Mapas de Royce, uma pitada de teologia, e outra de filosofia da matemática


Pode existir um mapa da Inglaterra perfeitamente completo? Tão completo que, no próprio mapa, há um mapa do mapa? Tão completo que, no mapa do mapa, há um mapa do mapa do mapa? Tão completo que, no mapa do mapa … do mapa (n vezes), há um mapa do mapa … do mapa (n + 1 vezes) — e assim por diante ao infinito?

Quem fez a si mesmo essa pergunta foi o filósofo americano Josiah Royce. Ela está no livro The World and the Individual [O Mundo e o Indivíduo], de 1898. Por exemplo, neste trecho:

Qualquer que seja nossa teoria a respeito do significado dos verbos ser e existir, suponha que alguém […] nos garantisse a verdade da afirmação a seguir, qual seja: “Aberto sobre a superfície da Inglaterra, e portanto aberto dentro do território inglês, existe de alguma forma um mapa absolutamente perfeito de toda a Inglaterra — não interessa aqui como foi feito, nem quando.” Suponha que já aceitamos essa afirmação como sendo verdadeira. Daí em algum momento tentamos descobrir o significado implícito nessa afirmação. Devemos de imediato observar que a afirmação a seguir, “Uma parte da Inglaterra mapeia perfeitamente a Inglaterra inteira, mas numa escala menor”, nos diz algo não sobre o processo de desenhar mapas, mas sim sobre a coexistente presença, na Inglaterra, de um número infinito de mapas, mapas tais como foram descritos. Estaríamos afirmando a série infinita inteira, que não possui um último termo, como sendo um fato da existência. O mapa absolutamente perfeito da Inglaterra, repousado aberto sobre uma parte do território inglês, se realmente foi executado à perfeição, contém necessariamente em sua estrutura uma série de mapas dentro de mapas tais que nenhum dos mapas pode ser o último da série.

Há um jeito simples de visualizar o que Royce está dizendo: imagine que a Inglaterra é um quadrado dividido em quatro partes iguais por uma cruz, isto é, uma linha vertical e outra linha horizontal. Assim:

Use o quadrado inferior direito para colocar, aberto, o mapa perfeito da Inglaterra.

Mas, se esse mapa é absolutamente perfeito, então contém um segundo mapa dentro do primeiro mapa, um terceiro mapa dentro do segundo mapa, um quarto mapa dentro do terceiro mapa, e assim por diante. Eis as regras desse objeto abstrato recursivo:

Regra inicial. O primeiro mapa M0 é um quadrado dividido em quatro quadrados iguais por duas semirretas em cruz.

Regra de sucessão. Para qualquer n, o mapa sucessor Mn+1 é igual ao mapa Mn, mas com o quadrado inferior direito dividido em quatro quadrados iguais por meio de duas semirretas em cruz.

Regra de limite. O mapa-limite Mω é a sobreposição dos mapas Mn para todo n inteiro não negativo.

Na figura a seguir, veja as primeiras seis iterações deste mapa de Royce.

Royce propôs tais objetos abstratos (que hoje se chamam “mapas de Royce”) porque estava preocupado com teologia. Queria tornar clara a ideia de que ninguém necessariamente precisa de profetas, bíblias, pregadores, ou igrejas prepotentes para se tornar tão moralmente perfeito quanto é humanamente possível. Um mapa de Royce serve para deixar precisa a ideia de que, em tese, pode haver dentro de um ser humano uma imagem — um mapa — do Absoluto Infinito do qual esse ser humano finito faz parte. “Não quero um Absoluto estéril, que devore o indivíduo”, Royce escreveu certa vez. Se o homem é uma espécie de figura geométrica com trilhões de detalhes, uma figura que reflete, em menor medida, o Absoluto do qual faz parte, então tem condições de olhar para si mesmo, de investigar-se, e assim também investigar o Absoluto além de si; e para nada disso precisa se submeter a um profeta o qual nunca viu, ou a um livro cheio de contradições e de erros factuais. “Quero um Absoluto que permita o florescimento daqueles que buscam a verdade.”

Mais tarde, mapas de Royce foram usados por matemáticos e por filósofos (especializados em matemática ou em metafísica) para deixar precisas cinco ideias importantes: (1) definições recursivas, (2) o infinito de Dedekind, (3) coisas finitas, (4) complexidade infinita, e (5) complexidade finita.

