Fisicalismo, pampsiquismo, dualismo — e lógica


Há três teses atuais, e importantes, sobre o que existe no Universo: fisicalismo, pampsiquismo, e dualismo. Neste artigo, o leitor verá como usar as ideias mais simples da lógica matemática para entender melhor as três teses. A ideia é ver que, com a lógica, fica mais fácil destacar o que está em jogo.

(a) Fisicalismo. O fisicalista diz que tudo o que existe, seja o que for, é físico: está sujeito às leis da física. Ele não se refere às leis da física tais como eram conhecidas nos tempos de Newton, ou tais como são conhecidas hoje; não se compromete com um conjunto específico de leis físicas. Mas diz que, se algo existe, então está sujeito às leis da física, conhecidas ou desconhecidas, e um físico pode recorrer aos métodos da ciência para compreendê-lo melhor: isso vale para átomos, ondas eletromagnéticas, números, pensamentos, e até… — se Deus existe, diz o fisicalista, está sujeito às leis da física e um físico pode recorrer aos métodos da ciência para compreendê-lo melhor. Nada está fora do mundo físico; nada está além do mundo físico.

(b) Pampsiquismo. A palavra vem do grego, e literalmente significa “tudo tem uma mente”, pois foi assim que essa tese surgiu: tudo tem uma mente, até pedras, até moléculas d’água — tudo percebe alguma coisa sobre o ambiente e toma decisões com o que percebeu. O significado da palavra mudou com o passar dos séculos, e mudou ainda mais depois do surgimento da filosofia analítica, que é feita com o recurso de ferramentas matemáticas. Hoje, o pampsiquista, à semelhança do fisicalista, diz que tudo o que existe, seja o que for, seja matéria ou mente, sejam átomos ou pensamentos, é pura e simplesmente aspecto de uma coisa só, de uma realidade única, e o fundamento dessa realidade única é mental. Ela é algo mais parecido com pensamentos do que com átomos. Em particular, o pampsiquista não acha que o pensamento seja, de algum modo, consequência das leis físicas. Ao contrário, estudar as leis da física é um jeito de estudar as leis do pensamento dessa realidade única, pois as leis da física estão assentadas num fundamento mental.

(c) Dualismo. O dualista divide a realidade em dois conjuntos disjuntos (sem nenhum elemento que seja comum a ambos): o conjunto das coisas mentais, de um lado, e o conjunto das coisas físicas, de outro. Cada um desses conjuntos é não vazio: tem pelo menos um elemento. O pensamento vai no conjunto das coisas mentais, e portanto não tem nada de físico. O cérebro vai no conjunto das coisas físicas, e portanto não tem nada de mental. O dualismo sempre foi mais popular entre religiosos, que pretendem divorciar completamente o corpo da alma, de modo a tornar logicamente possível que a alma sobreviva ao corpo. O problema do dualista é explicar como as coisas mentais provocam efeitos físicos (o desejo de luz leva a pessoa a acionar o interruptor), e como fenômenos físicos provocam efeitos mentais (a lâmpada fraquinha leva a pessoa a pensar, “Preciso comprar uma lâmpada mais brilhante”). Dito isso, o dualista é racional: embora ainda não haja uma boa explicação sobre como os dois reinos interagem, do ponto de vista lógico o dualismo é consistente.

É hora de converter cada uma dessas teses em versões mais formais, para que o leitor veja como fica mais fácil destacar certos pontos para ver as consequências. Primeiro, o fisicalismo; nas linhas que se seguem, o universo do discurso é a classe U = {x : x = x}, que é a classe U de todas as coisas que são iguais a si mesmas; é uma classe a mais abrangente possível. Além disso, nas linhas abaixo, “AB” significa “a afirmação A é logicamente equivalente à afirmação B”.

(d) Fisicalismo (formal). F1 ≡ ∀x Fx. Em palavras: “Para cada elemento x de U, sem exceção, x é algo físico.”

