Naturalismo é matemática


Autor: Eric Steinhart, professor de filosofia na Universidade William Paterson, especializado em investigações metafísicas por meio de métodos matemáticos.

Este artigo foi publicado no livro A Companion to Atheism and Philosophy, organizado por Graham Oppy. Malden, MA: Wiley-Blackwell, 2019, págs. 152-66. Título original do artigo: “Naturalism”.

Para ler o artigo no original em inglês, clique aqui. As referências bibliográficas começam na página 13.


Resumo. Você pode classificar os vários tipos de naturalismo em dois tipos principais. O naturalista dogmático define a naturalidade [a qualidade daquilo que é natural] com algum tipo de regra que se aplica às coisas. O naturalista progressivo define a naturalidade em termos de um programa de pesquisa. As várias ciências servem de exemplo para esse programa de pesquisa: progressivamente o naturalista define as coisas de modo cada vez mais preciso, usando a matemática. A maioria dos conceitos religiosos tradicionais não se encaixa bem em qualquer tipo de naturalismo. Mas o naturalista progressivo está aberto a fazer revisões naturalistas dos conceitos tradicionais. Ele não vincula a religião ao passado, mas acolhe novos naturalismos religiosos e espirituais.

Palavras-chave. Naturalismo; dogmatismo; programa de pesquisa; progresso; formalização; matemática.

1. Introdução

O naturalismo é crucial para muitos debates sobre Deus. Existem várias maneiras diferentes de definir naturalismo, mas você pode colocá-las em duas categorias principais. A primeira é dogmática: o naturalista dogmático tenta definir a natureza ou a naturalidade de acordo com alguma regra fixa. A segunda é progressiva: o naturalista progressivo vê o naturalismo como um programa dinâmico de pesquisas, sem quaisquer doutrinas fixas sobre a natureza ou a naturalidade. Depois de rever brevemente os muitos problemas do naturalismo dogmático, que são bem conhecidos, vou colocá-lo de lado em favor do naturalismo progressivo.

O naturalista progressivo tem a mente aberta — não rejeita nenhum conceito por causa de sua história. Está aberto a cordas [na física] e a almas, a supersimetrias e a espíritos. Ele (ou ela) exige apenas que cada conceito faça parte de um certo tipo de programa de pesquisas, o tipo que você frequentemente encontra nas várias ciências. Conforme o modo como você define almas ou espíritos, pode naturalizá-los; mas, conforme o modo, não pode. Alguns deuses são mais naturais do que outros. As exigências do naturalista progressivo são mínimas, mas, mesmo assim, quando estuda os conceitos associados com as antigas religiões, invariavelmente não consegue fazê-los satisfazer nem mesmo tais exigências mínimas. Por isso, o naturalista progressivo é extremamente cético a respeito das antigas religiões. Contudo, o naturalismo progressivo é dinâmico. O naturalista progressivo acolhe com satisfação qualquer esforço para construir novos naturalismos religiosos ou espirituais.

2. Naturalismo dogmático e naturalismo progressivo

Se você adota uma abordagem dogmática ao naturalismo, procede desta maneira: define a natureza e depois defende a definição. Sua definição é uma teoria da natureza. O primeiro problema de adotar uma abordagem dogmática é que ela se torna refém de suas origens, e você corre o risco de se opor ao progresso científico.1 Sua teoria pode descambar para ideologia.

Suponha que João defina naturalismo assim: “Um naturalista afirma que a natureza foi criada por Deus de acordo com a história no Gênesis.” Durante muito tempo, essa foi nossa cosmologia mais científica. Contudo, conforme os cientistas fizeram progressos, passaram a desafiar essa cosmologia. Portanto, ou João defende o mito do Gênesis e ataca a ciência ou João abandona seu naturalismo. Suponha que Davi defina naturalismo assim: “A natureza é tão somente nosso universo físico.”2 Porém, desde que Davi compôs sua definição, muitos outros físicos propuseram teorias nas quais existem infinitos outros universos.3 Assim, ou Davi se opõe a tais teorias ou tem de abandonar seu naturalismo. Suponha que Helena defina naturalismo assim: “A natureza contém apenas objetos concretos.”4 Contudo, alguns físicos compuseram argumentos para dizer que cada coisa concreta é na verdade idêntica a um objeto abstrato puramente matemático.5 Agora, ou Helena se opõe a essa nova física ou abandona seu naturalismo.

Um dogmatista pode dizer que é capaz de evitar tais problemas históricos por meio de teorias mais sofisticadas da natureza. Infelizmente, tais sofisticações produzem seus próprios problemas. Suponha que Suzana queira evitar problemas históricos ao definir naturalismo desta maneira: “O naturalista afirma que nossa melhor ciência contemporânea estabelece o que é natural.” Isso significa que a natureza muda toda vez que a ciência muda; mas isso é implausível. Por fim, Elisabete pretende evitar todos esses problemas ao definir naturalismo assim: “O naturalista diz que a natureza é definida pela nossa teoria científica ideal & última.”6 Lamentavelmente, ninguém sabe nada sobre essa teoria científica supostamente perfeita. Portanto, esse naturalismo escatológico é vazio.

O naturalista dogmático sofre porque vê seu naturalismo como uma doutrina. Não há necessidade, contudo, de pensar em naturalismo como sendo doutrina. Para uma abordagem mais progressiva, o naturalista aborda o naturalismo como um programa de pesquisa.7 Fazendo parte de um programa de pesquisa, o naturalista se esforça para naturalizar todos os domínios do pensamento e da atividade humanos. O naturalista progressivo trabalha para substituir teorias e práticas menos naturais por teorias e práticas mais naturais; ele caminha no sentido indicado por suas teorias mais naturais — ele segue a naturalidade teórica aonde quer que ela o conduza. Se algum dia a ciência mostrar que, em última instância, a natureza é feita de almas minúsculas (como as mônadas de Leibniz), então o naturalista progressivo não se oporá à ciência. O naturalista progressivo não tem fé inabalável em qualquer teoria fixa da natureza. Ao contrário, para ele a natureza está sempre aberta a novas investigações.

Programa de pesquisa. É um termo criado por Imre Lakatos (1922-1974), um competente filósofo da ciência. Um programa de pesquisa é uma comunidade profissional de cientistas que conduz pesquisa básica sobre um assunto x seguindo métodos explícitos por meio dos quais conceber crenças e revisá-las, sendo que os próprios métodos estão constantemente sob análise. Às vezes, “programa de pesquisa” aparece como “programa de investigações científicas”. A física e a matemática são exemplos clássicos de programa de pesquisa.

Notas:

1. Rea usa o materialismo para ilustrar esse ponto. Muitos naturalistas são materialistas. Mas “Como muitos naturalistas já afirmaram, a ciência talvez venha a descobrir que o materialismo é falso”; se isso acontecesse, então “o naturalismo seguiria a ciência e rejeitaria o materialismo? Ou seguiria o materialismo ao ser rejeitado pela ciência?” (2002: 23). Rea argumenta que o naturalismo “deve ser compatível com qualquer coisa que a ciência possa nos dizer sobre a natureza ou a sobrenatureza. Assim, nenhuma versão do naturalismo pode incluir qualquer tese substantiva” (2002: 55).

2. David Armstrong define o naturalismo como “a doutrina segundo a qual a realidade consiste em nada mais do que um único sistema espaço-temporal abrangente” (1978: 261). Ele diz que todas as coisas nesse sistema interagem causalmente. Draper define a natureza como “o universo espaço-temporal de entidades físicas juntamente com quaisquer entidades que sejam ontológica ou causalmente redutíveis a tais entidades físicas” (2005: 278). Para definições semelhantes, ver Rea (2002: 55).

3. Veja Tegmark (2003) para uma discussão sobre universos possíveis na física atual.

4. Hartry Field é um nominalista (1980); os nominalistas rejeitam objetos abstratos.

5. Tegmark diz que todas as coisas físicas são objetos matemáticos (1998).

6. Moser e Yandell usam a teoria verdadeira, única e última, para definir o naturalismo. Eles dizem que o naturalismo é a visão de que “toda entidade real consiste ou está de alguma forma onticamente fundamentada nos objetos apoiados pelas ciências empíricas por hipótese já completadas” (2000: 4). Para definições semelhantes, ver Rea (2002: 59).

7. Os progressistas concordam com Giere: o naturalismo deve ser entendido “não em termos de teses sobre o mundo, mas em termos de um conjunto de estratégias a serem usadas na busca por uma compreensão do mundo” (Giere, 1999: 70). Segundo um argumento de Rea (2002), o naturalismo é um programa de pesquisa. Envolve regras para a formação de crenças e para sua revisão periódicas.

3. A naturalidade é uma propriedade de teorias

Um naturalista dogmático diz que a naturalidade é uma propriedade das coisas. Por exemplo, partículas materiais [fótons, prótons, nêutrons, elétrons, neutrinos] são naturais, enquanto fantasmas ou deuses imateriais não são [são desnaturais]; coisas físicas envolvidas em inter-relações causais são naturais, enquanto objetos matemáticos não envolvidos em tais inter-relações são desnaturais. O naturalista progressivo, contudo, não faz da naturalidade uma propriedade das coisas; ao contrário, ele afirma que a naturalidade é uma propriedade de teorias. As teorias são mais ou menos naturais, e portanto podem ser comparadas em termos de sua naturalidade. Por exemplo, a teoria da combustão por oxigênio é mais natural que a teoria do flogisto; a evolução das espécies por seleção natural é mais natural que projeto inteligente [intelligent design]; a lógica de predicados de primeira ordem é mais natural que a lógica de Aristóteles.

O grau de naturalidade de qualquer termo de uma teoria é igual ao grau de naturalidade da teoria na qual o termo está definido. Assim, se a teoria da combustão por oxigênio é mais natural que a teoria do flogisto, então o termo “oxigênio” é mais natural que o termo “flogisto”. Dizem que os antigos taoístas postularam uma teoria da criação no qual um Ovo Cósmico era o objeto original. Se a teoria moderna do Big Bang é mais natural que as teorias taoístas de criação, então o termo “Big Bang” é mais natural que o termo “Ovo Cósmico”. Visto que os termos de qualquer teoria herdam sua naturalidade da própria teoria, todos os termos empregados numa mesma teoria são igualmente naturais. Por exemplo, as teorias quânticas de campos contêm termos que, aparentemente, se referem a partículas, forças, campos, pontos no espaço-tempo, funções, vetores, números, e assim por diante. Todos esses termos são igualmente naturais. Nas teorias quânticas de campos, os termos que aparentemente se referem a números são tão naturais quanto os termos que aparentemente se referem a partículas materiais elementares.

Um naturalista progressivo acredita que toda tentativa de definir a natureza produz uma teoria sobre a natureza. Quando qualquer pessoa interage com a natureza, sendo ela própria uma parte da natureza, produz teorias sobre a natureza. Você pode estudar as características lógicas e linguísticas de tais teorias. Pode comparar teorias mais recentes com teorias mais antigas. Pode estudar as maneiras como as teorias evoluem. Por exemplo, pode estudar a evolução das teorias físicas desde os antigos gregos até os físicos atuais, especializados em teoria das cordas. Contudo, ninguém pode comparar sua teoria diretamente com a natureza. Ninguém consegue medir até que ponto uma teoria descreve verdadeiramente a natureza. Visto que você não pode comparar as teorias humanas diretamente com a natureza, a naturalidade de qualquer teoria não pode ser uma característica extrínseca da teoria — não pode ser qualquer característica semântica da teoria.

Visto que a naturalidade de uma teoria qualquer não depende da sua semântica, também não depende da verdade. Teorias falsas podem ser tão naturais quanto teorias verdadeiras. Para ilustrar esse ponto, considere as duas melhores teorias físicas atuais, a mecânica quântica e a relatividade geral. Elas são mutuamente contraditórias. Pelo menos uma delas é falsa; provavelmente, ambas são falsas. Mas e daí? Na visão do naturalista progressivo, as duas teorias se mostram extraordinariamente naturais, e isso independe do valor de verdade de cada uma delas. O naturalista progressivo, nem preciso dizer, não aceita teorias falsas. Mas ele reconhece que, com frequência, teorias subsequentes e mais precisas incluem ideias de teorias precedentes e falsas.