Definições recursivas. Uma definição recursiva tem sempre três regras: a regra inicial, a regra de sucessão, e a regra de limite. Até onde se sabe, é o único jeito de descrever uma estrutura infinita com número finito de símbolos. Em muitas definições matemáticas, referentes a objetos abstratos infinitos, as três regras estão implícitas.

Infinito de Dedekind. Um conjunto S é infinito, ou é infinito de Dedekind, se e somente se (se-se) existe um subconjunto próprio T de S tal que a cardinalidade de T é igual à de S, isto é, tal que os elementos de T podem ser postos em correspondência um a um (bijeção) com os elementos de S.

Finito. Um conjunto S é finito se-se não é infinito, isto é, se-se S não contém um subconjunto próprio T tal que T tem a mesma cardinalidade de S.

Complexidade infinita. Uma estrutura S é infinitamente complexa se-se S contém uma parte própria T tal que T tem a mesma forma que S. A parte própria T se chama “subestrutura própria de S”; e a parte própria T tem a mesma forma de S se-se existe um isomorfismo de S para T. Se duas estruturas têm a mesma forma, então elas são igualmente complexas; se x tem exatamente a mesma forma que y, então x é tão complexa quanto y. Assim, os mapas de Royce são estruturas infinitamente complexas; e se o Absoluto tem uma estrutura infinitamente complexa, passa a ser razoável a ideia de que cada ser humano contém em si mesmo informação suficiente sobre o Absoluto para, se quiser, levar uma vida tão divina quanto humanamente possível.

Complexidade finita. Um todo é finitamente complexo se-se não é infinitamente complexo. Mais precisamente, um todo S é finitamente complexo se-se, para toda parte própria T de S, T é menos complexa que S.

O mapa de Royce que acabou de ver é útil para pensar sobre as inter-relações entre duas posições importantes na filosofia da matemática atual: ficcionalismo e platonismo. O ficcionalista diz que afirmações como “o número 3 é primo” são uma espécie de ficção; são afirmações aparentadas com “Sherlock Holmes toca violino bastante bem”. A afirmação “Sherlock Holmes toca violino bastante bem” é sobre um personagem de ficção, Sherlock Holmes, que, de acordo com a ficção, é um ótimo detetive e um ótimo violinista; a afirmação “o número 3 é primo” é sobre um personagem de ficção, o número 3, que, de acordo com a ficção, entre outras coisas é primo e divide os inteiros 6, 9, e 12. O platonista, por sua vez, diz que afirmações como “o número 3 é primo” não são uma espécie de ficção; ao contrário, são verdadeiras porque de fato existe um objeto abstrato que é isomórfico com o que o brasileiro chama de “o número três” e o inglês chama de “the number three”. Uma das características desse objeto abstrato é esta: ele só pode ser dividido em três partes iguais de 1 unidade cada uma, ou então em uma única parte de 3 unidades — não há nenhuma outra maneira de dividi-lo em partes iguais de unidades, isto é, o número 3 é primo.

O ficcionalista diz que a matemática é útil porque seus personagens ficcionais são feitos especialmente para que sejam úteis como analogia para os fenômenos do universo. São personagens simples, como pontos, retas, triângulos, números, conjuntos, relações, funções; e o matemático descobre como tais personagens interagem uns com os outros por meio de uma linguagem muito bem comportada, cujo nome é “lógica”. Visto que os personagens matemáticos são simples e que seu comportamento pode ser bem conhecido, eles servem como analogia para os fenômenos que constituem o universo: para investigar algo que não conhece, o homem precisa partir de algo que conhece — de algo que ele mesmo criou; por exemplo, a matemática. O platonista diz que a matemática é útil porque tudo o que existe ou é um objeto abstrato, pura e simplesmente, ou supervém num objeto abstrato. O universo em que vivemos, de acordo com o platonista, é um objeto concreto infinito que supervém numa coleção muito complicada, e também infinita, de objetos abstratos. Ele é, para simplificar um pouco, estritamente idêntico a uma coleção complicada de objetos abstratos. O platonista contemporâneo é um monista: só existem objetos abstratos — nada mais existe além disso. Alguns desses objetos abstratos servem de substrato para universos concretos, ou então, o que é um jeito diferente de dizer a mesma coisa, todo universo concreto supervém num universo abstrato.