A negação de F1 é ¬F1 ≡ ¬∀x Fx, que é logicamente equivalente a ∃x ¬Fx. Convertendo ∃x ¬Fx em palavras: “Existe pelo menos um elemento x de U tal que x não é físico.” Quando alguém diz que rejeita F1, se é racional ele então diz que aceita ¬F1. Sutileza: a afirmação ∃x ¬Fx é verdadeira se existe um e só um elemento de U que não é físico — basta um; mas também é verdadeira se cada um dos elementos de U, sem exceção, não é físico.

(e) Pampsiquismo (formal). P1 ≡ ∀x Mx. Em palavras: “Para cada elemento x de U, sem exceção, x é algo mental.”

A negação de P1 é ¬P1 ≡ ¬∀x Mx ≡ ∃x ¬Mx. Em palavras: “Existe pelo menos um elemento x de U tal que x não é algo mental.” Para entender melhor a tese pampsiquista, use um computador como analogia. Imagine que está rodando uma simulação — por exemplo, a simulação de um avião num túnel de vento. Olha para a tela do computador e vê as imagens referentes ao avião e ao vento: as asas balançando, o ar sendo lançado em rodopios para aqui e para acolá, etc. No entanto, é o software (semelhante a algo mental) que está causando as modificações nos pixels da tela, de modo que possa ver imagens em movimento. Para o pampsiquista, quando olhamos para a Natureza e ficamos boquiabertos com a miríade de fenômenos naturais, estamos olhando para as consequências de fenômenos mentais, mais ou menos como se estivéssemos olhando para as consequências do software que faz a Natureza funcionar.

(f) Dualismo (formal). O dualismo é a conjunção de quatro teses: para que o dualismo seja verdadeiro, as quatro afirmações a seguir devem ser todas verdadeiras ao mesmo tempo.

D1 ≡ ∀x(MxFx). Em palavras: “Para cada elemento x de U, ou x é mental, ou x é físico, ou x é tanto mental quanto físico.”

D2 ≡ ¬∃x(MxFx) ≡ ∀xMx ∨ ¬Fx). Em palavras: “Não existe nenhum elemento x de U que seja ao mesmo tempo mental e físico, quer dizer, para cada elemento x de U, ou x não é mental, ou x não é físico, ou não é mental nem físico.”

Ao juntar D1 e D2, você obtém a tese D1D2 ≡ ∀x(MxFx), em que “⊕” denota “ou exclusivo”. Em palavras: “Para cada elemento x de U, ou x é mental ou x é físico, mas nunca x é mental e físico, e nunca x não é mental nem físico.”

D3 ≡ ∃x Mx. Em palavras: “Existe pelo menos um elemento x de U tal que x é mental.”

D4 ≡ ∃x Fx. Em palavras: “Existe pelo menos um elemento x de U tal que x é físico.”

Visto que o dualismo é equivalente a D1D2D3D4, refutar o dualismo significa afirmar ¬(D1D2D3D4), que é logicamente equivalente a ¬D1 ∨ ¬D2 ∨ ¬D3 ∨ ¬D4. Se diz que essa última expressão é verdadeira, então diz que pelo menos uma das quatro teses D1, D2, D3, D4 é falsa. Para facilitar seu trabalho, eis a negação de cada uma delas:

¬D1 ≡ ¬∀x(MxFx) ≡ ∃xMx ∧ ¬Fx). Em palavras: “Existe pelo menos um elemento x de U tal que x não é mental nem físico.”

¬D2 ≡ ¬¬∃x(MxFx) ≡ ∃x(MxFx). “Existe pelo menos um elemento x de U tal que x é tanto mental quanto físico.”

¬D3 ≡ ¬∃x Mx ≡ ∀x ¬Mx. “Para todo elemento x de U, x não é mental.”

¬D4 ≡ ¬∃x Fx ≡ ∀x ¬Fx. “Para todo elemento x de U, x não é físico.”

