Escrever é bom para aprender (e enriquecer)


Um professor canadense, James Stewart, escreveu um livro didático sobre cálculo para estudar todos os detalhes que nunca tinha tido tempo de estudar. Não contava com o que lhe aconteceria depois — ficar rico.

Qualquer pessoa é capaz de aprender matemática avançada, embora a maioria das pessoas não se sinta capaz disso.

James Stewart à esquerda

James Stewart à esquerda


{1}/ Introdução: sete anos ininterruptos

James Stewart escreveu um livro didático sobre cálculo diferencial e integral, professores e estudantes do mundo inteiro gostaram do livro, e James ficou tão rico, mas tão rico, que pôde encomendar uma casa de 24 milhões de dólares. Com cinco andares e 1.672 metros quadrados, ela é tão grande que James, um ano depois de se mudar, ainda andava pela casa para descobrir detalhes. Assim, bem resumida, a história é tão estranha que parece fantasia.

Mundo afora, muitos professores dão aulas de cálculo, assim como James fazia na Universidade McMaster (perto de Toronto, no Canadá). E muitos professores escrevem bem. Por que James Stewart escreveu o livro que o deixou rico, e os outros não? Em que James difere deles? “Sou uma pessoa muito, muito paciente”, diz James. “Enquanto escrevia meu livro de cálculo, eu dava aulas, fazia pesquisa científica e orientava mestrandos e doutorandos. Trabalhei 13 horas por dia, e todo santo dia, durante sete anos. A maioria dos professores que tenta escrever um livro de cálculo desiste no primeiro ano.” A primeira edição saiu em 1987 e vendeu 20.000 exemplares. Em 1992, James tinha se transformado num best-seller mundial. Hoje 70% das universidades americanas adotam seu livro, assim como 90% das canadenses — no Brasil, um país em que só 11% dos estudantes concluem o ensino médio sabendo o suficiente de matemática, um país em que o salário mínimo vale 880 reais, James vende 30.000 exemplares por ano, a uns 200 reais por exemplar (100 reais cada volume).

Certo dia, James fez uma lista dos dez arquitetos que mais admirava no mundo, e visitou cada um deles; gastou três anos nisso. No fim, contratou um escritório canadense de arquitetura, que lhe construiu a Casa Integral, uma casa cheia de curvas, onde James tem uma academia de ginástica completa e uma sala de música para acomodar 150 pessoas, com piso de pedra calcária assentado em cima de um sistema de aquecimento. Ele pode andar descalço pela casa mesmo no inverno, quando a temperatura fora de casa chega a 14 graus negativos.


A casa integral (Toronto)

A casa integral (Toronto)


{2}/ A entrevista em si

Por que escrever um livro de cálculo?

Uma vez, no final de uma de minhas aulas de cálculo, duas alunas vieram conversar comigo. “Doutor Stewart, queremos lhe fazer uma sugestão”, uma delas me disse. “Gostaríamos que você escrevesse seu próprio livro de cálculo, porque as notas que você escreve no quadro-negro são muito melhores que o livro didático que você nos recomendou.” Eu nunca tinha pensado nisso até aquele dia, mas gostei da ideia. Vários meses depois, me sentei para escrever o livro, e como sou obsessivo e paciente, só parei quando ele estava pronto — trabalhei 2.555 dias sem parar. Em essência, escrevi esse livro para mim mesmo, para usar durante minhas aulas; escrevi também para meus alunos. Fiquei surpreso quando ele se transformou num best-seller.

A família reclamou? Você era casado?

Não! Se fosse casado, teria entrado num divórcio… O velho Earl William Swokowski, que escreveu um bom livro de cálculo, certa vez me contou a conversa que teve com a ex-mulher logo depois de se separar: “Earl, eu até aguentaria uma amante, mas não consigo competir com esse seu livro de cálculo.” [risos] Um livro de cálculo implica muito mais trabalho do que parece à primeira vista. Um livro desses não pode apenas conter boas explicações. Ele tem de ser completamente correto: não pode haver um erro sequer em nenhuma afirmação, em nenhuma resposta no fim do livro.