Suponha, por um momento, que o platonismo é verdadeiro. Suponha também que a Natureza é infinitamente complexa. Ela inclui o universo em que vivemos (codinome UH), mas também inclui qualquer outro universo que possa existir — assim, o universo UH é subconjunto da Natureza. (Se houver outros universos, daí UH é subconjunto próprio da Natureza.) Por fim, use o mapa de Royce Mω para representar a Natureza.

Se isso for verdade, daí a matemática atual é algo mais ou menos assim:

Tudo o que os matemáticos inventaram e descobriram até hoje está contido dentro dos três círculos vermelhos; é pouco para compreender tudo aquilo que constitui a Natureza. É por isso que, em muitas situações práticas, parece que a matemática é inadequada; parece que é insuficiente. Além disso, é bem possível que grandes trechos da matemática atual não se refiram ao universo UH, mas a partes da Natureza que não fazem parte, de maneira nenhuma, de UH. Talvez se refiram ao que existe em outros universos. Se esse último ponto for verdadeiro, daí tais grandes trechos de matemática são, do ponto de vista de gente excessivamente pragmática, inúteis.

Em outras palavras, usando o mapa de Royce Mω como analogia, é fácil ver que a seguinte hipótese talvez seja verdadeira: a matemática atual é incompleta, em primeiro lugar; e, em segundo lugar, uma parte dela talvez seja completamente inútil para aqueles de inabalável espírito prático, pois não serve para modelar nada que existe concretamente em nosso universo UH. E tudo isso junto explica por que a tese do ficcionalista faz sentido — mesmo que o platonismo seja verdadeiro.

Jorge Luis Borges, o famoso escritor argentino, conhecia alguns dos textos de Josiah Royce, a quem admirava; escreveu várias estórias usando o mapa de Royce como referência. Em 1964, num de seus ensaios, escreveu o seguinte:

As invenções da filosofia não são menos fantásticas que aquelas da arte: Josiah Royce, no primeiro volume de seu trabalho O Mundo e o Indivíduo (1898), formulou o seguinte: “Vamos imaginar que uma porção do solo da Inglaterra foi nivelado à perfeição e que, sobre ele, um cartógrafo traça um mapa da Inglaterra. O trabalho é perfeito: não há detalhe sobre o solo da Inglaterra, por menor que seja, que não esteja registrado no mapa; tudo tem no mapa sua correspondência. Esse mapa, se for assim, deve conter um mapa do mapa, que deve conter um mapa do mapa do mapa, e assim por diante ao infinito.” Por que ficamos inquietos com o mapa dentro do mapa e com as mil e uma noites dentro do livro As Mil e Uma Noites? Por que nos inquieta que Dom Quixote seja um leitor de Quixote e que Hamlet seja um espectador de Hamlet? Acredito que descobri a razão: tais inversões sugerem que, se os personagens de obras ficcionais podem ser leitores ou espectadores, então nós, seus leitores e espectadores, podemos ser ficções.

Talvez a realidade platônica seja uma ficção criada pelo homem. Talvez o homem seja apenas um personagem, entre infinitos outros, cuja existência é dádiva de entidades platônicas. Talvez o platonismo seja verdadeiro, afinal de contas, mas o homem só pode explorar a realidade platônica por meio de suas ficções, especialmente as ficções de caráter matemático. {FIM}


Observações:

1. Não estou dizendo que nosso universo UH é infinitamente complexo, isto é, que uma parte própria dele é isomórfica com UH inteiro.

2. Mesmo que o universo UH não seja infinitamente complexo, um mapa de Royce serve para mostrar que uma parte de UH pode conter muita informação sobre todo o resto de UH. Assim, não é absurdo pensar que a cultura humana, tomada como um todo (incluindo a ciência), é uma parte de UH na qual há bastante informação sobre UH como um todo.

3. O mapa de Royce Mω tem duas propriedades: (a) Se os lados de M0 medem x unidades de comprimento, a área do mapa mede x2 unidades de área; (b) O perímetro total do mapa, incluindo as linhas internas, mede 8x unidades de comprimento. Provar a propriedade (b) é um bom exercício para quem está começando a lidar com séries infinitas. Depois, vale a pena comparar o mapa de Royce Mω com a curva de Koch para escrever um ensaio: Por que o comprimento do perímetro de Mω é finito, mas o da curva de Koch é infinito?