Visto que a naturalidade de uma teoria qualquer não depende de sua semântica, também não depende do grau de confirmação da teoria. Teorias confirmadas parcamente podem ser tão naturais quanto teorias confirmadas fartamente. Afinal, para confirmar uma teoria, o naturalista precisa realizar experimentos; todo experimento, porém, é limitado pelas tecnologias disponíveis. Talvez seja tecnologicamente impossível testar uma teoria que vise conciliar a relatividade geral com a mecânica quântica — talvez seja impossível fabricar instrumentos científicos precisos o bastante para realizar o teste. Talvez se revele impossível obter qualquer tipo de confirmação para tais teorias conciliatórias. Ainda assim, no entanto, uma dessas teorias não confirmadas pode ser bastante natural.

A naturalidade não tem nada a ver com verificação ou com falsificação. O naturalista progressivo rejeita o positivismo. Se a naturalidade exige qualquer tipo de confirmação, então a naturalidade está dogmaticamente ligada ao empirismo. Mas talvez o progresso da ciência refute o empirismo. A física que visa conciliar a mecânica quântica com a relatividade geral é quase que totalmente matemática. Suponha que alguém, partindo de princípios primeiros puramente formais, use tão somente a razão para deduzir alguma teoria elegante que, mais tarde, se revele maximamente bem confirmada. As evidências empíricas não tiveram papel na criação dessa teoria. O seu elevado grau de confirmação revela-se inexplicável do ponto de vista empírico. Um naturalista progressivo não rejeitará essa teoria elegante apenas porque não foi inferida a partir de observações empíricas. Ele dirá que ela é uma teoria natural.

Visto que a naturalidade de qualquer teoria não depende da sua semântica, o naturalista progressivo é agnóstico quanto à existência. Nossa mais natural teoria da realidade talvez seja verdadeira, ou talvez não; portanto, os objetos aos quais ela se refere talvez existam, ou talvez não. O naturalista progressivo afirma apenas que, se os termos definidos numa teoria qualquer se referem a isso ou aquilo, então isso e aquilo são tão naturais quanto a própria teoria que os define. Se as variáveis e os termos técnicos se referem a coisas, então se referem a coisas naturais; se os predicados se referem a propriedades e relações, então se referem a propriedades e relações naturais.

4. Naturalidade e formalização

Visto que a naturalidade de uma teoria qualquer não pode ser uma característica extrínseca da teoria, deve ser então alguma característica intrínseca. Visto que a naturalidade de uma teoria qualquer não pode ser uma característica semântica da teoria, deve ser então alguma das características sintáticas da teoria. Portanto, você pode avaliar a naturalidade de uma teoria qualquer simplesmente ao olhar para ela ou então ao compará-la com outras teorias. Aqui, o naturalista progressivo está pensando no desenvolvimento histórico das várias áreas da investigação humana. Quais características intrínsecas ou sintáticas têm marcado o progresso de uma teoria, isso em várias áreas da ciência?

Uma característica se destaca de imediato.

À medida que, numa área qualquer da ciência, os investigadores progridem na resolução de seus problemas, daí formalizam suas teorias com precisão cada vez maior. Eles usam cada vez mais matemática. Talvez seja o caso de que a matemática é uma grande ilusão. Contudo, os físicos usam cada vez mais matemática, e isso é um fato. Da mesma forma, outros cientistas usam cada vez mais matemática: químicos, biólogos, psicólogos — à medida que progridem, suas teorias se tornam mais e mais matemáticas.

Se essa observação está correta, sugere uma hipótese: a naturalidade de uma teoria é seu grau de formalização. Teorias são mais ou menos formais. Conforme se tornam mais formais, a definição de cada um de seus termos se torna mais clara, e as regras pelas quais manipular os termos também se tornam mais claras. No grau máximo da naturalidade, definições e regras de manipulação se tornam exatas. Desaparece qualquer ambiguidade ou incerteza. O investigador, ao aumentar o grau de naturalização, usa a clareza para dissipar o mistério. Ao passo que uma teoria se torna mais formal, ela se torna mais puramente matemática. Mas aqui a matemática está mais para uma forma de pensar do que para uma coleção de conteúdos. Matematizar é clarificar; a matemática pura é a clarificação do próprio ato de clarificar.

Como ilustração da naturalização progressiva, considere a história da física. Um bom lugar para começar é com Aristóteles; mas a física aristotélica usa pouquíssima matemática. De Aristóteles a Newton, a formalização dos conceitos físicos cresce lentamente. Newton usou a geometria euclidiana e o cálculo em sua teoria da gravidade. Durante o século 19, os físicos formalizaram muitos conceitos da física recorrendo à mecânica clássica. A partir do início do século 20, depois do surgimento da mecânica quântica e da teoria da relatividade geral, os físicos produziram definições intensamente matemáticas de ideias físicas. Conceitos como espaço, tempo, força, energia, massa, carga, e matéria se tornaram altamente matemáticos. E a tal ponto se tornaram matemáticos que, ao final do século 20, a física teórica ficou mais e mais parecida com um ramo da matemática pura.

Visto que uma teoria mais natural é aquela que é mais matematizada, e visto que as próprias teorias matemáticas estão mui altamente matematizadas, uma teoria muito matematizada é a teoria mais natural. Isso exige que você acredite na existência de objetos matemáticos? Não, não exige. O naturalista progressivo dissocia naturalidade de existência. O naturalismo progressivo permite que você seja nominalista ou platonista. De modo perfeitamente agnóstico, o naturalista progressivo tão somente afirma que, se algum termo matemático de uma teoria se refere a alguma coisa, então a coisa referida é tão natural quanto a própria teoria. Mas talvez um termo matemático no fim das contas não se refira a nada.

O naturalista progressivo procura naturalizar todos os conceitos. Ele (ou ela) não descarta nenhum conceito por conta de algum preconceito dogmático. Para naturalizar um conceito, você pode começar com as definições tradicionais. Diante delas, tenta naturalizá-las. Com isso, acaba ficando com as definições mais propícias à formalização progressiva. Considere a alma. Existem muitas definições de alma. Aristóteles afirmou que a alma é a forma do corpo (De Anima, 412a5 a 414a33). E essa definição pode ser naturalizada. Você pode usar todos os recursos teóricos da biologia computacional para fundamentar o desenvolvimento de teorias altamente matemáticas sobre a forma do corpo. Naturalizar a alma é um programa de pesquisa pequeno dentro do programa maior de naturalismo progressivo.

Existem muitas definições tradicionais de Deus. O naturalista progressivo estuda tais definições de olho nas maneiras pelas quais elas toleram uma formalização. Uma definição de Deus pode ser facilmente naturalizada — é a definição panteísta: Deus é o Todo. Se o Todo é somente o nosso universo, então Deus é o universo; se o Todo é uma pluralidade de universos, então Deus é o multiverso; se o Todo é a totalidade de objetos matemáticos, então Deus é essa totalidade. O Movimento Panteísta Mundial inclui panteístas praticantes (Harrison, 1999). Essa forma de naturalizar Deus refuta o teísmo; ela mostra que todas as antigas religiões teístas estão erradas sobre Deus.

5. Algumas consequências atraentes do formalismo

Um jeito de avaliar uma hipótese é estudar suas consequências. Você vai descobrir várias consequências atraentes da hipótese que iguala naturalidade com graus de formalização. A primeira consequência atraente é a auditagem empírica, isto é, a propriedade de testar a teoria por métodos empíricos. O naturalista progressivo argumenta que maior formalização significa melhor auditagem empírica. Em geral, uma teoria informal é tão vaga que não há como auditá-la empiricamente. Conforme a teoria se torna mais precisa do ponto de vista formal, torna-se também mais suscetível de ser auditada por meio de medições científicas.

A segunda consequência atraente é a paridade ontológica. Alguns naturalistas dividem os termos de suas teorias entre aqueles que se referem a algo existente no mundo e aqueles que não se referem a nada existente no mundo. Por exemplo, os nominalistas dizem que os termos concretos têm referentes, enquanto os termos abstratos não têm referente. Provavelmente, ninguém jamais será capaz de defender essa divisão; provavelmente, ninguém jamais será capaz de defender qualquer divisão.8 O naturalismo progressivo, contudo, não obriga ninguém a segregar os termos de uma teoria científica. Qualquer que seja a teoria, todos os termos da teoria nela aparecem em igualdade de condições; portanto, você pode tratá-los igualmente.

A terceira consequência atraente é a receptividade. O naturalista progressivo acolhe, de braços abertos, todos os objetos proclamados pela teoria. Ele acolhe as extensões especulativas de teorias científicas, como as extensões supersimétricas do Modelo Padrão da Matéria, assim como acolhe aqueles que se esforçam para reconciliar a mecânica quântica com a relatividade geral. Ele considera outros universos possíveis; objetos puramente matemáticos; mentes imateriais; espíritos de todo tipo, de minúsculos diabinhos a deuses e deusas majestosos. O naturalista progressivo diz que a naturalidade de uma deusa é tão somente o grau de matematização da teoria na qual a deusa é definida. E sempre que um naturalista progressivo acolhe um objeto proclamado por uma teoria, procura em seguida naturalizá-lo — formalizando o objeto. Você se esforça para naturalizar o conceito de mente imaterial ao formalizá-lo; você se esforça para naturalizar a teologia ao produzir teorias matemáticas sobre divindades.

A quarta consequência atraente tem a ver com ceticismo. Você pode definir a existência matemática ao dizer que tal existência não passa de consistência; existir matematicamente significa ser definido de modo consistente [dentro da teoria]; portanto, todo e cada conceito que pode ser definido com consistência tem um correspondente modelo matemático (Balaguer, 1998: 5-9). Por outro lado, se ninguém consegue formalizar um conceito qualquer, então ele não tem nenhum modelo matemático que lhe corresponda; mas isso é o mesmo que dizer que ele não pode ser consistentemente definido; e se não pode ser consistentemente definido, não tem nenhuma existência; — tal conceito não tem conteúdo nem instâncias. Tudo isso leva ao ceticismo: se algum termo continuamente resiste à formalização, então ele provavelmente não se refere a nada que exista. De forma mais geral, se não existe um programa de investigações científicas que produza uma sequência de definições cada vez mais formais de um termo, então é quase certo que esse termo não se refere a nada que existe. E se a formalização progressiva de algum termo resulta por fim em alguma teoria falsa, então aquele termo verdadeiramente não se refere a nada que existe.

Por exemplo, se o livre-arbítrio soberano não pode ser formalizado, então ele não leva a modelos definíveis consistentemente; e se não há modelos definíveis consistentemente, então ele não existe. Portanto, se não existe um programa de pesquisa que produz modelos de livre-arbítrio cada vez mais matemáticos, então o livre-arbítrio provavelmente não pode ser formalizado; e se ele provavelmente não pode ser formalizado, então provavelmente não existe. Aqui só posso falar de probabilidades, uma vez que alguém, um belo dia, talvez apresente uma formalização. Mas o ceticismo permanece: se o livre-arbítrio resiste persistentemente a toda formalização, então o livre-arbítrio é provavelmente ilusório. E se alguém apresentar um argumento dizendo que é impossível definir matematicamente um conceito qualquer, então esse conceito é verdadeiramente ilusório.

Considere algumas teorias cada vez mais naturais de Deus. Os estóicos diziam que Deus é alguma matéria sutil distribuída por todo o espaço e o tempo (Cícero, 2008). Hobbes também afirmou essa ideia (ver Ghorham, 2013). Talvez esse Deus possa ser naturalizado: Deus é uma espécie de campo de força (Harvie, 2011). Os mórmons dizem que Deus é uma pessoa com um corpo de “carne e osso”; esse corpo se assemelha a um corpo humano, e está sujeito às leis da natureza (Givens, 2015: cap. 11). Então talvez o Deus mórmon esteja aberto à naturalização. Mas um Deus físico não precisa ter forma humana. Tipler (1995) apresentou um argumento dizendo que Deus é uma máquina de Turing infinita que emergirá no universo quando o universo estiver quase no fim. Aparecendo no fim do universo, Deus é o ponto ômega. Esse Deus conhece todo o passado e usará seu conhecimento para ressuscitar nosso corpo num paraíso terrestre virtual, isto é, uma versão da Terra implementada em software (ver Steinhart, 2012). Tipler defende um Deus digital e uma ressurreição digital. Como ele define suas ideias com grande clareza matemática, elas são altamente naturais. Mas essa clareza também torna possível auditar a teologia tipleriana. E ocorre que ela é falsa.9

Notas:

8. Resnik (1997: cap. 6) argumenta o seguinte: não há uma distinção clara entre coisas matemáticas e físicas na física atual. Todas as tentativas holísticas [tão abrangentes quanto possível] de confirmar teorias têm sugerido que não há como traçar qualquer divisão entre termos reais e irreais em qualquer teoria.

