Quando a intuição nos trai, quando a matemática nos salva


Matemáticos especializados em axiomática estão sempre criando sistemas axiomáticos que sirvam para demonstrar até mesmo afirmações das quais ninguém duvida. O matemático britânico Bertrand Russell, por exemplo, partindo de um conjunto de axiomas muito simples, deu-se ao trabalho de escrever centenas de páginas de lógica formal até que estivesse em condições de provar que 1 + 1 = 2. (E teve o senso de humor de notar: “A proposição acima é ocasionalmente útil.”) Os matemáticos estão tão imersos nessa cultura da demonstração que, quando um deles demonstra alguma afirmação que o leigo julga óbvia, e o leigo diante dele acha graça e ri, o matemático se surpreende.

“Uai, não entendi. Está rindo de quê?”

Porém, quem deixa o raciocínio lógico de lado e se deixa levar só pela intuição não ri por último nem ri melhor. Quer ver? Tente resolver o problema abaixo usando tão somente a intuição.

1. Suponha que possa circundar a Terra, na linha do equador, com uma corda — uma corta bem esticada, repousada sobre o chão. Suponha ainda, para simplificar, que a Terra é uma esfera perfeitamente lisa.

2. Em seguida, dê 1 metro de folga nessa corda em volta da Terra, para afrouxá-la um pouco. Com isso, formou dois círculos cujo centro é o mesmo — um deles é a linha do equador da Terra e o outro, um metro mais comprido, é a corda. Em linguagem mais matemática, você formou dois círculos concêntricos; a circunferência da corda é 1 metro maior que a circunferência da Terra na linha do equador. (Circunferência: número real que denota a medida do comprimento do círculo, que, por sua vez, é o conjunto de pontos equidistantes de um ponto central.)

3. Terá assim um vão entre a Terra e a corda, ou melhor, uma diferença x entre o raio dos dois círculos. Então, use a sua intuição para responder: qual é o valor aproximado de x?

Muito leitor (ou leitora) dirá: “Ora, o valor de x deve ser desprezível. A Terra é tão grande. Um metro de comprimento a mais na corda deve dar uma folga de milímetros. Não haverá espaço nem para enfiar a lâmina de uma faca nessa folga!”

Agora use ferramentas matemáticas para dizer: qual é o valor exato de x?

Dica. Você não vai precisar da circunferência da Terra no equador, nem do raio. Só vai precisar de uma fórmula simples, usada para calcular a circunferência C de um círculo de raio r, qual seja, C = 2πr. Arredonde π para 3,1416.


 

 

 

 

 

 

Resolução. Para calcular a circunferência da Terra (e a circunferência da corda bem apertada sobre a Terra):

C = 2πr

Pense em C e r medidos em metros. Para calcular a circunferência da corda com 1 metro adicional de comprimento:

C + 1 = 2π(r + x)

Multiplique 2π por r e por x, usando a propriedade distributiva da multiplicação:

C + 1 = 2πr + 2πx

Já sabe que 2πr é igual a C. Faça a substituição:

C + 1 = C + 2πx

Subtraia C dos dois lados da equação, o que não altera seu valor de verdade em nada:

1 = 2πx

Divida os dois lados por 2π e rearranje:

x = 1/(2π) ≅ 0,16

Visto que está medindo x em metros:

x ≅ 16 centímetros

16 centímetros de folga! Quem diria que só um metro daria tanta diferença? Note que, no fim das contas, x não depende da circunferência C, e então não depende do raio r, mas depende exclusivamente do valor que adiciona à circunferência. Ou seja, essa mesma conta daria 0,16 unidade para qualquer circunferência à qual adicionasse 1 unidade — inclusive a circunferência de uma praça, a circunferência do Sol, a circunferência do círculo que engloba a Via Láctea!

Veja bem: não é o caso de pichar a intuição. Ela é um poderoso artifício do corpo humano, e muitos cientistas fizeram descobertas importantes graças à intuição. Alguns matemáticos, guiados por sua intuição, bancaram afirmações que só foram adequadamente provadas 300 anos depois. Dito isso, a melhor receita é: sempre que possível, passe a limpo a intuição com a matemática. Melhor dizendo: sempre que possível, passe a limpo a intuição com métodos formais de apoio ao pensamento sistemático. {FIM}


Observações:

1. Publiquei esse problema pela primeira vez na revista Cálculo: Matemática para Todos, edição 1, novembro de 2010, pág. 56. A versão que acabou de ler foi revista e ligeiramente reescrita.

2. A primeira versão deste problema foi baseada num artigo de Joel Faria de Abreu, publicado em Explorando o Ensino: Matemática, volume 1, pág. 122. Organizado por Ana Catarina P. Hellmeister, da Sociedade Brasileira de Matemática. Publicado pela Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação.