4. Para saber mais sobre isomorfismos, veja a postagem Filosofia da Mente: O Mapa e o Território.

5. Para saber mais sobre o conceito de superveniência, veja a observação 5 no pé da postagem O “Zaratustra” de Nietzsche e a Liberdade do Matemático.

6. Quando uso o termo “homem”, em geral quero dizer o conjunto dos elementos x tais que x é um indivíduo da espécie humana.

7. Você viu no texto: talvez a existência de todas as coisas, incluindo o homem, seja um presente de entidades platônicas. Lembrete: segundo o platonismo contemporâneo, entidades platônicas não têm mentalidade. Elas não são entidades conscientes; elas não são pessoas. Ao contrário, são semelhantes ao processo de modificação das espécies por seleção natural, que não tem mentalidade, mas que é capaz de feitos maravilhosos de engenharia.

Teoria de modelos na arte da escrita e da matemática


Num bom curso de jornalismo, o estudante aprende a usar uma ferramenta intelectual útil à beça na hora de se sentar ao computador e escrever. Neste artigo, quero ajudá-lo a entender umas poucas ideias da teoria de modelos (um tema da lógica) para ver como essa ferramenta jornalística funciona, de modo que será capaz de aplicá-la na redação de seus textos para deixá-los mais claros e vigorosos.

O propósito da ferramenta é obrigá-lo a pensar em oito aspectos importantes de qualquer estória, e por “estória” quero também dizer “história”, “ensaio”, “memorial”, “argumento” — pois o leitor, ao escrever qualquer tipo de texto, sai ganhando se souber manejar os elementos básicos de uma estória. Os oito aspectos cabem numa pergunta:

Quem fez o quê a quem, onde, quando, como, por quais motivos, e com quais consequências?

Veja como transformar a pergunta numa afirmação mais completa, presentificada (pois, na imaginação, tudo sempre ocorre numa espécie de presente eterno), com os aspectos em destaque e numerados:

Ao escrever cada frase, cada parágrafo, o redator criterioso deve refletir sobre oito aspectos: (Que pessoa ou coisa)1(está fazendo o quê)2(a qual pessoa ou coisa)3, (onde)4, (quando)5, (como)6, (em razão de quais intenções ou causas)7, e (com quais consequências)8.

Quando digo que você deve pensar nesses oitos aspectos ao escrever cada parágrafo, não quero dizer que incluirá informações sobre cada um dos aspectos em cada um dos parágrafos, mas sim que pensará neles constantemente enquanto escreve. Talvez inclua um aspecto num parágrafo; talvez não.

Essa ferramenta precisa de um nome. Vou chamá-la de “Ferramenta Oito”, com as letras “F” e “O” maiúsculas. Para ver como a Ferramenta Oito funciona, nada melhor que um exemplo. Visto que escrever é imaginar, pensar, e pôr no papel as palavras que bem representam a imaginação e o pensamento, e visto que não posso mostrar a você o que se passa na minha mente (para então mostrar como a imaginação e o pensamento depois se transformam em palavras), não tenho escolha exceto começar direto com palavras… O parágrafo a seguir é de Wilfrid Hodges, um famoso professor de lógica, que o escreveu para passar as ideias mais básicas da teoria de modelos. Mais adiante, você usará a Ferramenta Oito e esse parágrafo de Hodges para escrever e reescrever uma estória bem breve.

“Às vezes escrevemos ou dizemos uma afirmação S que não expressa nada verdadeiro (ou falso), pois falta alguma informação crucial sobre o que certas palavras significam. Se seguimos em frente e adicionamos essa informação, de modo que S passe a expressar algo verdadeiro (ou falso), dizemos que interpretamos S, e dizemos ainda que a informação adicionada é uma interpretação de S. Caso a interpretação I faça com que S expresse algo verdadeiro, dizemos que I é um modelo de S, ou que I satisfaz S, e escrevemos isso com símbolos desta maneira: ‘IS’. Outro jeito de dizer que I é um modelo de S é dizer que S é verdadeira em I, e daí temos a noção de verdade relativa a um modelo, que é uma verdade de acordo com uma interpretação específica. Mas deve-se lembrar que a afirmação ‘S é verdadeira em I’ nada mais é que uma paráfrase de ‘S, quando interpretada como em I, é verdadeira’; assim, a verdade relativa a um modelo é parasitária da noção comum de verdade, e sempre podemos usar noções comuns de verdade para parafrasear uma verdade relativa a um modelo.”