9. A quarta previsão auditável de Tipler é que a massa do bóson de Higgs seria de 220±20 giga-elétron Volt (GeV) (1995: 146); no entanto, sua massa é muito próxima de 125 GeV. A quinta previsão auditável de Tipler afirma que a constante de Hubble seria inferior a 45 (km/seg)/mpc (1995: 149); porém, estima-se que seu valor esteja em torno de 70 (km/seg)/mpc.

6. Naturalizando as ciências abstratas

Um naturalista se esforça para naturalizar todos os campos do pensamento humano. Por exemplo, um naturalista se esforça para naturalizar a lógica, a matemática, a física, a química, a biologia, a psicologia, a epistemologia, e também a teologia. À medida que a naturalização avança, o naturalista atribui novos significados a conceitos antigos. Ele talvez proponha também conceitos novos. E vai descartar os conceitos antigos que persistentemente resistem a todos os esforços de formalização. Pode-se aprender sobre o programa de pesquisa naturalista ao explorar a história.

O campo da lógica revela uma naturalização progressiva. De Aristóteles ao cálculo de predicados, torna-se cada vez mais formal. Os pensadores formalizaram conceitos como inferência, quantificação, valor de verdade, e identidade. A história da lógica modal também revela uma naturalização progressiva. Os pensadores formalizaram conceitos como possibilidade e necessidade.

Pelo menos uma definição de Deus é altamente lógica. Diz que Deus é o fundamento abstrato do existente concreto. Você pode naturalizar essa definição tratando esse fundamento como uma proposição e então analisando essa proposição com lógica deôntica.10 Essa divindade proposicional é razão suficiente definitiva para todas as coisas. É o fundamento necessário para toda contingência. Sua existência pode ser justificada com um argumento cosmológico de tipo leibniziano. Este Deus lógico é altamente natural, e pode aparecer como elemento de alguma teologia natural. Para evitar confusão com outras definições de Deus, chame essa proposição apenas de Fundamento. Talvez o Fundamento não exista; no entanto, é natural.

O Fundamento é, em última instância, responsável por todas as coisas concretas. Ele explica por que existe alguma coisa em vez de coisa nenhuma. Portanto, tem algum poder criativo que convoca coisas abstratas para uma existência concreta. Esse poder criativo do Fundamento é tão natural quanto seu valor de verdade. Além disso, como esse poder criativo é responsável por coisas concretas, não é totalmente abstrato. Muitos naturalistas religiosos definem Deus como sendo a criatividade que deu origem a nosso universo e que está ativa em todas as coisas físicas. Sendo assim, uma outra definição identifica Deus com essa criatividade (Kaufman, 2000; Peters, 2002). De acordo com o Pew Forum (2008: 5), um quarto dos americanos afirma que Deus é uma força ou energia impessoal.

A ideia de que Deus é uma força ou energia impessoal se parece com a ideia de que Deus é espírito. Por um lado, muita gente frequentemente define espírito como uma coisa mental fantasmagórica; mas essa coisa resiste à naturalização — nenhum programa de pesquisa pretende produzir modelos matemáticos de coisas mentais fantasmagóricas. Por outro lado, houve quem definiu espírito como um tipo de energia não mental. Hobbes, Descartes, e Newton cogitaram a hipótese de que espírito é uma espécie de fluxo energético que circula em todas as coisas físicas.11 Você pode tornar essa definição mais natural ao identificá-la com a energia do Fundamento. Talvez o espírito não exista; mas o naturalista progressivo pode defini-lo de modo cada vez mais natural.

No campo da matemática tem havido naturalização progressiva. Os matemáticos têm trabalhado para tornar a notação matemática mais precisa; os axiomas de conjuntos escritos por Zermelo & Fraenkel são mais naturais que os axiomas de partes e todos escritos por Proclus; os axiomas geométricos de Hilbert são mais naturais que aqueles de Euclides. Os matemáticos definiram formalmente conceitos como conjunto, ponto, reta, continuidade, e infinito. Turing naturalizou o conceito de computação e Shannon, o de informação. Conceitos como máquina, regra, programa, dados, e bit estão todos formalizados. Nasceram assim duas ciências: a da computação e a da informação.

Outra definição de Deus vem da computação teórica. Muitos escritores dizem que nosso universo é um processo de software sendo executado em algum substrato de hardware (Fredkin, 2003). Esse substrato de hardware é um computador; alguns dizem que é Deus. Esse é um jeito spinozista de pensar sobre Deus. É claro que esse computador cósmico não é o Deus de Tipler, pois o Deus de Tipler não existe. Esse computador cósmico é o Alfa de todas as coisas físicas; não é o Ômega delas. O argumento cosmológico de Kalaam e os argumentos baseados em projeto cósmico (como os argumentos baseados em ajuste fino) dão suporte a esse Deus digital. Esse Deus, tendo sido definido por meio de computação teórica, é um Deus natural. Moravec (1988) diz que o Deus digital pode monitorar tudo no universo; pode intervir no universo; pode encarnar a si mesmo no universo por meio de um avatar; pode nos proporcionar vida após a morte por meio de ressurreição do corpo (Steinhart, 2012). Moravec defende, portanto, uma teologia digital complexa, que encontra algum apoio entre transumanistas e singularistas. Essa teologia digital pode facilmente incorporar o Fundamento e sua energia. O Fundamento é a razão suficiente definitiva para o Deus digital. E a energia do Fundamento, que é espírito, alimenta o Deus digital e cada objeto de software (cada coisa física) nele executado.

Ninguém pode falsificar a teologia digital de Moravec ao mostrar que nosso universo não funciona numa máquina de Turing clássica (Steinhart, 2014: secção 50). Isso porque os matemáticos definiram computadores para muito além das máquinas clássicas. A computação teórica inclui toda uma hierarquia de conjuntos puros, hierarquia essa que é construtiva [isto é, em tese computável]. Assim, para falsificar a teologia digital de Moravec, alguém deve mostrar que não existe um modelo de nosso universo na hierarquia de conjuntos puros.

Notas:

10. A definição de Deus como o fundamento abstrato do existente concreto começa com Plotino, com a forma do Bem e do Um. É revivida por Tillich (1951). Essa definição torna-se uma proposição com Leslie (ver 1989: cap. 8). [Proposição: o significado abstrato de uma afirmação declarativa.] Pode ser identificada com a proposição e na lógica deôntica de Anderson (Lokhorst, 2006).

11. Hobbes definiu o espírito como um fluido material sutil (Answer to Bramhall, 309; The Elements of Law Natural and Politic, parte 1, cap. XI, par. 4). Descartes define o espírito como um vento ou chama natural (As Paixões da Alma, art. 10; Tratado sobre o Homem, em Cottingham, p.100). Newton escreve sobre o espírito como energia no final do General Scholium.

7. Naturalizando as ciências concretas

As ciências físicas têm uma longa história de naturalização progressiva; com o passar do tempo, elas se tornam cada vez mais matemáticas. As ciências químicas também se mostraram passíveis de naturalização progressiva. Conceitos químicos como átomos, ligações covalentes, e moléculas se tornam cada vez mais formais. A química fornece os alicerces da biologia: os seres vivos são máquinas moleculares complexas. À medida que a biologia progride, torna-se cada vez mais fortemente matemática. Mas o cientista, para formalizar sistemas biológicos, tem recorrido cada vez mais a computadores. Ele (ou ela) constrói modelos computacionais de redes genéticas, redes de proteínas, células, organismos, e ecossistemas. A vida é processamento de informações.

Os seres vivos são obviamente complexos. Assim, a naturalização de conceitos biológicos leva naturalmente à análise formal de complexidade. Os seres vivos evoluem do simples ao complexo. A evolução por seleção natural é um processo algorítmico; é uma vasta computação rodando na superfície da Terra. A vida escala o Monte Improvável (Dawkins, 1996). O estudo da complexidade em química mostra que todas as moléculas complexas evoluíram a partir de moléculas mais simples; da mesma forma, todas as coisas físicas complexas evoluíram de coisas mais simples. Se alguma coisa física no nosso universo é complexa, então foi produzida por um processo evolutivo que a fez escalar dos níveis mais baixos de complexidade aos mais altos.

Aparentemente, as ideias matemáticas nos bastidores da evolução da complexidade são perfeitamente gerais. Elas se aplicam à biologia, à química, e à física — isso porque se aplicam a tudo. Elas se aplicam a universos inteiros. Se algum universo é complexo, então foi produzido por um processo evolutivo que o fez escalar todos os níveis inferiores de complexidade. Tais ideias têm inspirado criadores de cosmologias evolutivas: universos mais simples evoluem para universos mais complexos. Mas a evolução cosmológica também é um processo algorítmico. Tais ideias dão ainda maior sustentação à física digital; seus defensores dizem que cada universo é um processo de software executado num substrato de hardware. Universos mais complexos exigem substratos de hardware mais complexos. Portanto, tais substratos de hardware evoluem.

Nosso universo é complexo; e se está rodando em algum deus-hardware, em algum deus maquinal, então esse deus também é complexo. Todos os deuses são complexos; mas todas as coisas complexas evoluíram; portanto, se nosso universo está rodando em algum deus maquinal, esse deus é produto de um processo de evolução divina. Ele está no fim de alguma linhagem de deuses maquinais. Essa ideia leva a um politeísmo digital (Steinhart, 2013, 2014). Tudo começa com um computador simples que se reproduz por si mesmo. Através de um processo de evolução recursiva, computadores mais simples geram computadores mais complexos. Mas todos esses computadores cósmicos são deuses. Se algum deus produz muitos descendentes, então a linhagem dos deuses se ramifica para formar uma árvore genealógica ou filogenética. Cada computador divino nessa árvore administra seu próprio universo. Como os deuses do politeísmo digital são computadores, são também altamente naturais. Eles se encaixam facilmente em muitas teologias naturais. Por exemplo, o Fundamento é razão suficiente definitiva para toda a árvore dos deuses. O espírito corre por essa árvore como seiva, energizando cada deus digital. É possível justificar essa árvore de deuses por meio de argumentos ontológicos formais (Kiteley, 1958; Millican, 2004).

O politeísmo digital se parece com a teologia processista. Segundo o teólogo processista, Deus é uma sequência de estágios. Os estágios anteriores de Deus produzem os estágios posteriores. Segundo uma das interpretações, os estágios de Deus são deuses, cada um deles governando seu próprio universo. Se isso estiver certo, então cada um dos deuses maquinais é apenas uma parte de Deus. Contudo, o Deus da teologia processista é pessoal, enquanto a árvore de deuses é algo impessoal — pode ficar confuso chamar a árvore de Deus. Para o teólogo digital, faz mais sentido chamá-la de Natureza. Embora essa teologia digital esteja altamente formalizada, ela obviamente é altamente especulativa. O naturalista progressivo não lhe dá nem mais nem menos crédito do que ela merece. Para o naturalista progressivo, o que é mais interessante sobre a teologia digital é que ela desmantela o antigo conceito de Deus para sugerir em seu lugar um sistema de novos conceitos, como Fundamento, espírito, deuses digitais, e Natureza.

8. Naturalizando a mente

O naturalista progressivo se esforça para naturalizar a mente. Ele se esforça para naturalizar todos os conceitos psicológicos ao defini-los matematicamente. Para tanto, adota uma abordagem fisiológica. Segundo tal abordagem, uma mente é um cérebro, e um cérebro é uma máquina digital (Burks, 1973; Moravec, 2000). Assim, a abordagem fisiológica se transforma numa abordagem computacional. Ela estabelece um programa claro de pesquisa científica: dado qualquer processo mental, descubra qual é o processo cerebral associado a ele; dado qualquer processo cerebral, descubra qual é o sistema computacional associado a ele; e então identifique o lugar do processo mental nesse sistema computacional.

Considere, por exemplo, a consciência. O naturalista progressivo raciocina assim: ou a consciência é misteriosa ou não é; se for, então é ilusória; se não for, então pode ser definida formalmente. Essa possibilidade justifica programas de pesquisa que visam definir formalmente a consciência. Tais programas de fato existem. Aqui o naturalista pode seguir os Churchlands (1986, 1995). [‘Os Churchlands’: Paul e Patricia Churchland.] E pode recorrer a teorias que definem a consciência em termos de informação integrada (Tononi, 2008; Tegmark, 2015). Com a teoria da informação integrada, o pesquisador usa a matemática da teoria da informação para formalmente definir a consciência de um sistema físico como sendo uma quantidade, batizada de phi.