Ao escrever o livro, você apenas pôs no papel o que já sabia, ou aprendeu alguma coisa?

[pensa por um momento] Sim, sim, descobri muita coisa que não sabia. Isso porque, durante as aulas, eu tendia a cobrir melhor alguns tópicos, e a cobrir menos outros tópicos; algumas coisas eu até pulava. Isso é comum na sala de aula: nenhum professor consegue ensinar a matéria toda. Então, no caso de certos assuntos, eu só os tinha estudado superficialmente.

Pesquisei a literatura, li muito, pensei muito, resolvi muitos exercícios e problemas — enfim, aprendi muita coisa que não sabia direito ao começar o livro. Um exemplo está na parte final, na qual trato do cálculo com múltiplas variáveis [também chamado de cálculo multivariável]. Quando parti para as dimensões mais altas [para além de três dimensões], achei difícil visualizar o cálculo multivariável, pois me senti obrigado a trazer muitas ideias diferentes para o mesmo lugar. Em compensação, quando entendi como a coisa toda funciona, achei essa parte satisfatória; os alunos me dizem que isso acontece com eles também.

Esse meu aprendizado aparece ao longo do livro na forma de problemas quentes, que são problemas mesmo, e não exercícios. O aluno em geral emprega certo método já estudado para resolver os exercícios de um capítulo, mas não conseguiria empregar esse mesmo método para resolver um problema quente. Ele tem de pensar, tem de ser criativo; acho que, se o aluno resolve um problema quente, sente uma alegria semelhante à alegria que o matemático sente quando descobre algo novo.

Hoje você se transformou numa espécie de empresa?

Não, não tenho minha própria empresa. Em compensação, minha editora contratou bastante gente para trabalhar com materiais de apoio: manuais para o professor, resoluções comentadas de exercícios e problemas, vídeos, sugestões de lição de casa, websites, software de apoio ao aluno, essas coisas. A editora montou uma empresa de produções, com dezenas de funcionários, só para produzir material para meus livros. Enfim: não tenho empresa, mas posso dizer que, caso eu desista do cálculo, muita gente perderia o emprego.

Você desistiria do cálculo?

De jeito nenhum! Agora mesmo, estou escrevendo um livro chamado Biocálculo. Será um livro didático para estudantes de ciências da vida: biólogos, médicos, infectologistas, farmacêuticos, bioquímicos. Muitos estudantes de ciências da vida se matriculam em cursos de cálculo no mundo inteiro, ou porque querem se tornar doutores, ou porque querem se especializar, mas eles têm de aguentar um curso de cálculo cheio de exemplos da física e da engenharia. Ora, física e engenharia são assuntos fascinantes, mas talvez um biólogo não se interesse tanto assim por eles. Estou escrevendo esse livro com um biólogo [Troy Day], que será coautor; eu não teria como escrever um livro de biolcálculo sem todo o apoio que a editora agora me dá.

Como escreve? Como é sua rotina?

Eu me torturo com a primeira frase, o primeiro parágrafo. Ando pela casa, gesticulo. Escrever é trabalho duro. Mas, quando consigo capturar aquele primeiro parágrafo dentro da minha mente, sei que o capítulo inteiro ou o livro inteiro fluirá daquele primeiro parágrafo, e isso é muito gostoso. Fico tão feliz quando consigo escolher bem as palavras, quando leio uma frase ou um parágrafo e o texto soa como eu o imaginava. E quando seguro o livro pela primeira vez, é muito bom; fico rindo à toa.

Depois do café da manhã, desço para o escritório e trabalho por umas quatro horas ou mais. Não sou do tipo que precisa parar um pouquinho; posso trabalhar horas a fio. A certa altura, tiro uma hora para almoçar, e volto para o escritório em seguida. Lá pelo fim da tarde, fico meio letárgico, e então saio para caminhar por uma hora. Volto mais animado e escrevo mais. Três dias por semana, malho na academia dentro da minha casa. Depois da malhação, janto, e depois do jantar, volto ao escritório e escrevo mais. De vez em quando, tiro a noite de folga. Sou muito disciplinado.