Suponha agora que Tio Patinhas entrou na sala em que estão trabalhando Pato Donald e Peninha, e berrou, muito excitado:

“Eles estão levando todas elas!”

Pense: Quem (Tio Patinhas) fez o quê (abriu a porta abruptamente e disse: “Eles estão levando todas elas!”) a quem (à porta, que abriu; ao Pato Donald e ao Peninha, aos quais disse a frase), onde (no escritório em que trabalhavam Pato Donald e Peninha, no prédio da caixa forte), quando (agora há pouco, no tempo atemporal das estórias em quadrinhos), como (abriu a porta abruptamente; entrou no escritório excitado; disse a frase berrando de excitação), por quais motivos (porque “eles estão levando todas elas!”), e com quais consequências (deu um susto no Donald e no Peninha, e os colocou para pensar).

Pense um pouco mais: Quem (Pato Donald e Peninha) fez o quê (trabalhavam sentados à máquina de escrever, cada um na sua escrivaninha) a quem (a eles mesmos: simplesmente trabalhavam), onde (no escritório em que estavam, no prédio da caixa forte), quando (agorinha mesmo, no tempo atemporal das estórias em quadrinhos), como (trabalhavam tranquilamente, mas levaram um susto com a entrada do Tio Patinhas), por quais motivos (eles são funcionários assalariados do tio), e com quais consequências (passaram a pensar no significado de “Eles estão levando todas elas”).

Reescreva com o que descobriu ao pensar:

Pato Donald e Peninha trabalhavam num escritório localizado na caixa forte do Tio Patinhas, sentados à máquina de escrever, cada um na sua escrivaninha, tranquilos da vida, quando de repente a porta do escritório se abriu furiosamente num “Blam!”, e Tio Patinhas entrou muito excitado e disse, quase berrando:

“Eles estão levando todas elas!”

Essa é a ideia: numa estória (ou história, notícia, reportagem, ensaio, argumento), algo ou alguém está agindo sobre algo ou alguém. Talvez esteja agindo sobre si mesmo. Essa ação ocorre num certo lugar, e num certo tempo. Essa ação também é feita de certa maneira específica: suavemente ou bruscamente, silenciosamente ou barulhentamente, lentamente ou rapidamente. Quem realiza a ação tem lá seus motivos; e se o sujeito da ação não é uma pessoa, mas sim uma coisa ou um processo da Natureza, então o sujeito realiza a ação em razão de um conjunto de causas, ou de um conjunto de leis da Natureza. E toda ação tem consequências — sobre o próprio sujeito, sobre outras pessoas ou coisas, sobre outros processos da Natureza. E então o ciclo se repete.

Um problema importante: quando Tio Patinhas disse “Eles estão levando todas elas!”, o que quis dizer com “eles”? O que quis dizer e com “elas”?

No dia anterior aos acontecimentos dessa estória, Tio Patinhas havia dito a Peninha que, na manhã seguinte, uma equipe de decoração de interiores trocaria todas as flores do prédio, e que Peninha deveria supervisionar a operação. Assim, quanto o tio entrou no escritório todo excitado, Peninha pensou:

“Ah, os funcionários da empresa de decoração estão levando todas as flores. Mas por que a excitação? Por que a entrada tão abrupta?”

Naquela mesma manhã, quando chegou à caixa forte e estacionou o carro, Pato Donald viu um caminhão suspeito parado nas redondezas, e não pôde evitar um sentimento de desconfiança. Pensou: “Parece um dos caminhões que os Irmãos Metralha gostam de usar.” Pato Donald sabe o quanto os Irmãos Metralha adorariam pôr as mãos nas moedinhas da caixa forte. Por isso, quando o tio irrompeu no escritório e disse a frase, Pato Donald perguntou:

“Os Irmãos Metralha estão levando todas as moedinhas?!”