A abordagem fisiológica (e computacional) para naturalizar a mente tem sido altamente bem-sucedida. Seus resultados têm sido confirmados pela medicina, pela ciência da cognição, pela neurociência, pela inteligência artificial, e assim por diante. Apesar dos sucessos da abordagem fisiológica, muitos pensadores ainda dizem que a mente não é o cérebro. Dizem que a mente é uma substância imaterial que interage com o cérebro por meio de relações de causa e efeito. Embora muitos naturalistas rejeitem dogmaticamente tal dualismo mente-corpo, o naturalista progressivo está aberto a ele. O naturalista progressivo apenas pede um programa de pesquisa que defina formalmente a mente imaterial e sua ligação com o cérebro. Afinal de contas, visto que uma estrutura matemática não precisa ser material, a imaterialidade da mente não pode impossibilitar sua formalização. Um computador pode ser feito de material puramente mental (Putnam, 1975); um computador pode ser uma máquina espiritual (Richards, 2002). No entanto, visto que o conceito de mente imaterial tem persistentemente resistido a toda tentativa de formalização, o naturalista progressivo é extremamente cético quanto ao dualismo mente-corpo. Tal dualismo é quase que certamente falso.

Da mesma forma, apesar dos muitos sucessos da abordagem computacional, muitos pensadores ainda dizem que uma mente não pode ser um computador. Dizem que conceitos como livre-arbítrio, agência, perspectiva de primeira pessoa, experiência qualitativa, e consciência não podem ser definidos por meio de computação teórica (Goetze & Taliaferro, 2008: 7). Tais conceitos são misteriosos; eles obstinadamente resistem a qualquer tentativa de formalização. Nesse ponto, o naturalista progressivo diz que, se tais conceitos realmente são misteriosos, então são ilusões vazias.

Agora considere o Deus do teísmo clássico. Esse Deus é uma substância pensante imaterial (Swinburne, 1994: cap. 6; Plantinga, 2008: 2). A maioria dos naturalistas dogmáticos rejeita esse Deus porque Ele não é material; ou não é físico; ou não pode ser encontrado na ciência.12 Mas o naturalista progressivo não condena o teísmo clássico a partir de qualquer posição dogmática. Ele aceitará esse Deus, porém se, e somente se, houver um programa de pesquisa que formalize a definição de Deus. Como o teísmo clássico resiste obstinadamente a toda tentativa de formalização, o naturalista progressivo é extremamente cético com relação a esse Deus. Visto que o naturalismo progressivo é dinâmico e orientado para o futuro, tem pouco interesse em criticar o teísmo clássico — o naturalista progressivo está mais interessado em novas alternativas. Está interessado na teologia digital dos transumanistas, dos singularistas, e de outros. Está interessado em naturalismo espiritual, mas não religioso; ou até mesmo em naturalismo religioso (Crosby, 2002; Peters, 2002; Stone, 2008).

Notas:

12. Escrevendo como ateísta, Nielsen diz, “O naturalismo nega que existam quaisquer realidades espirituais ou sobrenaturais. Isto é, não existem substâncias puramente mentais e não existem realidades sobrenaturais que transcendem o mundo” (2001: 29). Esse tipo de naturalismo dogmático exclui a definição de Deus como uma pessoa incorpórea.

9. Naturalismo religioso

As religiões teístas dizem que humanos e deuses interagem de muitas maneiras. Por exemplo, as pessoas rezam para os deuses pedindo ajuda; os deuses, por sua vez, realizam milagres úteis para as pessoas. Como um deus natural não intervém nas leis da realidade de seu universo, é pouco provável que um naturalista consiga naturalizar tais conceitos: o naturalismo rejeita orações petitórias e milagres. Essa rejeição da interação entre humanos e deuses se estende a outras práticas teístas de adoração. Se essas são as únicas atividades religiosas, então o naturalismo torna a religião obsoleta.

No entanto, a adoração não é a única maneira de se engajar com divindades. O naturalista religioso e o naturalista espiritual têm seus próprios símbolos e práticas (Crosby, 2014), e tais práticas muitas vezes dependem mais do espírito do que de qualquer deus. Uma prática naturalista é tomar enteógenos. Aqueles que tomam psilocibina frequentemente dizem experimentar uma profunda energia fluindo através de seu corpo e de todas as outras coisas (Griffiths et al., 2006). Essa energia espiritual une todas as coisas numa unidade natural. Outra prática naturalista é dançar em festivais conhecidos como raves, nos quais os dançarinos ficam hipervigilantes ao ponto do transe. Segundo seus relatos, durante o transe eles sentem que a energia espiritual une seu corpo e todas as outras coisas numa unidade natural (Sylvan, 2005: cap. 3).

Tradicionalmente, a respiração serve de símbolo para a energia espiritual que flui através de todas as coisas. Consequentemente, é possível naturalizar as práticas de hatha-yoga. Muitas práticas meditativas budistas tradicionais têm como base a respiração. Tais práticas foram naturalizadas com o nome de “meditação de atenção plena” ou “meditação mindfulness” (Flanagan, 2013; Harris, 2014). Os antigos estóicos cultivavam práticas semelhantes. Hoje, elas também foram adotadas por naturalistas espirituais (Irving, 2009). Um naturalista pode vivenciar experiências místicas, e alguns realmente as vivenciam (Comte-Sponville, 2006: cap. 3). Essas experiências talvez revelem a natureza em si mesma; porém, não as revelam de modo teórico.

O naturalista pode ter seus próprios feriados e festivais religiosos. Pode celebrar os solstícios e os equinócios (Toland, 1720; Harrison, 1999; Crosby, 2014). Alguns pensadores dizem que o Burning Man é uma celebração religiosa naturalista (Pike, 2005; Gilmore, 2010). Se estiverem certos, então é um festival em que se usa o fogo em rituais sagrados. O fogo serve de símbolo para a energia espiritual natural. O Burning Man é um dos muitos festivais espirituais de fogo nos Estados Unidos. O Spark Collective também organiza festivais de fogo, de caráter espiritual. Alguns pensadores juntam esses vários festivais de fogo num conjunto só, chamado de Família de Fogo. Você pode ver, se quiser, a Família de Fogo como uma religião naturalista em ascensão.

10. Conclusão

Muitos naturalistas são hostis à religião. Sua hostilidade é às vezes motivada pela suposição de que as antigas religiões formam as únicas opções religiosas. Essas antigas religiões envolvem conceitos que não são naturais. Assim, o naturalista, seja dogmático ou progressivo, rejeita as antigas religiões. Porém, as antigas religiões não são mais as únicas opções. Rapidamente surgem novas formas de ser religioso ou espiritual. Muitas dessas novas formas são altamente naturalistas. Eles incluem teologias naturais e práticas naturais. Mencionei algumas dessas formas aqui. Mas mesmo uma breve pesquisa na rede mundial de computadores revela uma grande rede de novos naturalismos religiosos, os quais não pude mencionar. O naturalista não precisa rejeitar nem a teologia, nem a religião. Tendo abandonado os antigos sobrenaturalismos, estamos hoje às margens de um mar inexplorado de possibilidades religiosas e espirituais. Se nos lançamos à navegação desse grande mar, quem sabe em quais mundos novos vamos desembarcar. {FIM}



Observações do tradutor:

1. Se quiser mencionar este texto, por favor, escreva:

Steinhart, Eric. “Naturalismo É Matemática”. Versão para o português brasileiro do jornalista Márcio Simões. São Paulo: Imaginário Puro (blogue), 10 de abril de 2024. Título original do artigo: “Naturalism”, publicado no livro A Companion to Atheism and Philosophy, organizado por Graham Oppy. Malden, MA: Wiley-Blackwell, 2019, págs. 152-166.

2. Na literatura técnica, às vezes “naturalismo progressivo” aparece como “naturalismo metodológico”. Isso porque, nesse tipo de naturalismo, o que realmente importa é o método:

(a) Escreva uma teoria que dê conta das evidências que você tem em mãos.

(b) Quase todos os substantivos, adjetivos, verbos, e advérbios que usou na sua teoria são igualmente naturais.

(c) As teorias mais naturais são as mais perfeitas do ponto de vista sintático, isto é, são as que usam lógica e matemática da maneira mais completa e competente.

(d) As melhores teorias são aquelas que te permitem fazer previsões de baixa probabilidade sobre a Natureza — são as que permitem um engajamento melhor com a Natureza.

No item (b), fui obrigado a escrever “quase todos” porque talvez o autor de uma teoria trate de objeções e contraexemplos à teoria; nesse caso, obviamente, os substantivos, adjetivos, verbos, e advérbios das objeções e dos contraexemplos não necessariamente são naturais, ou seja, talvez se refiram a coisas desnaturais ou sobrenaturais.

3. A diferença entre sintaxe e semântica. Examine as duas afirmações a seguir:

(A1) Jorge rarefaz magramente dois iconogramas chutados por assopros.

(A2) Mecânico pedir que a um eu carro conserte meu preciso.

O que há de certo e de errado com a afirmação A1: a sintaxe está certa, a semântica não está. A ortografia e a gramática de A1 estão corretas, mas não dá para dizer o que ela significa. O que há de certo e de errado com A2: a sintaxe não está correta, a semântica está. A gramática de A2 está toda confusa, mas o leitor consegue ver a qual proposição A2 corresponde.

4. Platonismo e nominalismo. O platonista é o sujeito para quem objetos abstratos (como conjunto vazio, a linha dos números hiper-reais, e os espaços vetoriais) existem efetivamente. O nominalista é o sujeito para quem objetos abstratos não existem, pois tudo é particular, tudo é concreto. Para o nominalista, existem aquelas duas maritacas voando contra o céu azul, e existem aqueles dois pregos tortos naquela ripa de madeira, mas o número dois não existe.

5. A forma do corpo. Quando Steinhart menciona a forma do corpo, não quer dizer o contorno do corpo, mas a configuração abstrata do corpo. Eis um jeito de definir a forma do corpo C: A forma do corpo C é a máquina de estados finitos mais simples e elegante que, rodando num ambiente computacional que simula o ambiente no qual existiu o corpo C, repete com exatidão a história do corpo C.

6. Sobre a palavra “modelo” e a expressão “modelos matemáticos”. Quando você recorre a estruturas matemáticas para interpretar algo escrito em linguagem natural ou formal, sua interpretação matemática desse algo é um modelo matemático desse algo.

7. Proposição. Uma proposição é o significado abstrato de uma afirmação declarativa. Por exemplo, “A neve é branca” e “La neve è bianca” se referem ambas à mesma proposição, qual seja, a de que a neve é branca. Para o platonista contemporâneo, proposições não são pensamentos localizados em alguma mente. Proposições são objetos abstratos e não dependem de nenhuma mente — ao contrário, toda mente depende de proposições para obter conteúdo para seus pensamentos, pois pensamentos são sobre proposições.

8. A hierarquia construtiva de conjuntos puros. Especialistas em teoria dos conjuntos usam a letra “V” para indicar toda a classe de conjuntos puros. No nível V0, o nível mais baixo da hierarquia, não há elementos, e portanto no nível V0 há somente o conjunto vazio { }. Para achar os conjuntos puros do nível V1, tire o conjunto potência de V0; o nível V1 fica com o conjunto {{ }}. Para achar os conjuntos puros do nível Vn, tire o conjunto potência de Vn–1. A sequência é:

V0. { }

V1. {{ }}

V2. { { }, {{ }} }

V3. { { }, {{ }}, {{{ }}}, { { }, {{ }} } }

E assim por diante ao infinito. Com algumas poucas definições e axiomas extras, é possível defender a tese de que essa sequência de conjuntos puros contém a configuração abstrata de qualquer sequência de grafos direcionados rotulados, sequência finita ou infinita. Partindo da hipótese de que você pode representar qualquer sistema, por mais complexo que seja, recorrendo a sequências de grafos direcionados rotulados (hipótese essa bastante razoável), então essa hierarquia construtiva de conjuntos puros contém a configuração abstrata de qualquer coisa, em qualquer dimensão, seja a história de um copo d’agua do momento t0 ao momento t1, seja a história de um universo de –∞ a +∞ no eixo do tempo.

Para usar uma analogia: em algum lugar da sequência de permutações da tipologia de língua portuguesa em 0 posição, 1 posição, 2 posições, …, 100 posições, …, n posições, …, certamente existe a frase de Sócrates a Xenofonte, “Se não revelo minha concepção de Justiça em palavras, eu a revelo por meio de minhas ações.”