3. Cuidado com as unidades de medida. Se está medindo a circunferência em metros, e adiciona 1 metro, o resultado será 0,16 metro. Mas se está medindo a circunferência em quilômetros, ou em jardas, ou em centímetros, e adiciona 1 unidade, o resultado será 0,16 quilômetro, ou 0,16 jarda, ou 0,16 centímetro. Em outras palavras, as contas não funcionam quando mede a circunferência em quilômetros, porém adiciona um metro. Use sempre a mesma unidade de medida.

4. Se quiser saber mais sobre os termos “círculo” e “circunferência”, veja a postagem Quer arrumar encrenca? Escolha a palavra ‘círculo’.

5. Pesquisadores especializados em axiomática estudam as fundações da matemática: querem definir claramente o que são termos primitivos e como, a partir deles, podem escrever definições, axiomas, e regras de inferência; e depois disso como, a partir das definições e dos axiomas, podem usar as regras de inferência para provar teoremas. Um axioma, por sua vez, é uma afirmação que deve ser aceita como verdadeira, isto é, uma afirmação para a qual é desnecessário produzir prova. Professores do ensino básico às vezes dizem que, se uma afirmação pode ser deduzida a partir de outras afirmações, então não é um axioma, mas sim um teorema. Essa afirmação não é mais verdadeira há pelo menos 50 anos, por dois motivos. Primeiro: na axiomática moderna, toda afirmação verdadeira é um teorema, e visto que axiomas são por definição afirmações verdadeiras, também são teoremas. (Axiomas são teoremas na forma ⊢ p, isto é, são teoremas que se seguem de uma coleção vazia de afirmações declarativas.) Segundo: num sistema axiomático qualquer, se um axioma pode ser demonstrado a partir dos outros axiomas, mesmo assim o especialista tem o direito de declará-lo como sendo um axioma — por exemplo, para deixar as regras de inferência mais simples. Se quiser saber mais sobre tudo isso, veja o excelente livro Introduction to Logic and to the Methodology of Deductive Sciences, de Alfred Tarski, publicado pela primeira vez em 1941.

6. Este é o texto do aforismo 246 de Nietzsche em A Gaia Ciência:

Matemática. — Vamos introduzir o refinamento e o rigor da matemática em todas as ciências, até onde seja possível, não na crença de que por essa via conheceremos as coisas, mas para assim constatar nossa relação humana com as coisas. A matemática é apenas o meio para o conhecimento geral e derradeiro do homem.”

Há muito o que dizer sobre esse aforismo, mas, dizendo pouco: até onde consigo ver, Nietzsche encarava a matemática como sendo um jeito de dizer as coisas — um jeito refinado e rigoroso, certamente, mas um jeito que passa mais informação sobre o próprio homem do que sobre a Natureza. Assim, para usar o linguajar atual, parece que Nietzsche era ficcionalista com relação à matemática, isto é, para ele a matemática era uma espécie de ficção útil. Essa visão é razoável: Moby Dick também é ficção, e com frequência também é útil como analogia; por que a matemática não seria uma ficção universalmente mais útil que Moby Dick, se tem sido especialmente arquitetada para que seja universalmente útil?

Se quiser, você pode usar esse jeito ficcionalista de ver as coisas para estudar o problema desta postagem: ao brincar com os dois círculos concêntricos, um sendo a linha do equador, o outro sendo a corda com 1 metro extra, não aprende nada sobre o planeta Terra, mas aprende bastante sobre as consequências de pensar com o apoio de termos como “círculo”, “circunferência”, “adicionar”, “concêntrico”, etc. Só que descobrir as consequências de seus pensamentos é, até certo ponto, também descobrir os modos pelos quais a Natureza funciona. Até que ponto? Ora, todo ser humano é parte indissociável da Natureza: sem ela, ele não pode existir; sem ele, ela não pode existir. (É impossível fazer com que uma parte da Natureza simplesmente desapareça, como se nunca houvesse existido.) Sendo assim, de novo: até que ponto? Até o ponto em que há morfismos que levam do homem para a Natureza e da Natureza para o homem; até o ponto em que o homem serve de mapa para o resto da Natureza — e garantir a sensatez desse mapa é a missão do cientista. Reescrevendo o aforismo 246 à luz desta postagem:

Matemática. — Em todas as suas investigações, até onde seja possível, procure expressar seus pensamentos com o refinamento e o rigor da matemática; não na crença de que dessa maneira conhecerá as coisas, mas sim na crença de que, com matemática, deixa mais clara a relação que você mantém com as coisas. Nunca se esqueça: a linguagem (em geral) e a matemática (em particular) são apenas meios pelos quais você tem condições de conhecer melhor a si mesmo; e só assim pode vir a conhecer melhor um bocado do mundo do qual você é parte indissociável.

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