Tio Patinhas então respondeu:

“Sim! Socorro! Chamem o Coronel Cintra! Chamem o Mickey e o Pateta!”

Use agora o parágrafo de Hodges. Veja que “Os funcionários da empresa de decoração estão levando todas as flores” é uma interpretação de “Eles estão levando todas elas”, interpretação na qual “eles” = “os funcionários da empresa de decoração” e “elas” = “as flores”. Além disso, “Os Irmãos Metralha estão levando todas as moedinhas” também é uma interpretação de “Eles estão levando todas elas”, na qual “eles” = “os Irmãos Metralha” e “elas” = “as moedinhas”. Só uma dessas duas interpretações, contudo, é um modelo de “Eles estão levando todas elas”, que é a interpretação “Os Irmãos Metralha estão levando todas as moedinhas”, pois essa interpretação torna “Eles estão levando todas elas” verdadeira. Assim, para usar a notação mais técnica, “Os Irmãos Metralha estão levando todas as moedinhas” ⊧ “Eles estão levando todas elas.”

A frase “Eles estão levando todas elas” tem vários nomes na lógica: função afirmacional, função sentencial, função proposicional. É uma função porque, conforme você substitui “eles” e “elas” por outros termos, retirados do domínio do discurso, talvez a afirmação declarativa resultante seja verdadeira ou falsa. Acontece algo semelhante na matemática: a expressão x + y = 8 é verdadeira se x = 10 e y = –2, mas falsa se x = 2 e y = 5. Se combinar com seu leitor que o domínio do discurso é o conjunto Z dos inteiros, daí também pode chamar x + y = 8 de função afirmacional, pois, conforme os valores que atribui para x e y, valores retirados do domínio do discurso, você obtém uma afirmação declarativa com valor de verdade específico — verdadeiro em alguns casos, ou então falso em outros. Assim, 10 + (–2) = 8 é um modelo de x + y = 8, ou 10 + (–2) = 8 ⊧ x + y = 8.

Pode ver agora que a Ferramenta Oito é ela mesma uma função afirmacional. Conforme os valores que atribui para cada uma das oito variáveis, você obtém uma frase verdadeira (se é consistente com os fatos), ou então falsa (se é inconsistente com os fatos). “Ser consistente com os fatos”, por sua vez, depende da situação e do domínio do discurso. Para o cientista, algo consistente com os fatos é, em última análise, algo consistente com observações cuidadosas da Natureza; para o leitor de uma estória de ficção, como uma estória do Tio Patinhas, é algo consistente com os fatos do restante da estória — é algo consistente com as demais afirmações da estória e com as figuras desenhadas nos quadrinhos.

Com a ideia de função afirmacional, de interpretação, e de modelo (= interpretação verdadeira), você entende melhor o que acontece naquelas demonstrações matemáticas nas quais o autor prova um caso e depois escreve: “Os demais casos são semelhantes.” Suponha a seguinte afirmação:

Teorema 1. Se x é par, x2 é par; se x é ímpar, x2 é ímpar.

O matemático talvez prove o teorema assim:

Prova. Faça x = 2k para algum inteiro k. Daí x é par, pois 2 divide 2k. Multiplique x por si mesmo: x2 = (2k)2 = 4k2 = 2(2k2). Fica fácil ver que 2 divide x2 = 2(2k2), e portanto x2 também é par. O caso para x ímpar é semelhante. ∎

Como o leitor pode interpretar essa frase, “O caso para x ímpar é semelhante”? O que tem fazer é montar uma função afirmacional com a primeira parte da prova, e depois escolher um modelo dessa função para o caso ímpar, isto é, escolher uma interpretação verdadeira dessa função para o caso ímpar. Mais ou menos assim:

Função afirmacional A. Faça x = [algo que caracterize o inteiro x com a propriedade F, como a propriedade de ser par]. Daí x é F, pois [explicação de por que x é F, tendo sido caracterizado como foi]. Multiplique x por si mesmo: x2 = [explicação de por que x multiplicado por x é F, em razão do modo como foi caracterizado]. Fica fácil ver que [F é característica marcante de x2], e portanto x2 é F.

Agora uma interpretação verdadeira da função afirmacional acima.