9. Sobre teorias, veja também a postagem O Significado da Palavra “Teoria”, mais algumas Consequências.

10. Steinhart é o autor de três livros excelentes. (1) More Precisely: The Math You Need to Do Philosophy, que é um livro de matemática para filósofos; foi concebido tanto para ajudar o filósofo a articular precisamente o que pretende dizer quanto para ajudar o leitor de filosofia contemporânea a entender o que lê, visto que filósofos atuais usam matemática sempre que podem. (2) Believing in Dawkins: The New Spiritual Atheism mostra como partir dos livros de Richard Dawkins para construir jeitos de pensar e de viver que o leitor pode defender racionalmente e que são espiritualmente ricos, isto é, que o leitor pode usar para construir uma vida boa — digna, justa, virtuosa. É tanto um livro sobre naturalismo espiritual quanto sobre filosofia da ciência. (3) Atheistic Platonism: A Manifesto mostra como o leitor pode construir um platonismo ateu que serve de alternativa tanto ao teísmo convencional quanto ao ateísmo de perfil niilista. Com as ferramentas intelectuais do platonismo contemporâneo, o autor mostra como construir uma fundação para a realidade que é eterna, necessária, racional, bonita, e completamente automática. Se quiser saber mais, clique aqui para ver a página de Steinhart na internet.

Heráclito, Spinoza, Nietzsche: talvez estejam certos ao mesmo tempo


Nietzsche propôs uma tese que, hoje, é conhecida como “o eterno retorno do mesmo”: tudo o que aconteceu, e tudo o que está acontecendo agora, acontecerá de novo. A mesma sequência de fatos acontecerá de novo e de novo, nos mínimos detalhes: os mesmos gestos, as mesmas palavras, as mesmas moléculas nos mesmos lugares. Ela acontecerá não apenas duas vezes, ou três vezes, ou mil vezes, mas infinitas vezes.

Se essa tese é verdadeira, então parece que outras teses metafísicas têm de ser falsas. Uma delas diz que a Natureza jamais se repete: nada nunca é exatamente como era antes; nada jamais será exatamente como é agora. Essa tese pode ser resumida com duas frases, uma de Heráclito (“Tudo flui: ninguém jamais pisa no mesmo rio duas vezes”), e outra de Spinoza (“A Natureza produz infinitas coisas, de infinitas maneiras”). Ora, como o eterno retorno do mesmo pode ser verdadeiro se tudo sempre flui, se nenhum estado de coisas é igual a qualquer estado de coisas que tenha existido antes? Como o eterno retorno pode ser verdadeiro se a Natureza constantemente produz infinitas coisas, de infinitas maneiras?

Nesta postagem, você verá um dispositivo abstrato segundo o qual o eterno retorno é consistente com a tese de que tudo constantemente flui e com a tese de que a Natureza produz infinitas coisas, de infinitas maneiras. Por incrível que pareça, essas três teses podem ser verdadeiras ao mesmo tempo.

* * *

Há duas postagens neste blogue que explicam a tese de Nietzsche e a de Heráclito. Elas são Por que Ler Filósofos como Nietzsche e Estudando Funções para Entender Heráclito. Não faz sentido explicá-las mais uma vez. Portanto, antes de mostrar o dispositivo abstrato, falta dizer umas poucas palavras sobre a tese de Spinoza.

Spinoza achava que “Deus, ou a Natureza”, é absolutamente criativo e absolutamente potente. Essa criatividade não é humana; ao contrário, é inumana — seres humanos têm olhos, ouvidos, boca, pele, cérebro, emoções, e são capazes de racionalidade; a Natureza também é capaz de racionalidade, mas a semelhança acaba aí, pois ela não tem olhos, ouvidos, boca, pele, cérebro, emoções. Ela tem infinitos atributos, cada um dos quais absolutamente potente; assim, cada atributo produz infinitas coisas distintas, de infinitas maneiras distintas. Logo, Deus, ou a Natureza, produz infinitas coisas, de infinitas maneiras. Quando alguém topa com um grande escritor, por exemplo, espera dele livros sempre diferentes uns dos outros: pois um grande escritor é criativo. Se é isso o que se espera de um ser humano, muito mais se deve esperar de Deus = Natureza, cuja potência e criatividade são infinitamente superiores às do ser humano. Portanto, sugeriu Spinoza, Deus = Natureza não produz repetições, pois algo que repete a si mesmo não é criativo em grau máximo.

Dito isso, é hora de examinar o dispositivo abstrato, para ver que Nietzsche, Heráclito, e Spinoza, entre outros, podem todos estar certos ao mesmo tempo. Comece com o diagrama a seguir.

Ele mostra um plano e um sistema de coordenadas retangulares EOT. A letra “E” serve para lembrá-lo de “estado de coisas”; a letra “O” é a origem do sistema de coordenadas; e a letra “T” serve para lembrá-lo de “tempo”. Com “U1” e “U2”, você deve se lembrar de “universo 1” e “universo 2”. Se eiej (no eixo E), isto é, se dois valores de e são diferentes, isso significa que o estado de coisas i é diferente do estado de coisas j. Desenhei as duas curvas infinitas U1 e U2 de modo que e = 1 e e = 2 são assíntotas (0 < U1 < 1 e 1 < U2 < 2). Pense assim: o plano EOT é o espaço total de possibilidades pontuais, e cada universo é uma curva a ligar as possibilidades conforme o tempo passa, ou, melhor dizendo, cada universo é algo que transforma possibilidades pontuais em realidade conforme o tempo passa. Além disso, desenhei as duas curvas U1 e U2 contínuas e estritamente crescentes em função do tempo, isto é, desenhei a curva U1 tal que e = f(t), e, além disso, se titj, daí ei = f(ti) ≠ ej = f(tj). O raciocínio para U2 é semelhante, mutatis mutandis, com e = g(t). Em palavras: “Em dois instantes de tempo distintos, o estado de coisas tanto na curva U1 quanto na curva U2 é também distinto, isto é, o estado de coisas pontual tanto em U1 quanto em U2 jamais se repete.” Se quiser, pode imaginar infinitos outros universos U3, U4, U5, …, acima de U1 e de U2. O diagrama serve de analogia, portanto, para infinitos universos distintos entre si (sem nenhum ponto em comum), nos quais a passagem do tempo produz estados de coisas sempre distintos. Com isso, com os infinitos universos, você tem “infinitas coisas, de infinitas maneiras”; e, dentro de cada universo, também tem “tudo flui: ninguém jamais pisa no mesmo rio duas vezes”.

Agora, abaixo do eixo T, você vai adicionar uma estrutura abstrata complementar. Veja:

A reta TU se chama “TU” para lembrá-lo de “reta giratória de ativação do tempo universal”. Ela gira no sentido horário, como indicam as setas; ela gira sem parar, a velocidade constante. E ela faz o seguinte: toda vez que intercepta a reta T, ativa o ponto de tempo no exato ponto de interceptação. No diagrama mais abaixo, pode ver a reta TU em dois momentos distintos: ao tocar o ponto (t1, 0), ela ativou o instante de tempo t1 e com isso tornou realidade o estado de coisas e1, no universo U1, e o estado de coisas e2, no universo U2; ao tocar o ponto (t2, 0), ela ativou o instante de tempo t2 e com isso tornou realidade o estado de coisas e3, no universo U1, e o estado de coisas e4, no universo U2.

É fácil ver o seguinte: conforme a reta TU gira no sentido horário, o tempo no eixo T varia de –∞ a +∞ (de infinito negativo a infinito positivo). Isso significa que, para os habitantes tanto do universo U1 quanto do universo U2, o tempo se estende infinitamente para o passado e infinitamente para o futuro; da perspectiva desses habitantes, o universo em que vivem é eterno. Além disso, em razão do modo como o estado de coisas varia com o tempo, eles veem que nenhuma coisa do presente é exatamente igual a qualquer coisa do passado, e que nenhuma coisa do futuro jamais é exatamente igual a qualquer coisa do presente — tudo flui, e ninguém pisa no mesmo rio duas vezes. Os habitantes de U1 não podem saber nada de U2, que é um universo distinto; eles só podem fazer ciência com as informações contidas em U1. Seus filósofos e matemáticos, porém, vivem dizendo, feito uns malucos, “Não faz sentido haver apenas o nosso universo na Natureza. O espaço de possibilidades é infinito. Não faz sentido que o nosso universo, que é um ínfimo subconjunto próprio do espaço de possibilidades, seja o único universo concreto. De modo geral, portanto, deve haver infinitas coisas, de infinitas maneiras; em particular, deve haver infinitos outros universos concretos além do nosso.”

Porém, como a reta TU está constantemente girando no sentido horário, no universo U1, no universo U2, e em todos os infinitos universos acima de U1 e de U2 vale a doutrina de Nietzsche — vale o eterno retorno do mesmo: os mesmos gestos, as mesmas palavras, as mesmas moléculas nos mesmos lugares, de novo e de novo. Assim, o eterno retorno do mesmo é consistente com a existência de infinitos universos concretos, que produzem infinitas coisas, de infinitas maneiras; em cada um dos quais o tempo se estende infinitamente para o passado e para o futuro; e nos quais tudo flui, e ninguém pisa no mesmo rio duas vezes, porque nunca um estado de coisas se repete exatamente como antes, e nunca um estado de coisas atual se mantém inalterado por mais que um instante infinitesimal.

* * *

Na verdade verdadeira, o eterno retorno do mesmo é uma tese de Heráclito, que mais tarde foi revista e modificada por vários filósofos, pois o próprio Heráclito não a conseguiu formular com clareza. (Ou, se conseguiu, tal formulação se perdeu no tempo.) Nietzsche reconheceu sua dívida com Heráclito várias vezes em seus diários, em várias cartas, e em dois de seus livros publicados. Mas Nietzsche achava que, mesmo que essa tese fosse falsa; mesmo que ela fosse verdadeira, mas inverificável; mesmo assim, o eterno retorno do mesmo é excelente bússola para guiar a vida. O eterno retorno é, no mínimo, excelente ficção útil.

Imagine um casal que está a discutir, e que a discussão chegou a um passo de virar briga. Um deles sente vontade de dizer uma palavra muito dura. Mas ele está habituado a pensar no eterno retorno do mesmo, e rapidamente faz o seguinte cálculo mental: “Eu quero mesmo passar o resto da eternidade dizendo essa palavra dura de novo e de novo, infinitas vezes? Não, não quero. Vou dizer que a amo, e que não estou sabendo lidar com a situação pela qual estamos passando, mas que acredito na nossa capacidade de resolver isso com amor, para então deixar esse problema todo para trás. Isso eu não me importaria de dizer de novo e de novo, infinitas vezes!”

Para Nietzsche, o conceito de eterno retorno do mesmo está intimamente ligado com outro, conhecido entre filósofos como Übermensch, e entre leigos como super-homem. O super-homem nietzschiano sobrepujou sua natureza animal, organizou o caos de suas paixões, sublimou seus impulsos, deu estilo a seu caráter; para usar as palavras de Nietzsche sobre Goethe, “Ele disciplinou a si mesmo até chegar à plenitude, ele criou a si mesmo; […] e se tornou um homem tolerante, não por fraqueza, mas por fortaleza; […] ele é um espírito que se tornou livre.” Para que uma pessoa de espírito nobre passe do estado de homem comum para super-homem, terá de usar muitas vezes o eterno retorno para pensar sobre decisões e ações. Ele sabe que está perto da condição de super-homem quando o pensamento de viver sua vida de novo e de novo, infinitas vezes, exatamente da mesma maneira, se torna “a bênção mais divina”.

Contudo, e se o eterno retorno não for ficção útil? E se for uma tese metafísica verdadeira? Ela não implica fatalismo, isto é, a visão de que tudo aquilo que aconteceu não poderia, de jeito nenhum, ter acontecido de outra maneira? Sim, implica, mas um filósofo britânico, Simon Blackburn, pergunta: “Que o fatalismo seja verdadeiro — isso realmente importa?”

Quem acha o fatalismo uma tese horrenda, diz Blackburn, em geral pensa assim:

1. O passado controla o presente e o futuro, por meio das leis da realidade, que são imutáveis.

2. Você não pode controlar o passado.

3. Além disso, você não pode controlar as leis da realidade, isto é, não pode controlar o modo como o passado controla o presente e o futuro.

4. Portanto, você não pode controlar o presente e o futuro.

5. Visto que o futuro será o que será; visto que os eventos do futuro já existem no ventre do passado; então, o que quer que você faça não tem a menor importância.