Você ainda dá aulas?

De dois em dois anos, mais ou menos, dou um curso de cálculo na Universidade de Toronto. Acho importante dar aulas, porque meus alunos me fazem pensar no livro, assim como meus colegas professores. Quando percebo que os alunos não entenderam alguma coisa, revejo a parte do livro correspondente, para ver se ela deve ser reescrita, ou se devo trocar algum exercício ou problema.

Os alunos também me obrigam a ler sobre matemática, porque eles se interessam por muitas coisas, e me fazem perguntas. Por exemplo, quando o Andrew Wiles provou o último teorema de Fermat [em 1993; a prova completa só foi publicada em 1995], me senti obrigado a separar alguns minutos de cada aula para conversar com eles sobre isso.

E entendeu a prova do último teorema de Fermat?

Claro que não! Ela tinha mais de mil páginas, e eu precisaria de uma vida inteira de estudos para entender todos os detalhes que estavam ali. Mas entendi as grandes ideias que entraram na prova, e de que áreas da matemática essas ideias vieram. Acho que todo professor, e me incluo nessa, deve tirar um tempo de vez em quando para estudar alguma coisa que não tem nada a ver com o que ele está ensinando no momento, seja cálculo, seja álgebra, seja topologia.

Como são suas palestras para o público leigo?

Quase sempre discorro sobre as relações entre matemática e música [James toca violino, e já foi violinista profissional; foi inclusive primeiro violinista da orquestra sinfônica da Universidade McMaster], mas nunca sobre cálculo. Acho que o público, de modo geral, não sabe direito o que é matemática. Muita gente acha que o matemático é um sujeito bom de aritmética.

Infelizmente, matemática é o assunto mais linear que existe. Para entender isso [põe a mão direita bem no alto, com a palma voltada para baixo], você tem de entender isso [abaixa a mão um pouquinho], que vem disso [abaixa a mão mais um pouquinho], que é consequência disso [mais um pouquinho], e assim vai. O problema é que a matemática é mais interessante nos seus aspectos mais avançados. Para se divertir com as ideias mais interessantes da matemática, você precisa gastar um tempão acumulando conhecimentos técnicos. Isso é uma desgraça.

Qualquer pessoa é capaz de aprender matemática avançada?

Acho que sim, embora a maioria das pessoas não se sinta capaz. Quando a pessoa é bem jovem, provavelmente uma criança, ela é desligada da matemática por um professor do ensino fundamental, um adulto que nunca chegou a aprender matemática direito, e que passa às crianças seus próprios medos. Por exemplo, sempre fico surpreso quanto topo com alguém que não entende a ideia de implicação, tão básica: se A implica B, não necessariamente B implica A. [Por exemplo, imagine que uma pessoa diz: “Se é noite, então não dá para ver o Sol”; caso outra pessoa olhe pela janela e não possa ver o Sol, não necessariamente é noite.] Penso que qualquer país poderia ensinar matemática avançada a uma parcela maior da população se fizesse algumas reformas importantes no ensino fundamental.

Você virou uma celebridade?

[risos] Acho que sim, de certo modo. Quando estive no Brasil pela primeira vez, alunos e professores fizeram longas filas para que eu autografasse o livro de cálculo deles. Gostei tanto dessa visita que voltei ao Brasil como turista, para ver o carnaval no Rio de Janeiro. Incrível como o povo do Rio sabe festejar. Eu até desfilei nos blocos de rua! {FIM}


Observações:

1. Publiquei esta entrevista pela primeira vez na revista Cálculo: Matemática para Todos, edição 15, abril de 2012, pág. 18. A versão que acabou de ler foi revisada.

2. Stewart morreu em 3 de dezembro de 2013, aos 73 anos, vítima de um câncer no sangue.

3. Em 2014, a editora Cengage Learning publicou o livro Biocalculus, por James Stewart e Troy Day, um livro de cálculo especial para as ciências da vida; ainda sem tradução em português.

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