Prova do teorema 1, parte 2. Faça x = 2k + 1 para algum inteiro k. Daí x é ímpar, pois 2 não divide 2k + 1. Multiplique x por si mesmo: x2 = (2k + 1)2 = 4k2 + 4k + 1 = 2(2k2 + 2k) + 1. É fácil ver que 2 não divide x2 = 2(2k2 + 2k) + 1, e portanto x2 é ímpar. ∎

Veja como prova da parte 2 do teorema 1 é um modelo da função afirmacional A, que, por sua vez, foi construída a partir da primeira parte do teorema 1; e isso quer dizer que essa primeira parte do teorema 1 também é um modelo da função afirmacional A. Portanto, quando o matemático diz, “Os demais casos são semelhantes”, está dizendo: use a prova do caso 1 para construir uma função afirmacional, e depois use a função para construir a prova dos demais casos, sendo que cada um dos demais casos é um modelo da função.

Esse é um movimento comum na lógica e na matemática: você começa com uma afirmação verdadeira; substitui partes dessa afirmação por variáveis (na prática, por símbolos que representam elementos, relações, e funções contidos na afirmação original), construindo desse modo uma função afirmacional; e depois você tem condições de substituir os símbolos por conceitos adequados, de modo a obter novas afirmações; e se fizer isso com cuidado, as novas afirmações são igualmente verdadeiras. Ao usar a Ferramenta Oito, você também faz constantemente esse movimento de partir de uma função afirmacional e chegar a uma afirmação ou frase. Se tomar muitos cuidados, todos os parágrafos que produzir desse modo serão consistentes com sua imaginação e com suas memórias. E, por fim, caso haja boa correspondência entre sua imaginação e suas memórias com os fatos, com a realidade do mundo, daí os parágrafos que produzir com esse método serão verdadeiros.

Talvez tenha a ideia de conversar sobre a Ferramenta Oito com um jornalista — cuidado! Prepare-se para um pouco de frustração. A maioria dos jornalistas que conheço usa mal a ferramenta: acredita que deve usá-la apenas na redação do primeiro parágrafo de uma matéria, e que tem a permissão de esquecê-la ao escrever os demais parágrafos. Isso explica por que tantas matérias acabam sendo publicadas assim: um primeiro parágrafo bom, bem escrito, seguido de parágrafos confusos e mal-ajambrados. Porém, esse fenômeno social não diminui em nada o valor da Ferramenta Oito — qualquer pessoa que aprenda a usá-la ao escrever cada frase, cada parágrafo, vai com a prática melhorar bastante a qualidade de seus textos. {FIM}


Observações:

1. Com a Ferramenta Oito, você tem condições de controlar certas transições importantes para o leitor, especialmente três: transição de tempo, transição de lugar, e transição de fundo emocional.

Por exemplo, se uma cena está ocorrendo num certo dia, mas outra cena ocorre num outro dia, você precisa marcar claramente a transição para o leitor. Às vezes, um simples fragmento de frase é suficiente: “dois dias depois”, “na manhã seguinte”, “quinze dias depois”; da mesma forma: “na tarde daquele mesmo dia”, “logo depois do almoço”, “terminado o café”.

Também pode marcar transições de lugar com simplicidade: “abriu a porta e examinou atentamente a sala de TV” (segue-se uma descrição do que o personagem viu na sala); “a viagem de ônibus durou só duas horas” (para marcar a mudança de cenário de uma cidade para outra); “quando passou pela porta do salão de festas, viu que a maioria dos convidados já segurava alguma bebida” (segue-se uma descrição de como o personagem interagiu com alguns dos convidados).

As transições de fundo emocional são especialmente importantes. Suponha que um personagem diga duas frases, em dois momentos distintos da estória: “Eu já disse isso” e, depois, “Tudo bem, eu digo de novo.” Uma coisa é se ele diz a primeira frase com raiva, e a segunda conformado com seu destino; outra coisa é se diz a primeira frase com surpresa, e a segunda com tristeza.

Para notificar o leitor de uma transição realmente importante, às vezes você se sentirá compelido a escrever uma transição longa. Uma estória sobre a exploração de um território novo é, de certa forma, a história de uma transição — do lar doce lar, de um lado, para um lugar nunca visto antes, de outro.

É bem possível que o redator pense nessas três transições importantes ao pensar nos aspectos (onde)4, (quando)5, e (como)6, e daí só deve tomar o cuidado adicional de notar quando uma transição ocorre e de notificá-la claramente ao leitor.