O dualismo é inconsistente com o fisicalismo, pois D2 e D3 juntas implicam que há pelo menos uma coisa que não é física. Assim, o fisicalista tem de escolher se rejeita D2 ou se rejeita D3; não pode rejeitar ambos, pois rejeitar D3 implica aceitar D2. (Em outras palavras: rejeitar D3 significa aceitar ¬D3; aceitar ¬D3 significa dizer que, para todo x de U, ¬Mx obtém; mais dizer isso significa tornar verdadeira a afirmação D2.)

(g) Fisicalismo de equivalência mente-físico. Se o fisicalista rejeita D2 e aceita D3, ele advoga o fisicalismo de equivalência mente-físico. Ele concorda com o dualista: sim, existe algo que é mental, isso é verdade; mas, para o fisicalista de equivalência mente-físico, esse algo que é mental também é físico. Ele identifica tudo aquilo que é mental com alguma coisa que é física.

(h) Fisicalismo eliminativista. Se o fisicalista aceita D2 e rejeita D3, advoga o fisicalismo eliminativista. Ele concorda com o dualista: sim, é verdade que nenhum elemento x de U pode ser ao mesmo tempo físico e mental; contudo, não existe nada que seja mental. Ele elimina tudo o que é mental.

O dualismo também é inconsistente com o pampsiquismo, pois D2 e D4 juntas implicam que há pelo menos uma coisa que não é mental. Assim, o pampsiquista precisa decidir se rejeita D2 e aceita D4 ou se aceita D2 e rejeita D4; não pode rejeitar ambas as teses, pois rejeitar D4 implica aceitar D2.

(i) Pampsiquismo de equivalência mente-físico. Se o pampsiquista rejeita D2 e aceita D4, ele se torna um pampsiquista de equivalência mente-físico. Concorda com o dualista: sim, existe pelo menos uma coisa que é física, isso é verdade; porém, essa coisa também é mental. Ele identifica tudo aquilo que é físico com alguma coisa que é mental.

(j) Pampsiquismo eliminativista. Se o pampsiquista aceita D2 e rejeita D4, ele se torna um pampsiquista eliminativista. Concorda com o dualista: sim, é verdade, se algo é físico, não pode ser mental; mas daí afirma que não existe nada que seja físico. Ele elimina o físico.

Note que o fisicalismo de equivalência mente-físico e o pampsiquismo de equivalência mente-físico são consistentes entre si. Ambos rejeitam D2, isto é, aceitam ¬D2 ≡ ∃x(MxFx); com isso, ambos dizem que existe algo que é mental e também é físico, e portanto tornam verdadeiras as teses D3 e D4; a única diferença entre eles é que, para um, tudo o que é mental é de algum modo físico (∀x(MxFx)), e, para o outro, tudo o que é físico é de algum modo mental (∀x(FxMx)). Portanto, uma pessoa pode se declarar fisicalista e pampsiquista ao mesmo tempo, desde que defenda a versão de equivalência mente-fisico tanto do fisicalismo quanto do pampsiquismo (∀x(Mx ↔︎ Fx)). Essa foi, mais ou menos, a posição de Spinoza no livro Ética: para cada elemento x de U, sem exceção, x é tanto físico quanto x é mental: ao estudar as coisas físicas, você estuda também as coisas mentais, e vice-versa, pois físico e mental são dois aspectos concomitantes da mesma realidade única, que é Deus ou a Natureza.

