qualquer beleza e redenção que possa haver; insistia em desconsiderar qualquer tipo de esperança em qualquer tipo de além — seja um além no passado, um além no futuro, ou um além no além mesmo. Buber dizia que, para ele, o tetragrama YHWH não significava “Jeová”, mas sim “Ele está aqui, Ele está presente.” Dizer Você para a Natureza, para outro ser humano, ou para um ser espiritual é dizer Você a Deus.

Desse diálogo com seres espirituais, em particular, surgem os melhores sistemas axiomáticos e os melhores teoremas, assim como os melhores poemas, romances, tratados filosóficos, músicas, filmes, programas de TV, leis, prédios, pontes, cidades, instituições, foguetes, estações espaciais. A pesquisa sobre a lógica das afirmações condicionais também é feita por gente que se entrega, inteiramente, plenamente, ao diálogo com seres humanos e espirituais. Tal capacidade precisa ser desenvolvida na criança: ela tem de aprender a dialogar de corpo e alma, com tudo de si compenetrado no diálogo, para que possa transformar possibilidades em realidade. Pois, como já ensinava Aristóteles, viver bem é uma questão de aprender a transformar as mais divinas possibilidades em coisas reais. “Você não sabe que Deus também precisa de você?”, pergunta Buber a certa altura de Eu e Você. “Sim, não sabe que Deus, na completude de sua eternidade, precisa de você? De que forma o homem existiria se Deus não precisasse dele, e de que forma você existe? Você precisa de Deus para ser, e Deus precisa de você — para aquilo que é o significado de sua vida. […] A criação — ela acontece conosco, ela irrompe dentro de nós; trememos e esmorecemos, nós nos submetemos. A criação — participamos dela, encontramos o criador, e nos oferecemos a ele em sacrifício, ajudantes e companheiros.” {FIM}


Observações:

1. O problema das quatro cartas foi criado pelo psicólogo Peter Wason em 1966. Desde então, pesquisadores têm aplicado esse problema a milhares de voluntários. A maioria daqueles que não têm treinamento técnico erra na resposta, como fez Implicação-L. No entanto, como diz o filósofo Michael Beaney, a maioria absoluta dos voluntários no fim das contas compreende os motivos pelos quais a resposta errada é errada e a certa é certa. “Esse é um resultado muito significativo”, escreveu Beaney em Analytic Philosophy: A Very Short Introduction. “Ele mostra que, mesmo que tenhamos cometido um erro de pensamento em alguma situação, podemos aprender a reconhecer o erro — e portanto mostra que todos somos capazes de raciocínio lógico.”

2. O livro de Buber, Ich und Du, é difícil, mas estimulante: muda o modo como o leitor olha o mundo. Eu li a excelente tradução para o inglês de Walter Kaufmann, I and Thou, cujo prefácio é nota 10. (Não leio alemão, mas sei que ela é excelente porque Rafael Buber, o filho de Martin Buber, falava inglês bem e a classificou como excelente.) Estritamente falando, a tradução de Kaufmann para Ich und Du é I and You (Eu e Você), mas como o título I and Thou ficou famoso nos Estados Unidos graças a uma tradução anterior, Kaufmann e Rafael Buber decidiram manter I and Thou na capa e I and You no miolo.

3. Se você gosta de ficção científica e de fantasia, o livro de Ted Chiang, Stories of Your Life and Others, é entretenimento de ótima qualidade. Chiang entende de computação, matemática, e física, e além disso escreve bem.

4. Há muita pesquisa em curso sobre a ideia de implicação. Lógicos e filósofos tentam criar uma lógica (sintaxe e semântica) que abarque outras concepções de implicação além da concepção de implicação material. Entender todos os significados possíveis do termo “se x, então y” exige entender todos os significados possíveis do termo “condições necessárias e suficientes”, o que ainda é um problema filosófico complicado.

5. (6 Junho 2022) Na publicação original desta postagem, havia um erro no enunciado do problema. Quem me avisou foi o leitor Paulo Sidarta Dysman Gomes. O enunciado original não deixava claro se podia haver uma carta com uma letra de um lado e outra letra do outro lado; se esse fosse o caso, o leitor teria de virar também a carta M, para ver se do outro lado há uma vogal.