2. Veja que, ao usar a Ferramenta Oito, você automaticamente alinha personagem com sujeito, ação com verbo; de certa forma, o esquema personagem = sujeito, ação = verbo está embutido na Ferramenta Oito. Para saber mais sobre personagem = sujeito, ação = verbo, leia neste blogue o artigo Dois princípios para escrever bastante bem. Como exercício, use a Ferramenta Oito para estudar os exemplos mencionados no artigo.

3. Usei mais vezes o termo “parágrafo” do que o termo “frases e parágrafos” porque acho o parágrafo uma unidade de texto muito conveniente. Em outras palavras, faço mais frequentemente a pergunta “Que efeitos estou tentando produzir com este parágrafo?” do que a pergunta “Que efeitos estou tentando produzir com esta frase?” Se o leitor se transformar num bom redator de parágrafos, está a um passo de se transformar num bom redator de textos mais longos.

4. Os jornalistas não conhecem a Ferramenta Oito pelo nome “Ferramenta Oito”, que inventei especialmente para este artigo. Em geral, falam apenas “lide”, nome que dão ao primeiro parágrafo de um texto. (“Lide” vem da palavra inglesa “lead”.) Deixam subentendida a ideia de que o lide = primeiro parágrafo deve conter um resumo da matéria como um todo, com resposta a cada um dos oito aspectos, ou pelo menos aos aspectos mais importantes. De novo, essa ideia é falsa: às vezes, o primeiro parágrafo deve sim conter um resumo da matéria como um todo, mas, muitas vezes, não deve. A função essencial do primeiro parágrafo é fazer o leitor se interessar pelo texto, e há mil maneiras de cumprir essa função, das quais só uma delas é escrever um resumo do texto como um todo.

5. Na semântica formal, uma função afirmacional é às vezes chamada de “condições de verdade de uma forma sintática”, ou, mais simplesmente, “condições de verdade”.

6. A mais simples definição de verdade, que é extensamente usada na lógica, é a de Tarski.

Definição simples de verdade. Uma afirmação “P” é verdadeira se e somente se P.

Não parece grande coisa, mas foi uma das grandes descobertas do século 20. Essa definição funciona assim: você mantém intocada a afirmação entre aspas, mas troca a afirmação sem as aspas por uma versão mais específica — por um procedimento pelo qual verificar a verdade da afirmação entre aspas. Por exemplo:

(A1) “A neve é branca” é uma afirmação verdadeira se-se a neve é branca.

Essa é sua primeira tentativa, seguindo de perto a definição de Tarski. Depois de pensar um pouco sobre o que significa a neve ser branca, você chega à seguinte versão:

(A2) “A neve é branca” se-se, caso eu leve um punhado de neve para todos os seres humanos da Terra, e pergunte qual é a cor daquele punhado de neve, cada uma das pessoas diga, na sua própria língua, que aquele punhado de neve é branco.

Depois de pensar mais, você chega a uma terceira versão:

(A3) “A Neve é branca” se-se um especialista em cores me disser que a neve é branca, mostrando um objeto de referência que seja branco, para que eu veja que a cor da neve é a mesma cor do objeto de referência.

E, se quiser, pode combinar a versão A2 com a A3:

(A4) “A neve é branca” se-se, caso eu leve um punhado de neve para todos os seres humanos da Terra, e pergunte qual é a cor daquele punhado de neve, cada uma das pessoas diga, na sua própria língua, que aquele punhado de neve é branco; e, além disso, “a neve é branca” se-se um especialista em cores me disser que a neve é branca, mostrando um objeto de referência que seja branco, para que eu veja que a cor da neve é a mesma cor do objeto de referência.

7. Nem preciso dizer, mas Tio Patinhas, Pato Donald, Peninha, Irmãos Metralha, Coronel Cintra, Mickey, e Pateta são personagens da Disney. Minha mais antiga memória de leitura, quando eu ainda nem estava na escola, é com uma revista do Tio Patinhas. Na segunda vez em que minha mulher e eu viajamos para a Escócia, pudemos passar uns dias em Glasgow; fiquei emocionado quando o táxi nos levou do aeroporto para a cidade, pois sabia que o Tio Patinhas nasceu em Glasgow…