Mas esse jeito de pensar não pode estar certo, o que é fácil de ver se você repetir o argumento para algo mecânico, claramente automático, que tem influência sobre o ambiente e o curso dos acontecimentos. Veja:

1’. O passado controla o presente e o futuro, por meio das leis da realidade, que são imutáveis.

2’. Um termostato não pode controlar o passado.

3’. Um termostato não pode controlar as leis da realidade, isto é, não pode controlar o modo pelo qual o passado controla o presente e o futuro.

4’. Portanto, um termostato não pode controlar o presente e o futuro.

Ora, essa conclusão 4’ não é verdadeira: se o termostato está funcionando corretamente, então sim, ele controla o presente e o futuro — pois ele ajuda o sistema de ar-condicionado, por exemplo, a manter a temperatura do ambiente acima de certo valor mínimo e abaixo de certo valor máximo. Portanto, eis como a proposição 4′ deveria ter sido escrita:

4’. Embora um termostato não possa controlar o passado nem as leis da realidade, o termostato faz parte da malha de causas e efeitos que constitui o universo em que o termostato existe.

5’. Visto que o futuro será o que será; visto que os eventos do futuro já existem no ventre do passado; visto que tanto você quanto o termostato fizeram parte do passado e fazem parte do presente; — portanto, mexa-se! Mexa-se!, pois, se o eterno retorno do mesmo é uma tese verdadeira, então o que aconteceu, o que está acontecendo, e o que vai acontecer, tudo isso vai se repetir de novo e de novo infinitas vezes — as mesmas moléculas, nos mesmo lugares. Você vai querer ficar infinitas vezes largado no sofá, vendo TV, ressentido, abstendo-se de influir nos destinos do mundo?

“Mesmo que Deus exista”, diz Blackburn, “e mesmo que ele veja o passado, o presente, e o futuro, como quem vê tudo de uma vez à distância, mesmo assim ele nunca vê alguém cozinhando um omelete sem antes disso quebrar os ovos.” Usando essa passagem de Blackburn, pode-se resumir desta maneira o conselho de Nietzsche: “Mexa-se! O que você faz importa! Se quer omelete, vá quebrar os ovos! Não seja frouxo de passar o resto da eternidade querendo omelete, mas indeciso quanto a quebrar os ovos!”

Nietzsche tinha muitas críticas às instituições cristãs (por exemplo, a Igreja Católica ou a Igreja Luterana de seu tempo), porque se intitulavam cristãs, mas eram rápidas na arte de atirar a primeira pedra; porém, admirava Jesus de Nazaré, ou seja, o homem que se pode entrever por entre as palavras dos quatro evangelhos. “Na verdade”, escreveu certa vez, “existiu só um cristão, e ele morreu na cruz.” Assim, em homenagem à simpatia que Nietzsche nutria por Jesus, vale a pena concluir este texto com o método de Jesus para levar uma vida boa, que é uma vida digna de repetição infinita: “Em toda situação, pergunte-se, ‘O que faria, nessa situação, uma pessoa perspicaz, capaz de amar e de ser amada, e que deseja estabelecer na Terra um reino divino, caracterizado por criatividade, ciência, misericórdia, justiça?’ Depois de dar resposta a essa pergunta tão importante, amém vos digo: levante-se e faça exatamente isso.” {FIM}


Observações:

1. O diagrama completo é uma simplificação da realidade, feito para servir de analogia. Mais precisamente, nosso universo pode ser visto como uma superfície de três dimensões num espaço de quatro dimensões. Assim, ele pode ser visto como um objeto de três dimensões que muda em função do tempo. E nada disso elimina a possibilidade de que existam infinitas superfícies de quatro dimensões num espaço de cinco dimensões, infinitas superfícies de cinco dimensões num espaço de seis dimensões, e assim por diante ao infinito. Talvez o espaço de possibilidades seja infinitamente denso, de um jeito até difícil de conceber. Dito isso, há métodos pelos quais associar um número real a um estado de coisas pontual (por exemplo, usando autômatos celulares), de modo que o diagrama é analogia de boa qualidade.

2. Se o eixo TU gira a velocidade constante no sentido horário, então a passagem do tempo em cada universo desacelera de –∞ a O, e depois acelera de O a +∞. Isso é fácil de demonstrar com uma pitada de cálculo diferencial. Contudo, os habitantes de cada universo não sentem tais variações de velocidade do tempo universal; pois, dentro de cada universo, todos os relógios, sem exceção, tiquetaqueiam em perfeita sincronia o tempo todo. (Incluindo “relógios naturais”, como pulsares ou qualquer outro fenômeno natural que possa ser usado para medir o tempo.) Com algumas modificações, esse pensamento vale inclusive para universos relativísticos.

3. O parágrafo sobre o Übermensch é uma paráfrase de uma passagem do livro Nietzsche: Philosopher, Psychologist, Antichrist, de Walter Kaufmann.

4. O argumento de Blackburn sobre a irrelevância do fatalismo para a vida quotidiana está no livro Think: A Compelling Introduction to Philosophy.

5. O diagrama desta postagem também dá razão a Parmênides, segundo uma das interpretações de seu muito difícil poema filosófico. Nessa interpretação, Parmênides disse que todas as mudanças que vemos com nossos olhos devem ser entendidas como ilusões, pois nada realmente muda. Ora, quem olha o diagrama desta postagem (versão completa, com o eixo TU), olha para uma infinidade de universos, que ocupam todo o espaço de possibilidades, e olha também para algo que precede o tempo, pois, em cada universo, a estrutura representada pelo diagrama dá origem ao tempo. Logo, pensando como Parmênides, o diagrama representa a realidade última — e ela nunca muda. Tudo isso combina, aliás, com o ditado do Buda, “Ninguém realmente nasce, ninguém realmente morre.”

6. As curvas que representam U1 e U2 são curvas de funções bijetoras contínuas. Desenhei as duas com assíntotas porque, segundo um argumento de David Lewis (1941-2001), universos são sempre conjuntos disjuntos, isto é, eles não compartilham elementos; neste caso, não compartilham um estado de coisas. Além disso, fiz o desenvolvimento de cada universo como função do tempo, o que é uma simplificação. Mais precisamente, o desenvolvimento de um universo depende não apenas do tempo, mas também das leis da realidade naquele universo — leis físicas, químicas, biológicas, psicológicas, etc.

7. Note ainda que o desenvolvimento de cada universo Un deve ser descrito assim: uma regra inicial, uma regra de sucessão, e uma regra de limite. Conforme o ângulo 𝛼 entre a reta TU e a reta T tende a zero, o estado de coisas de Un tende à regra inicial; conforme o ângulo 𝛽 tende a zero, o estado de coisas tende à regra de limite; e a regra de sucessão depende da passagem do tempo e das leis da realidade em Un.

8. Você viu no texto: “a Natureza é capaz de racionalidade”. O que significa isso? Segundo a definição atual de racionalidade, uma pessoa é racional quando ela segue a ordem objetiva e racional da Natureza — ou, em outras palavras, a própria Natureza corporifica objetivamente tudo aquilo que é “ser racional”. Contudo, o que significa, mais precisamente, “seguir a ordem objetiva e racional da Natureza”? Na prática, significa minimizar incongruências lógicas e maximizar congruências lógicas; e isso uma pessoa faz ao produzir razões objetivas (= argumentos) para suas crenças, decisões, e ações.

9. Você pode usar esta postagem para pensar em dois conceitos importantes: coerência e consistência. Ela mostra que o eterno retorno do mesmo é coerente, isto é, é uma tese que não apenas parece que pode ser compreendida, mas efetivamente pode ser compreendida — basta examinar os três diagramas com cuidado. E ela mostra que várias teses distintas são consistentes entre si, isto é, que todas elas podem ser verdadeiras ao mesmo tempo.

10. Em algumas traduções brasileiras de Nietzsche, o eterno retorno do mesmo às vezes aparece como “a eterna recorrência de todas as coisas”.

Mapas de Royce, uma pitada de teologia, e outra de filosofia da matemática


Pode existir um mapa da Inglaterra perfeitamente completo? Tão completo que, no próprio mapa, há um mapa do mapa? Tão completo que, no mapa do mapa, há um mapa do mapa do mapa? Tão completo que, no mapa do mapa … do mapa (n vezes), há um mapa do mapa … do mapa (n + 1 vezes) — e assim por diante ao infinito?

Quem fez a si mesmo essa pergunta foi o filósofo americano Josiah Royce. Ela está no livro The World and the Individual [O Mundo e o Indivíduo], de 1898. Por exemplo, neste trecho:

Qualquer que seja nossa teoria a respeito do significado dos verbos ser e existir, suponha que alguém […] nos garantisse a verdade da afirmação a seguir, qual seja: “Aberto sobre a superfície da Inglaterra, e portanto aberto dentro do território inglês, existe de alguma forma um mapa absolutamente perfeito de toda a Inglaterra — não interessa aqui como foi feito, nem quando.” Suponha que já aceitamos essa afirmação como sendo verdadeira. Daí em algum momento tentamos descobrir o significado implícito nessa afirmação. Devemos de imediato observar que a afirmação a seguir, “Uma parte da Inglaterra mapeia perfeitamente a Inglaterra inteira, mas numa escala menor”, nos diz algo não sobre o processo de desenhar mapas, mas sim sobre a coexistente presença, na Inglaterra, de um número infinito de mapas, mapas tais como foram descritos. Estaríamos afirmando a série infinita inteira, que não possui um último termo, como sendo um fato da existência. O mapa absolutamente perfeito da Inglaterra, repousado aberto sobre uma parte do território inglês, se realmente foi executado à perfeição, contém necessariamente em sua estrutura uma série de mapas dentro de mapas tais que nenhum dos mapas pode ser o último da série.

Há um jeito simples de visualizar o que Royce está dizendo: imagine que a Inglaterra é um quadrado dividido em quatro partes iguais por uma cruz, isto é, uma linha vertical e outra linha horizontal. Assim:

Use o quadrado inferior direito para colocar, aberto, o mapa perfeito da Inglaterra.

Mas, se esse mapa é absolutamente perfeito, então contém um segundo mapa dentro do primeiro mapa, um terceiro mapa dentro do segundo mapa, um quarto mapa dentro do terceiro mapa, e assim por diante. Eis as regras desse objeto abstrato recursivo:

Regra inicial. O primeiro mapa M0 é um quadrado dividido em quatro quadrados iguais por duas semirretas em cruz.

Regra de sucessão. Para qualquer n, o mapa sucessor Mn+1 é igual ao mapa Mn, mas com o quadrado inferior direito dividido em quatro quadrados iguais por meio de duas semirretas em cruz.

Regra de limite. O mapa-limite Mω é a sobreposição dos mapas Mn para todo n inteiro não negativo.

Na figura a seguir, veja as primeiras seis iterações deste mapa de Royce.

Royce propôs tais objetos abstratos (que hoje se chamam “mapas de Royce”) porque estava preocupado com teologia. Queria tornar clara a ideia de que ninguém necessariamente precisa de profetas, bíblias, pregadores, ou igrejas prepotentes para se tornar tão moralmente perfeito quanto é humanamente possível. Um mapa de Royce serve para deixar precisa a ideia de que, em tese, pode haver dentro de um ser humano uma imagem — um mapa — do Absoluto Infinito do qual esse ser humano finito faz parte. “Não quero um Absoluto estéril, que devore o indivíduo”, Royce escreveu certa vez. Se o homem é uma espécie de figura geométrica com trilhões de detalhes, uma figura que reflete, em menor medida, o Absoluto do qual faz parte, então tem condições de olhar para si mesmo, de investigar-se, e assim também investigar o Absoluto além de si; e para nada disso precisa se submeter a um profeta o qual nunca viu, ou a um livro cheio de contradições e de erros factuais. “Quero um Absoluto que permita o florescimento daqueles que buscam a verdade.”

Mais tarde, mapas de Royce foram usados por matemáticos e por filósofos (especializados em matemática ou em metafísica) para deixar precisas cinco ideias importantes: (1) definições recursivas, (2) o infinito de Dedekind, (3) coisas finitas, (4) complexidade infinita, e (5) complexidade finita.

Definições recursivas. Uma definição recursiva tem sempre três regras: a regra inicial, a regra de sucessão, e a regra de limite. Até onde se sabe, é o único jeito de descrever uma estrutura infinita com número finito de símbolos. Em muitas definições matemáticas, referentes a objetos abstratos infinitos, as três regras estão implícitas.

Infinito de Dedekind. Um conjunto S é infinito, ou é infinito de Dedekind, se e somente se (se-se) existe um subconjunto próprio T de S tal que a cardinalidade de T é igual à de S, isto é, tal que os elementos de T podem ser postos em correspondência um a um (bijeção) com os elementos de S.