Há uma tese atual que não se compromete nem com o dualismo, nem com o fisicalismo, nem com o pampsiquismo: chama-se naturalismo metodológico. Usando “Nx” para “x é natural”, “Sx” para “x é sobrenatural”, e “Cx” para “x pode em tese ser melhor conhecido por meio dos métodos da ciência”, o naturalista metodológico afirma três teses: (1) ∀x Nx; (2) ¬∃x Sx; (3) ∀x(NxCx). Em palavras: “Para todo elemento x do universo U do discurso, x é natural; x não é sobrenatural; e, se x é natural, então x pode em tese vir a ser melhor conhecido por meio dos métodos da ciência.” Suponha que tanto o fisicalismo de equivalência mente-físico quanto o pampsiquismo de equivalência mente-físico sejam verdadeiros. O naturalista não se apavora: “Ótimo! Vamos então usar os métodos da ciência para conhecer melhor essa realidade que é a um só tempo física e mental, pois que, qualquer que seja o caso, ela certamente é natural.”

Mas o tópico deste artigo é este: com a lógica, fica mais fácil destacar os pontos importantes do argumento que leva de certas premissas a uma tese. Timothy Williamson, um conhecido filósofo da ciência e especialista em lógica, diz que toda lógica é uma espécie de linguagem artificial, cujo vocabulário contêm termos e símbolos de significado muito bem circunscrito, e com os quais pode-se escrever afirmações cuja estrutura lógica fica em evidência. “Com uma linguagem artificial”, escreveu Williamson no ótimo Philosophical Methods: A Very Short Introduction, “o filósofo verifica a validade de um argumento de modo mais confiável. É como se um juiz de futebol, em vez de formar seu julgamento no calor da ação, esperasse o vídeo em câmara lenta para ver o que realmente aconteceu. Levando a analogia mais adiante: todo o poder da lógica moderna, assim como todas as descobertas que ela permitiu, surgiram em última instância da capacidade humana para raciocínios muito simples.” Parafraseando essa passagem: Cada um de nós tem o poder de completar raciocínios muito simples, e, caso estude lógica, ganha além disso o poder de concatenar longas sequências de raciocínios simples na construção de raciocínios requintados — e talvez divinos. {FIM}


Observações:

1. Pela minha experiência, quem é capaz de produzir uma boa definição de ciência acha o naturalismo metodológico uma boa ideia. Eis uma definição recursiva simples:

Definição recursiva simples do método científico. Uma explicação (= hipótese ou teoria) é verdadeira1 se ela explica algo1 que você já sabe; essa mesma explicação é verdadeira2 se, além de ser verdadeira1, com ela você prevê algo2 que antes não sabia, e ao investigar a Natureza descobre que algo2 é verdade; essa mesma explicação é verdadeira3 se, além de ser verdadeira2, com ela você prevê algo3 que antes não sabia, e ao investigar a Natureza descobre que algo3 é verdade; etc.

Quando a explicação é jovem, em geral é chamada de “hipótese” ou de “conjectura”; conforme envelhece e obtém sucesso ao prever algo2, algo3, algo4, etc., a certa altura ganha o nome de “teoria”, que os cientistas costumam dar a explicações boas e maduras.

2. Eu disse no texto: “Quando alguém diz que rejeita F1, se é racional ele então diz que aceita ¬F1.” Só pude dizer isso porque parti da presunção de que esse alguém está usando a lógica matemática, na qual vale a lei do meio excluído: na qual toda afirmação é verdadeira ou falsa, com “ou” exclusivo. Um dialeteísta pode rejeitar F1 sem aceitar a verdade de ¬F1, mas, de outro lado, as lógicas dialeteicas ainda estão em processo de construção, de modo que o dialeteísta não pode ir longe num raciocínio complicado.

3. Todas as definições que usei neste artigo são simples, e reconheço que talvez sejam excessivamente simples. Fisicalismo, pampsiquismo, e dualismo são assuntos complicadíssimos, com histórica longa e intricada — cada um deles é suficiente para um livro. Em particular, minha definição de pampsiquismo fica perto da definição usada (implicitamente) por Spinoza na Ética, mas existem várias outras.

4. Seria tão mais bonito escrever “pan-psiquismo”, mas parece que beleza nunca entra em questão quando organizam uma reforma ortográfica.