Finito. Um conjunto S é finito se-se não é infinito, isto é, se-se S não contém um subconjunto próprio T tal que T tem a mesma cardinalidade de S.

Complexidade infinita. Uma estrutura S é infinitamente complexa se-se S contém uma parte própria T tal que T tem a mesma forma que S. A parte própria T se chama “subestrutura própria de S”; e a parte própria T tem a mesma forma de S se-se existe um isomorfismo de S para T. Se duas estruturas têm a mesma forma, então elas são igualmente complexas; se x tem exatamente a mesma forma que y, então x é tão complexa quanto y. Assim, os mapas de Royce são estruturas infinitamente complexas; e se o Absoluto tem uma estrutura infinitamente complexa, passa a ser razoável a ideia de que cada ser humano contém em si mesmo informação suficiente sobre o Absoluto para, se quiser, levar uma vida tão divina quanto humanamente possível.

Complexidade finita. Um todo é finitamente complexo se-se não é infinitamente complexo. Mais precisamente, um todo S é finitamente complexo se-se, para toda parte própria T de S, T é menos complexa que S.

O mapa de Royce que acabou de ver é útil para pensar sobre as inter-relações entre duas posições importantes na filosofia da matemática atual: ficcionalismo e platonismo. O ficcionalista diz que afirmações como “o número 3 é primo” são uma espécie de ficção; são afirmações aparentadas com “Sherlock Holmes toca violino bastante bem”. A afirmação “Sherlock Holmes toca violino bastante bem” é sobre um personagem de ficção, Sherlock Holmes, que, de acordo com a ficção, é um ótimo detetive e um ótimo violinista; a afirmação “o número 3 é primo” é sobre um personagem de ficção, o número 3, que, de acordo com a ficção, entre outras coisas é primo e divide os inteiros 6, 9, e 12. O platonista, por sua vez, diz que afirmações como “o número 3 é primo” não são uma espécie de ficção; ao contrário, são verdadeiras porque de fato existe um objeto abstrato que é isomórfico com o que o brasileiro chama de “o número três” e o inglês chama de “the number three”. Uma das características desse objeto abstrato é esta: ele só pode ser dividido em três partes iguais de 1 unidade cada uma, ou então em uma única parte de 3 unidades — não há nenhuma outra maneira de dividi-lo em partes iguais de unidades, isto é, o número 3 é primo.

O ficcionalista diz que a matemática é útil porque seus personagens ficcionais são feitos especialmente para que sejam úteis como analogia para os fenômenos do universo. São personagens simples, como pontos, retas, triângulos, números, conjuntos, relações, funções; e o matemático descobre como tais personagens interagem uns com os outros por meio de uma linguagem muito bem comportada, cujo nome é “lógica”. Visto que os personagens matemáticos são simples e que seu comportamento pode ser bem conhecido, eles servem como analogia para os fenômenos que constituem o universo: para investigar algo que não conhece, o homem precisa partir de algo que conhece — de algo que ele mesmo criou; por exemplo, a matemática. O platonista diz que a matemática é útil porque tudo o que existe ou é um objeto abstrato, pura e simplesmente, ou supervém num objeto abstrato. O universo em que vivemos, de acordo com o platonista, é um objeto concreto infinito que supervém numa coleção muito complicada, e também infinita, de objetos abstratos. Ele é, para simplificar um pouco, estritamente idêntico a uma coleção complicada de objetos abstratos. O platonista contemporâneo é um monista: só existem objetos abstratos — nada mais existe além disso. Alguns desses objetos abstratos servem de substrato para universos concretos, ou então, o que é um jeito diferente de dizer a mesma coisa, todo universo concreto supervém num universo abstrato.

Suponha, por um momento, que o platonismo é verdadeiro. Suponha também que a Natureza é infinitamente complexa. Ela inclui o universo em que vivemos (codinome UH), mas também inclui qualquer outro universo que possa existir — assim, o universo UH é subconjunto da Natureza. (Se houver outros universos, daí UH é subconjunto próprio da Natureza.) Por fim, use o mapa de Royce Mω para representar a Natureza.

Se isso for verdade, daí a matemática atual é algo mais ou menos assim:

Tudo o que os matemáticos inventaram e descobriram até hoje está contido dentro dos três círculos vermelhos; é pouco para compreender tudo aquilo que constitui a Natureza. É por isso que, em muitas situações práticas, parece que a matemática é inadequada; parece que é insuficiente. Além disso, é bem possível que grandes trechos da matemática atual não se refiram ao universo UH, mas a partes da Natureza que não fazem parte, de maneira nenhuma, de UH. Talvez se refiram ao que existe em outros universos. Se esse último ponto for verdadeiro, daí tais grandes trechos de matemática são, do ponto de vista de gente excessivamente pragmática, inúteis.

Em outras palavras, usando o mapa de Royce Mω como analogia, é fácil ver que a seguinte hipótese talvez seja verdadeira: a matemática atual é incompleta, em primeiro lugar; e, em segundo lugar, uma parte dela talvez seja completamente inútil para aqueles de inabalável espírito prático, pois não serve para modelar nada que existe concretamente em nosso universo UH. E tudo isso junto explica por que a tese do ficcionalista faz sentido — mesmo que o platonismo seja verdadeiro.

Jorge Luis Borges, o famoso escritor argentino, conhecia alguns dos textos de Josiah Royce, a quem admirava; escreveu várias estórias usando o mapa de Royce como referência. Em 1964, num de seus ensaios, escreveu o seguinte:

As invenções da filosofia não são menos fantásticas que aquelas da arte: Josiah Royce, no primeiro volume de seu trabalho O Mundo e o Indivíduo (1898), formulou o seguinte: “Vamos imaginar que uma porção do solo da Inglaterra foi nivelado à perfeição e que, sobre ele, um cartógrafo traça um mapa da Inglaterra. O trabalho é perfeito: não há detalhe sobre o solo da Inglaterra, por menor que seja, que não esteja registrado no mapa; tudo tem no mapa sua correspondência. Esse mapa, se for assim, deve conter um mapa do mapa, que deve conter um mapa do mapa do mapa, e assim por diante ao infinito.” Por que ficamos inquietos com o mapa dentro do mapa e com as mil e uma noites dentro do livro As Mil e Uma Noites? Por que nos inquieta que Dom Quixote seja um leitor de Quixote e que Hamlet seja um espectador de Hamlet? Acredito que descobri a razão: tais inversões sugerem que, se os personagens de obras ficcionais podem ser leitores ou espectadores, então nós, seus leitores e espectadores, podemos ser ficções.

Talvez a realidade platônica seja uma ficção criada pelo homem. Talvez o homem seja apenas um personagem, entre infinitos outros, cuja existência é dádiva de entidades platônicas. Talvez o platonismo seja verdadeiro, afinal de contas, mas o homem só pode explorar a realidade platônica por meio de suas ficções, especialmente as ficções de caráter matemático. {FIM}


Observações:

1. Não estou dizendo que nosso universo UH é infinitamente complexo, isto é, que uma parte própria dele é isomórfica com UH inteiro.

2. Mesmo que o universo UH não seja infinitamente complexo, um mapa de Royce serve para mostrar que uma parte de UH pode conter muita informação sobre todo o resto de UH. Assim, não é absurdo pensar que a cultura humana, tomada como um todo (incluindo a ciência), é uma parte de UH na qual há bastante informação sobre UH como um todo.

3. O mapa de Royce Mω tem duas propriedades: (a) Se os lados de M0 medem x unidades de comprimento, a área do mapa mede x2 unidades de área; (b) O perímetro total do mapa, incluindo as linhas internas, mede 8x unidades de comprimento. Provar a propriedade (b) é um bom exercício para quem está começando a lidar com séries infinitas. Depois, vale a pena comparar o mapa de Royce Mω com a curva de Koch para escrever um ensaio: Por que o comprimento do perímetro de Mω é finito, mas o da curva de Koch é infinito?

4. Para saber mais sobre isomorfismos, veja a postagem Filosofia da Mente: O Mapa e o Território.

5. Para saber mais sobre o conceito de superveniência, veja a observação 5 no pé da postagem O “Zaratustra” de Nietzsche e a Liberdade do Matemático.

6. Quando uso o termo “homem”, em geral quero dizer o conjunto dos elementos x tais que x é um indivíduo da espécie humana.

7. Você viu no texto: talvez a existência de todas as coisas, incluindo o homem, seja um presente de entidades platônicas. Lembrete: segundo o platonismo contemporâneo, entidades platônicas não têm mentalidade. Elas não são entidades conscientes; elas não são pessoas. Ao contrário, são semelhantes ao processo de modificação das espécies por seleção natural, que não tem mentalidade, mas que é capaz de feitos maravilhosos de engenharia.

Martin Buber, matemática, e seres espirituais


{1}/ Um problema para começar

Problema. Imagine que há quatro cartas sobre a mesa, e cada uma delas tem uma letra de um lado e um inteiro positivo do outro. Eis o que você vê:

A, M, 3, 6

Qual carta ou quais cartas deve virar, de modo que possa ver o outro lado, para assim testar a verdade da seguinte afirmação condicional:

Condição. Se há uma vogal num lado da carta, então há um inteiro ímpar do outro lado.

Seu problema é testar a verdade da condicional (ou da implicação) virando o menor número possível de cartas.


{2}/ Diálogo à moda de quase uma briga

“Eu acho que terei de virar as quatro cartas”, disse Implicação-L. “Só assim posso ter a certeza de que a condição é verdadeira.”

“Por que quatro cartas? Me explica isso melhor”, pediu Implicação-T.

“Ora, tenho de virar a carta A para ver se há um número ímpar do outro lado. Se não houver, se houver um par, a condição é falsa. Mas também tenho de virar a carta M, pois, se do outro lado houver um número ímpar, a condição é falsa. Tenho de virar a carta 3, porque, se houver uma consoante do outro lado, a condição é falsa. Mas também tenho de virar a carta 6, para ver se do outro lado há uma vogal; se houver, a condição é falsa. Portanto, para ter a mais absoluta certeza de que a condição é verdadeira, tenho de virar as quatro cartas.”

“Mas que definição você está usando de ‘afirmação condicional’, ou então de ‘implicação’?”

“Ora”, respondeu Implicação-L, “se A implica B, isto é, se digo assim, ‘Se A, então B’, quero dizer que sempre que acontece A, também acontece B. Ou então que sempre que tenho A, também tenho B. Ouvi dizer que os filósofos têm um jeito engraçado de dizer isso: ‘Se A obtém, então B também obtém.’ E isso quer dizer que, se constato B, é porque antes de B houve A.”

“Acho que você está confundindo ‘implicação’ com ‘relação de causa e efeito’. Mas uma coisa não tem nada a ver com a outra. Por exemplo, posso dizer assim: ‘Se o calor aumenta, vende-se mais sorvete.’ Isso é uma afirmação condicional; isso é uma implicação. Mas, se constato que as vendas de sorvete aumentaram, não necessariamente isso aconteceu porque o calor aumentou. Talvez os fabricantes de sorvete tenham combinado uma incrível promoção para comemorar a Semana Mundial do Sorvete. Talvez Hollywood tenha lançado um filme muito popular sobre sorvete. Sei lá.”

“Qual é a sua definição de ‘implicação’?”

“Uma implicação é falsa se e somente se o enunciado antecedente é verdadeiro e o consequente é falso. Nos demais casos, a implicação é verdadeira.”

“Se for assim”, disse Implicação-L, “então uma implicação é verdadeira se o antecedente é falso, mas o consequente é verdadeiro?”

“Sim.”

“Portanto, a afirmação condicional ‘Se Brasília não é a capital federal do Brasil, então Brasília é a capital federal do Brasil’ é verdadeira?”

Implicação-T pôs a mão direita sobre o peito e anuiu com a cabeça, num gesto de submissão. “Tenho de admitir que sim.”

“Isso não faz o menor sentido.”

“Mas essa é a definição matemática de implicação. Melhor dizendo, essa é a definição usada por todos os especialistas em lógica.”

“Contudo”, disse Implicação-L, “quando alguém usa a palavra ‘implicação’, quando diz que A implica B, não está pensando nessa definição usada pelos lógicos ou pelos matemáticos. Quando alguém diz que A implica B, está dizendo que existe algum tipo de conexão entre A e B, isto é, está dizendo que A e B estão de algum modo ligados.”

“Sim, é verdade, mas o nome disso não é ‘implicação’, mas sim ‘implicatura conversacional’. Quando uma pessoa comum diz que A implica B, em geral não afirma uma implicação, mas usa uma implicatura conversacional; talvez esteja até afirmando uma relação de causa e efeito. Mas a definição de ‘implicação’ é a que mencionei.”

“Bom”, disse Implicação-L, “eu sou uma pessoa comum, uso a expressão ‘A implica B’ com alguma frequência, e nem sabia que esse termo, ‘implicatura conversacional’, existia. Mas, segundo você, minha solução está errada. Me diga, portanto, quais cartas eu deveria virar.”

“Só duas: as cartas A e 6. Se não houver um número ímpar atrás de A, a implicação é falsa. Se houver uma vogal atrás de 6, a implicação é falsa. A questão é que, para testar uma afirmação condicional, você precisa achar um contraexemplo à condição, e as cartas A e 6 forneceriam um contraexemplo. Você não precisa virar a carta M, pois a implicação é silenciosa sobre as consequências de haver uma consoante num dos lados da carta. E também não precisa virar a carta 3, porque, se houver uma vogal do outro lado, essa carta confirma a condição; mas, se houver uma consoante, essa carta não contradiz a condição — pois, de novo, a implicação é silenciosa sobre haver uma consoante num dos lados da carta. A implicação não diz que, se houver uma consoante num dos lados da carta, daí não pode haver um número ímpar do outro lado. A implicação diz apenas que, se há uma vogal de um lado, então há um inteiro ímpar do outro; se a implicação é verdadeira, ela não diz nada além disso.”


{3}/ Martin Buber e a esfera espiritual

Tive a ideia de escrever o diálogo entre Implicação-L (a ideia de implicação dos leigos) e Implicação-T (a ideia de implicação dos técnicos, tais como o matemático) depois de ler o livro Eu e Você, de Martin Buber (1878-1965), publicado pela primeira vez em 1923. Buber disse que os seres humanos vivem em três esferas: (1) a esfera da Natureza; (2) a esfera dos seres humanos; (3) e a esfera dos seres espirituais. Citando Buber diretamente:

“Em cada esfera, por meio de tudo aquilo que se torna presente para nós, olhamos para o séquito do Você eterno. […] Em todo Você nós nos dirigimos ao Você eterno, em cada esfera de acordo com suas maneiras. […]”

“A terceira esfera é a esfera dos seres espirituais. Aqui a relação [entre Eu e Você] está envolta em nuvens, mas revela a si mesma; ela não tem linguagem, mas cria linguagem. Não ouvimos nenhum Você, mas mesmo assim sentimos que se dirigem a nós; [e por causa disso] criamos, pensamos, agimos; com todo o nosso ser dizemos a palavra básica [Eu-Você], incapazes de dizer Você com nossa boca.”

Imagine um especialista em computadores que, enquanto assiste a uma peça de teatro, de repente tem uma ideia: “Como seria a vida de uma pessoa que sabe o futuro, isto é, como seria a vida de uma pessoa que conhece aquilo que é inevitável?” Isso aconteceu com Ted Chiang, que, depois do estalo, passou anos tentando escrever a estória, até que publicou “História de sua Vida” em 1998. (Em 2016, o cineasta Denis Villeneuve lançou o filme A Chegada, tendo como base a estória de Chiang.)

Para Martin Buber, um ser espiritual se dirigiu a Chiang enquanto assistia à peça. Chiang o levou a sério, isto é, diante dele pronunciou a palavra básica, Eu-Você; e durante anos dialogou com esse ser espiritual, até que conseguiu transformá-lo em algo real; até que conseguiu colocá-lo no mundo na forma de algo palpável, que é uma estória publicada num livro; até que conseguiu transformá-lo em linguagem. Agora, tendo o ser espiritual se transformado em linguagem corpórea graças à relação com Chiang, ganhou a chance de interpelar outras pessoas — outro homem (ou mulher) comprará o livro e, diante do ser espiritual materializado em “História de sua Vida”, terá a oportunidade de dizer Você e de estabelecer uma relação com ele; e dessa relação entre os dois surgirá um mundo.

Assim, seguindo Buber, você, leitor, quando topa com o problema das cartas, topa com um ser espiritual. O diálogo da seção 2, entre Implicação-L e Implicação-T, representa o tipo de conversa interior que todo amante de matemática terá com o problema. Se o leitor não conhece a definição técnica, provavelmente vai responder como Implicação-L, ou então vai virar as cartas A e 3 — e, ao consultar a resposta certa, verá que errou. E daí lerá sobre o assunto para saber por que errou e, de novo, terá uma conversa interior como a que ocorreu entre Implicação-L e Implicação-T. Uma definição técnica sempre surge desse tipo de diálogo com seres espirituais — pois uma definição técnica é um tipo de linguagem, e todo ser espiritual almeja se transformar de algum modo em linguagem.

Alfred Tarski, no livro Introduction to Logic and to the Methodology of Deductive Sciences, diz que o significado da expressão “se x, então y” na linguagem cotidiana é muito diferente de seu significado na linguagem técnica. No dia a dia, se alguém diz “se x, então y”, é porque acredita em algum tipo de conexão entre x e y. “Esse é um fenômeno psicológico”, escreveu Tarski. Se um leigo diz “se x, então y”, é porque acredita que x e y são sempre igualmente verdadeiros, ou então igualmente falsos. (Portanto, o leigo diz “x implica y” quando, se conhecesse definições técnicas, diria “x se e somente se y”. Para usar a linguagem de David Hume, o leigo diz “x implica y” porque acredita numa conjunção frequente entre x e y, ou então numa conjunção constante.) Escreveu Tarski: “Essa conexão entre x e y é muito difícil de caracterizar de modo geral, e somente algumas vezes sua natureza nos é mais ou menos clara.” 

É por tudo isso que o significado cotidiano de “se x, então y” não serve para o cientista e o matemático. Como eles são pesquisadores, como estão sempre investigando fenômenos desconhecidos, não poderiam usar a expressão “se x, então y” se fossem obrigados a explicar detalhadamente qual é a conexão misteriosa entre x e y, pois, ora bolas, é justamente isso que estão tentando descobrir. Depois de muitas idas e vindas, depois de muito diálogo com seres espirituais, o lógico fixou o significado de “se x, então y” assim:

a) Se você aceita a implicação como sendo verdadeira, e além disso também aceita o enunciado antecedente, não tem escolha senão aceitar também o consequente. (O nome técnico desse raciocínio é modus ponens.)

b) Além disso, se você aceita a implicação como sendo verdadeira, mas rejeita o enunciado consequente como falso, não tem escolha senão rejeitar também o antecedente. (Modus tollens.)

Ou seja, para estabelecer o significado de “se x, então y”, que é o significado de “x implica y”, o lógico partiu do significado do dia a dia e chegou a algo mais simples e claro: a expressão “se x, então y” só é falsa quando o enunciado x é verdadeiro, mas y, falso; nos demais casos, é verdadeira. O lógico se livrou de levar em consideração qualquer conexão que possa haver entre x e y para levar em consideração tão somente o valor de verdade dos enunciados antecedente e consequente. Para deixar claro o que fez, parou de chamar “se x, então y” de “implicação”, pura e simplesmente, e passou a chamá-la de “implicação material”.

Quando o professor apresenta o problema das cartas ao aluno (ou qualquer problema semelhante), e o aluno não atina com a “resposta certa”, o professor não pode dizer que ele está errado. Pois, quase sempre, não está. Ao contrário, está simplesmente usando a definição cotidiana de “se x, então y”, pois nunca parou para pensar na enorme quantidade de vezes que o homem diz isso acreditando numa conexão entre x e y, sem, contudo, possuir uma explicação dessa conexão. Ao parar para refletir sobre esse problema, isto é, ao dialogar com esse ser espiritual, o aluno fica pronto para cocriar a definição técnica. O professor que diz, “Você errou”, faz o aluno perder a oportunidade desse diálogo tão importante com seres espirituais — e daí, como diz Buber, algo nele não cria linguagem, e ele próprio não pensa, cria, age; algo nele surge natimorto e ele se torna hesitante.

Às vezes, Martin Buber é classificado como um teólogo judeu; às vezes, como um filósofo existencialista. É mais correto classificá-lo como um autor erudito, que, entre muitos outros assuntos, explorou temas religiosos; e que, além disso, pode ser classificado como um autor de inclinação existencialista. Buber insistia em achar no presente, no aqui e agora, qualquer beleza e redenção que possa haver; insistia em desconsiderar qualquer tipo de esperança em qualquer tipo de além — seja um além no passado, um além no futuro, ou um além no além mesmo. Buber dizia que, para ele, o tetragrama YHWH não significava “Jeová”, mas sim “Ele está aqui, Ele está presente.” Dizer Você para a Natureza, para outro ser humano, ou para um ser espiritual é dizer Você a Deus.

Desse diálogo com seres espirituais, em particular, surgem os melhores sistemas axiomáticos e os melhores teoremas, assim como os melhores poemas, romances, tratados filosóficos, músicas, filmes, programas de TV, leis, prédios, pontes, cidades, instituições, foguetes, estações espaciais. A pesquisa sobre a lógica das afirmações condicionais também é feita por gente que se entrega, inteiramente, plenamente, ao diálogo com seres humanos e espirituais. Tal capacidade precisa ser desenvolvida na criança: ela tem de aprender a dialogar de corpo e alma, com tudo de si compenetrado no diálogo, para que possa transformar possibilidades em realidade. Pois, como já ensinava Aristóteles, viver bem é uma questão de aprender a transformar as mais divinas possibilidades em coisas reais. “Você não sabe que Deus também precisa de você?”, pergunta Buber a certa altura de Eu e Você. “Sim, não sabe que Deus, na completude de sua eternidade, precisa de você? De que forma o homem existiria se Deus não precisasse dele, e de que forma você existe? Você precisa de Deus para ser, e Deus precisa de você — para aquilo que é o significado de sua vida. […] A criação — ela acontece conosco, ela irrompe dentro de nós; trememos e esmorecemos, nós nos submetemos. A criação — participamos dela, encontramos o criador, e nos oferecemos a ele em sacrifício, ajudantes e companheiros.” {FIM}


Observações:

1. O problema das quatro cartas foi criado pelo psicólogo Peter Wason em 1966. Desde então, pesquisadores têm aplicado esse problema a milhares de voluntários. A maioria daqueles que não têm treinamento técnico erra na resposta, como fez Implicação-L. No entanto, como diz o filósofo Michael Beaney, a maioria absoluta dos voluntários no fim das contas compreende os motivos pelos quais a resposta errada é errada e a certa é certa. “Esse é um resultado muito significativo”, escreveu Beaney em Analytic Philosophy: A Very Short Introduction. “Ele mostra que, mesmo que tenhamos cometido um erro de pensamento em alguma situação, podemos aprender a reconhecer o erro — e portanto mostra que todos somos capazes de raciocínio lógico.”

2. O livro de Buber, Ich und Du, é difícil, mas estimulante: muda o modo como o leitor olha o mundo. Eu li a excelente tradução para o inglês de Walter Kaufmann, I and Thou, cujo prefácio é nota 10. (Não leio alemão, mas sei que ela é excelente porque Rafael Buber, o filho de Martin Buber, falava inglês bem e a classificou como excelente.) Estritamente falando, a tradução de Kaufmann para Ich und Du é I and You (Eu e Você), mas como o título I and Thou ficou famoso nos Estados Unidos graças a uma tradução anterior, Kaufmann e Rafael Buber decidiram manter I and Thou na capa e I and You no miolo.

3. Se você gosta de ficção científica e de fantasia, o livro de Ted Chiang, Stories of Your Life and Others, é entretenimento de ótima qualidade. Chiang entende de computação, matemática, e física, e além disso escreve bem.

4. Há muita pesquisa em curso sobre a ideia de implicação. Lógicos e filósofos tentam criar uma lógica (sintaxe e semântica) que abarque outras concepções de implicação além da concepção de implicação material. Entender todos os significados possíveis do termo “se x, então y” exige entender todos os significados possíveis do termo “condições necessárias e suficientes”, o que ainda é um problema filosófico complicado.

5. (6 Junho 2022) Na publicação original desta postagem, havia um erro no enunciado do problema. Quem me avisou foi o leitor Paulo Sidarta Dysman Gomes. O enunciado original não deixava claro se podia haver uma carta com uma letra de um lado e outra letra do outro lado; se esse fosse o caso, o leitor teria de virar também a carta M, para ver se do outro lado há uma vogal.